"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/04/2024

Bibliografia (1120)


-- Bonifácio Ramos, J. L., Tecnologia e Processo: Desafios e Constrangimentos. Em especial, a Inteligência Artificial, RDC 9 (2024-1), 33

-- Correia de Mendonça, L., José Alberto dos Reis entre Lodovico Mortara e Giuseppe Chiovenda, RDC 9 (2024-1), 11


Bibliografia (Índices de revistas) (235)


RTDPC


-- RTDPC 78 (2024-1)


Jurisprudência 2023 (154)


Litigância de má fé;
duplo grau de jurisdição


1. O sumário de STJ 11/7/2023 (10972/10.1TBVNG.P2.S1) é o seguinte:

I- É insusceptível de ser declarada a ineficácia de justificação notarial de aquisição de propriedade por usucapião se a respectiva actuação processual em juízo é contraditória com a conduta anterior dos autores na acção, vista na sua globalidade como atentatória da tutela da confiança do adquirente por essa via de aquisição, e, portanto, configurada como abusiva, ao abrigo do art. 334º do CCiv., na modalidade de “venire contra factum proprium” positivo (o agente abusador gera a convicção de que não irá praticar certo acto e depois, contra a legítima expectação de conduta, pratica o acto).

II- Não é admissível a revista do segmento decisório do acórdão da Relação que reaprecia e confirma a decisão de condenação em litigância de má fé proferida pela primeira instância, tendo em conta o regime especial de recorribilidade previsto no art. 542º, 3, do CPC para as decisões condenatórias (e não absolutórias) em primeira instância, não podendo, quando se trate de tais decisões, o recurso ultrapassar o patamar de impugnação junto da Relação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em ambas as instâncias foram os Autores condenados em litigância de má fé, dando causa ao pagamento de multa de 10 UCs e de indemnização no montante de € 10.000, em aplicação do art. 542º, 1 e 2, do CPC.

A Relação reapreciou a questão da condenação proferida em 1.ª instância em razão das Conclusões CCCLXVIII a CCCCLXXIII inscritas na apelação.

Trata-se de uma decisão autónoma em relação ao objecto da acção, tomada em incidente cujo julgamento e resultado correspondem a um segmento decisório cindível no dispositivo da sentença proferida em 1.ª instância. Enquanto decisão proferida em incidente sem estrutura e natureza de acção, estamos perante decisão interlocutória com incidência processual, recorrível para a 2.ª instância nos termos do art. 644º, 2, e), e, depois, submetida esta segunda decisão ao regime da revista “continuada” do art. 671º, 2, do CPC [Neste sentido, como regra no contexto da tipologia das decisões interlocutórias submetidas em revista por via do art. 671º, 2, do CPC, v. LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC – O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, págs. 475-476 e 482: “decisões que se pronunciam acerca de incidentes inseridos na causa principal, admitindo-os ou rejeitando-os”; cfr. ainda, na interpretação do art. 671º, 2, do CPC, LUÍS ESPÍRITO SANTO, Recursos civis. O sistema recursório português. Fundamentos, regime e actividade judiciária, CEDIS, Lisboa, 2020, pág. 283. Na jurisprudência do STJ, V. Acs. de 29/6/2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, 16/5/2023, processo n.º 113/16.7T8VNC-I.G1-A.S, Rel. RICARDO COSTA, 31/5/2023, processo n.º 65/16.3T8VNC-B.G1-A.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, e de 28/6/2023, processo n.º 3080/17.6T8BCL-I.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA; in www.dgsi.pt.] – o que, se fosse o caso, não foi cumprido pelos Recorrentes.

No entanto, a este regime geral acrescenta-se o regime especial do art. 542º, 3, do CPC, estatuindo que, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé».

Estamos perante uma previsão para a recorribilidade da decisão condenatória (e não para decisão absolutória) como litigante de má fé: só pode ser objecto de recurso em um grau – da 1.ª instância para a Relação ou desta para o Supremo (enunciativa, a contrario sensu); em contrapartida dessa restriçãoamplia-se a faculdade recursiva, uma vez que é sempre assegurada a admissibilidade do duplo grau de jurisdição sem dependência da verificação do art. 629º, 1, do CPC. [V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 64-65 e nt. 96, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 594 (“Ainda que o valor da ação supere a alçada da Relação, a parte que tenha sido penalizada não pode interpor recurso de revista que abarque essa questão, regime que compatibiliza a tutela do visado (carecida, nesta parte, de um duplo grau de jurisdição) com a natureza marginal da questão.”), JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021 (reimp.), sub art. 542º, pág. 461 (aparentemente, atendendo à argumentação). Na jurisprudência consolidada do STJ sobre a não admissão do terceiro grau de jurisdição, entre outros, também antes do CPC de 2013, v. os Acs. do STJ de 4/5/2021, processo 2523/19.9T8PRD-E.P1-A.S1, Rel. FÁTIMA GOMES, 19/5/2020, processo n.º 5126/07.7TBSXL.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo o aqui Relator 2.º Adjunto (cfr. ponto II. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 28/11/2017, processo n.º 2398/11.6TBVLG-A.P1.S1, Rel. HÉLDER ROQUE (cfr. pontos II. e III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 19/10/2017, processo n.º 11262/79.0TVLSB-L.L1.S1, Rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA (cfr. ponto IV. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 17/11/2015, processo n.º 2443/11.5TJVNF.G1.S1, Rel. SILVA SALAZAR (in www.stj.pt), 26/6/2014, processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1.S1, Rel. TÁVORA VÍTOR (cfr. ponto III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 16/1/2014, processo n.º 1279/08.5TBGRD-N.C1-A.S1, Rel. SÉRGIO POÇAS, 29/10/2013, processo n.º 31038/96.0TVLSB.S1, Rel. FERNANDES DO VALE (in www.dgsi.pt), 21/11/2012, processo n.º 3365/04.1TTLSB.L1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, 12/7/2011, processo n.º 2375/07.1YXLSB.L1.S1, Rel. GABRIEL CATARINO (in www.stj.pt), 27/5/2010, processo n.º 5387/05, Rel. SOUSA LEITE, e de 20/1/2010, processo n.º 45/04.1TTEVR.E1.S1, Rel. VASQUES DINIS; disponíveis, os sem local de proveniência, in www.dgsi.pt.] [Já não é assim se a decisão de 1.ª instância for absolutória e a decisão de 2.ª instância for condenatória: v. Ac. do STJ de 15/2/2022, processo n.º 1246/20.0T8STB.E1.S1, Rel. MARIA JOÃO TOMÉ, in www.dgsi.pt (“Admite-se assim o recurso [de] revista no caso de a Recorrente haver sido condenada por litigância de má fé apenas pelo TR, uma vez que o Tribunal de 1.ª Instância tinha julgado improcedente este pedido de condenação (…).”: ponto I. do Sumário); na doutrina, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa “in agendo”, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 68 (não assim no caso de “não-condenação, apesar de pedida”).] 

Tal significa que: (i) se a condenação provier da 1.ª instância, o recurso (e a garantia do duplo grau de jurisdição) é sempre admissível para a Relação sem dependência do art. 629º, 1 (seguindo o art. 644º, 2, e), CPC); (ii) se a condenação for decretada pela primeira vez pela Relação, admite-se recurso para o STJ, independentemente ainda do valor da condenação em relação aos critérios do art. 629º, 1, do CPC, assim como sem dependência do regime do art. 673º para as decisões interlocutórias “novas” (o que se encontra devidamente salvaguardado na respectiva al. b)); (iii) se a condenação for proferida em primeira mão pela 1.ª instância e reapreciada em recurso pela Relação, não é admitida a revista, seja qual for a decisão em segunda mão pela 2.ª instância (sem prejuízo de, estando aqui presente uma irrecorribilidade legal por «motivo estranho à alçada do tribunal», se poder ponderar a aplicação do art. 629º, 2, d), do CPC).

Assim sendo, tendo os Autores sido condenados como litigantes de má fé em 1.ª instância e tendo essa condenação sido confirmada pela Relação, encontra-se esgotada, uma vez não convocado qualquer regime de revista extraordinária, a possibilidade de tal questão ser objecto de revista, independentemente da sorte e resultado da impugnação (nos outros segmentos) do acórdão recorrido onde foi reapreciada e confirmada a condenação de 1.ª instância, não podendo aqui ser conhecido tal segmento decisório, correspondente à Conclusão 75. da revista."

[MTS]

18/04/2024

Jurisprudência 2023 (153)


Litigância de má fé;
falta de fundamentação; alteração da verdade


I. O sumário de RE 14/9/2023 (20469/19.9T8SNT.E1) é o seguinte:

1. De acordo com o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC, a rejeição, total ou parcial, do conhecimento do recurso depende da reação posterior do recorrente em relação ao convite ao aperfeiçoamento, que tanto pode traduzir-se em pura inércia, como na apresentação de nova peça processual sobre a qual, depois da eventual resposta do recorrido, incidirá a análise do Relator, a fim de verificar se os vícios apontados foram ou não corrigidos.

2. Por razões de justiça material, celeridade, eficácia e de prevalência da justiça material sobre a justiça formal, a rejeição do recurso após ter sido aceite o convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso deve pautar-se por critérios de razoabilidade e parcimónia devendo ser utilizada, tão só, quando não for de todo possível, ou for muito difícil, determinar as questões submetidas à apreciação do tribunal superior ou ainda quando a síntese ordenada se não faça de todo.

3. Ocorre litigância de má-fé quando a parte deduz pedido reconvencional omitindo e alterando factos e, consequentemente, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que dessa alegação sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença condenou os Réus como litigantes de má-fé, com a seguinte fundamentação:

«Cotejada a decisão de facto acima exposta, verifica-se que a versão apresentada pelos réus não encontrou qualquer conforto na prova produzida, defluindo dela manifestamente que: (i) o 1.º réu não permitiu a entrada do legal representante da autora na obra, o que afasta a tese do abandono e (ii) as partes acordaram em dar sem efeito a cláusula que continha a sanção pelo atraso na execução da obra - cfr pontos 61) e 64) dos factos provados.

Por outro lado, tratam-se de factos pessoais dos réus, dos quais os mesmos não podiam deixar de ter conhecimento, uma vez que foram praticados e presenciados pelos próprios.

Desta feita, a conduta processual dos réus acima descrita consubstancia a previsão legal da norma contida no artigo 542.º n.º 2 al. a) e b) do C.P.C., porquanto os mesmos deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, alterando a verdade dos factos.

Diga-se, ainda, que a condenação da parte como litigante de má-fé não depende exclusivamente de uma conduta processual dolosa, bastando para o efeito a demonstração de que a parte estava obrigada a ter consciência dos factos em causa – conforme sucede manifestamente nos presentes autos. (…)

Face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.ºs 1 e 2, al.s. a) e b) do C.P.C. e 27.º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, deverão os réus ser considerados litigantes de má-fé, devendo, em consequência ficar obrigado ao pagamento de uma multa no valor de 20 (vinte) UC, o que perfaz a quantia de 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros), atendendo ao valor dos bens jurídicos em causa e ao grau de ilicitude e culpa da conduta em censura.»

Na Conclusão i), alegam os recorrentes, em desacordo com a sentença, que não litigam de má-fé, «(…) pois não deduzem pretensão cuja falta de fundamento ignoram, nem fazem do processo um uso anormal e abusivo, como decorre do que se deixou dito supra quanto ao contrato de empreitada assinado pelo R. marido e alteração unilateral do mesmo pela A. sem qualquer consentimento ou acordo do R. e o facto de ele não ter junto a cópia do contrato que tinha por não a encontrar não deve contribuir para que daí se retire a conclusão de que está a ocultar factos ao processo, já que, como se referiu supra ele reiterou que o contrato assinado não estava rasurado, resultando das regras da experiência comum que ninguém assina um contrato rasurado sem que ressalve tal facto.»

Vejamos, então, se lhes assiste razão.

Na atuação processual estão as partes vinculadas aos deveres de probidade e de cooperação, agindo de boa-fé, com brevidade e eficácia, de forma a alcançar-se a justa composição do litígio (artigos 7.º a 9.º do CPC).

A condenação da parte como litigante de má-fé obedece aos pressupostos legais mencionados no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) a d), do CPC, abrangendo a sanção tanto o dolo como a negligência grave, aí se encontrando contempladas várias situações subsumíveis ao conceito de litigância de má-fé, violadoras dos referidos deveres.

Assim, atua com má-fé material/substancial a parte que, com dolo ou negligência grave, viola conscientemente o dever de verdade, ao deduzir pretensão ou oposição que sabe ou não podia deixar de saber, ser ilegítima, distorce ou deturpa a realidade de si conhecida ou omite factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão; atua com má-fé instrumental a parte que fizer do processo uso manifestamente reprovável, visando um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Todavia, não corresponde a litigância de má-fé a dedução de pretensão ou oposição em que se decaí por mera fragilidade da prova ou por não lograr-se convencer o tribunal de determinada realidade trazida a julgamento, bem como as situações que resultam de discordâncias na interpretação e aplicação da lei aos factos.

Assim, a proposição de uma ação, a apresentação de uma contestação, a dedução de reconvenção ou a interposição de um recurso, com fundamento jurídico que não se conseguiu demonstrar, não constituiu uma atuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte, considerando as inúmeras variáveis em confronto, posto que não se apure uma postura da parte conscientemente infundada.

Todavia, a litigância de má-fé não se pode afastar quando a parte deduz pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, impondo-se-lhe a obrigação de previamente tentar indagar do fundamento alegado. Muito menos quando conscientemente altera a realidade dos factos, alegando-os de forma deturpada ou omitindo alguns dos aspetos revelantes da realidade alegada.

Como se refere no Acórdão do STJ 02-02-2023 (analisando a evolução normativa da previsão sobre a litigância de má-fé):

«Da redacção do referido artº 456º CPCiv anterior à revisão de 95 do Código, para a actual redacção, a expressão “que não devia ignorar” inculca que se passou de um regime de intenção maliciosa ou gravemente negligente (regime de 61 – má fé em sentido psicológico) para um regime que abrange na respectiva previsão a leviandade ou a imprudência manifestas (má fé em sentido ético).

Trata-se assim, no fundo de um regresso à concepção de má fé originária, do Código de Processo Civil de 1939, o qual, na ideia de J. Alberto dos Reis, sancionava a pretensão ou oposição cuja falta de fundamento “o agente não pudesse razoavelmente desconhecer” (assim, Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé e Abuso de Direito de Acção, 2006, pg. 23).»

Nesta linha de análise, refere-se no Acórdão do STJ de 12-04-2023 [Proc. n.º 1915/11.6TBALM-A.L1.S1 (Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt]:

«Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Por isso, actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Acresce que o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão ( dever de pré-indagação).»

No caso, o tribunal a quo reconduziu a situação à previsão normativa do n.º 2, alíneas a) e b) do artigo 542.º, do CPC, que dispõem do seguinte modo:

«2. Diz-se litigante de má-fé que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.»

Da análise dos articulados não nos suscita dúvida que os Réus litigam de má-fé por terem, simultaneamente, alterado e omitido parte dos factos relevantes para a boa decisão da causa e, com base nesse comportamento, terem deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento sabiam, ou não podiam ignorar, reconduzindo-se tal comportamento processual à situação prevista no normativo acima referido.
No caso, deduzindo reconvencional alegando factos que não correspondem à realidade e omitindo outros que não podiam desconhecer.

Concretizando.

A causa de pedir do pedido reconvencional assenta nos seguintes fundamentos: (i) a Autora incorreu na penalização prevista no contrato por ter excedido o tempo de execução da obra; (ii) a Autora abandonou a obra não eliminando os defeitos; (iii); A conduta da Autora causou aos Réus danos de natureza não patrimonial.

Ora, se em relação aos fundamentos referidos em (i) e (iii), os Réus alegaram factos que vieram a provar-se não corresponder à realidade, mas que, ainda assim, pode tal resultar de dificuldades de prova não se podendo, com segurança, enquadrar a situação numa atuação intencionalmente dolosa ou gravemente negligente da parte, já em relação à factualidade referida em (ii) a questão coloca-se de modo diverso, uma vez que os Réus alegaram o abandono da obra e a não eliminação de defeitos por causa imputável à Autora, omitindo parte da realidade, ou seja, que foi o Reu quem impediu a Autora de entrar na obra a fim de verificar os defeitos (cfr. artigo 53.º da contestação), o que veio a ficar provado (cfr. ponto 64 dos factos provados).

Sublinhe-se que em relação a esta factualidade não se trata de falta ou de dificuldade de prova, mas sim de omissão pura e simples de alegação da factualidade relevante com o gravame de ter sido alegada realidade diversa. Sendo que o impedimento oposto pelo Réu à Autora para esta entrar na obra são factos de natureza pessoal que os Réus não podiam ignorar, nem desconhecer, e muito menos fundamentar o pedido reconvencional com base numa alegação deturpada da realidade.

Ou seja, os Réus não só omitiram factos, como os alteraram, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podiam razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que deles sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação, como bem refere a sentença recorrida, na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.

Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença recorrida no concernente à condenação dos Réus como litigantes de má-fé."

[MTS]


17/04/2024

Jurisprudência 2023 (152)


Prova pericial;
admissibilidade; objecto


1. O sumário de RG 14/9/2023 (52/20.7T8PVL-A.G1) é o seguinte:

I - A prova pericial constitui um meio de prova a realizar (a requerimento das parte ou oficiosamente) quando, para o apuramento de um facto, se torne necessário recorrer ao conhecimento especial (técnico, científico ou artístico) de outrem, o qual assume a função de perito e irá pronunciar-se sobre a questão (ou questões) de facto solicitada, percepcionando-o e valorando-o em razão daqueles conhecimentos especiais, para depois expor das suas observações e das suas impressões sobre os factos presenciados, e retirando conclusões objetivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes, sendo que, deste forma, concorre, positiva ou negativamente, para que o Tribunal forme a sua convicção sobre o facto (ou factos) em causa, atento o que julgador não detém esses conhecimentos especiais.

II - Na determinação do objecto da prova pericial há desde logo que ter presente, como supra já se explicou, que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. art. 341º do C.Civil), e que toda a prova tem incidir sobre concretos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, relembrando-se que os temas da prova constituem apenas uma enunciação genérica das questões controvertidas (cfr. art. 410º do C.P.Civil de 2013), mas há ainda que ter presente o disposto no art. 475º do C.P.Civil de 2013.

III - Neste “quadro” legal, o objecto da prova pericial tem que recair sobre os «factos da causa», os factos essenciais (principais) alegados pelo autor para fundamentar a causa de pedir, pelo réu na contestação para fundamentar as excepções e/ou fundamentar o pedido reconvencional, e pelo Autor para fundamentar as contra-excepções que invoca contra o réu ou fundamentar as excepções que deduziu contra o pedido reconvencional (cfr. arts. 5º/1, 583º, 584º, e 3º/4 do C.P.Civil de 2013), mas também sobre os factos instrumentais e/ou complementares dos factos essenciais alegados [cfr. art. 5º/a) e b) do C.P.Civil de 2013].

IV - Mas na determinação do objecto da prova pericial temos também que considerar o disposto no art. 476º do C.P.Civil de 2013.

V - No que especificamente concerne à apreciação liminar da admissibilidade da prova pericial, como resulta do disposto no nº1 deste art. 476º, o juiz tem que verificar se a mesma se mostra impertinente e/ou dilatória, sendo que, caso conclua num desses sentidos, deverá indeferir a sua realização. O juízo será no sentido da impertinência quando a prova pericial requerida pela parte indica um objecto que não respeita aos factos essenciais da causa (nem a instrumentais ou complementares dos mesmos) ou, numa perspectiva mais ampla, não respeita a factos relevantes e condicionantes para a decisão final, e o juízo será no sentido do carácter dilatório quando, mesmo que o objecto respeite os factos essenciais (e/ou instrumentais ou complementares), o apuramento dos factos em causa não implica a realização de uma perícia já que, para o efeito, não são exigíveis os conhecimentos especiais que este meio de prova pressupõe (cfr. art. 388º do C.Civil), estando, portanto, este carácter dilatório relacionado com a desnecessidade e a inutilidade deste meio de prova para a descoberta da verdade e boa apreciação e decisão da causa (justa composição do litígio), quando a percepção ou apreciação do facto está, completa e seguramente, ao alcance do juiz.

VI - Como impõe o nº2 deste mesmo art. 476º, a determinação (fixação) final do objecto da prova pericial é feita pelo juiz, ao qual competirá, por um lado, excluir todas as questões de facto que, embora propostas pela parte (ou partes), julgue como legalmente inadmissíveis ou irrelevantes e, por outro lado, ampliá-lo com outras questões de factos que julgue necessárias para a descoberta da verdade e cujo apuramento imponha a intervenção de pessoa conhecimentos especiais (diga-se que este juízo de fixação do objecto nada tem que ver com o juízo liminar de admissibilidade ou inadmissibilidade da prova pericial previsto no nº1 do mesmo preceito).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] a prova pericial constitui um meio de prova a realizar (a requerimento das parte ou oficiosamente) quando, para o apuramento de um facto, se torne necessário recorrer ao conhecimento especial (técnico, científico ou artístico) de outrem, o qual assume a função de perito e irá pronunciar-se sobre a questão (ou questões) de facto solicitada, percepcionando-o e valorando-o em razão daqueles conhecimentos especiais, para depois expor das suas observações e das suas impressões sobre os factos presenciados, e retirando conclusões objetivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes, sendo que, deste forma, concorre, positiva ou negativamente, para que o Tribunal forme a sua convicção sobre o facto (ou factos) em causa, atento o que julgador não detém esses conhecimentos especiais [---]

Na determinação do objecto da prova pericial há desde logo que ter presente, como supra já se explicou, que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. art. 341º do C.Civil), e que toda a prova tem incidir sobre concretos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, relembrando-se que os temas da prova constituem apenas uma enunciação genérica das questões controvertidas (cfr. art. 410º do C.P.Civil de 2013), mas há ainda que ter presente o disposto no art. 475º do C.P.Civil de 2013 (“1 - Ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respetivo objeto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. 2 - A perícia pode reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária”).

Neste “quadro” legal, o objecto da prova pericial tem que recair sobre os «factos da causa», os factos essenciais (principais) alegados pelo autor para fundamentar a causa de pedir, pelo réu na contestação para fundamentar as excepções e/ou fundamentar o pedido reconvencional, e pelo Autor para fundamentar as contra-excepções que invoca contra o réu ou fundamentar as excepções que deduziu contra o pedido reconvencional (cfr. arts. 5º/1, 583º, 584º, e 3º/4 do C.P.Civil de 2013), mas também sobre os factos instrumentais e/ou complementares dos factos essenciais alegados [cfr. art. 5º/a) e b) do C.P.Civil de 2013] [Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa, in [Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina], p. 582.]

Como se decidiu no Ac. desta RG de 05/12/2019 [---], “II. O objecto da perícia é constituído por questões de facto que sejam relevantes para a decisão final de mérito, segundo as várias soluções plausíveis de direito; e, por isso, a prova pericial tanto pode incidir sobre factos essenciais, como sobre factos instrumentais, desde que estes últimos sejam idóneos a conduzir à prova daqueles primeiros”.

Mas na determinação do objecto da prova pericial temos também que considerar o disposto no art. 476º do C.P.Civil de 2013: “1 - Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição. 2 - Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade”.

Como resulta do teor deste art. 476º, requerida a prova pericial, o juiz deve fazer um juízo liminar sobre a sua pertinência, ao qual se segue o exercício do contraditório, através da audição da parte contrária sobre o objecto proposto. Porém, como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa [iobra citada, p. 582.], “na prática, é frequente que o juiz relegue a apreciação da pertinência e do carácter dilatório da diligência requerida para o momento subsequente ao exercício do contraditório” mas “a omissão de um juízo liminar expresso sobre a pertinência da perícia, acompanhada da ordem da notificação da parte contrária para se pronunciar, não consubstancia um deferimento tácito, mas apenas o exercício deferido do controlo do pressuposto da norma (STJ 5-3-02)”.

No que especificamente concerne à apreciação liminar da admissibilidade da prova pericial, como resulta do disposto no nº1 deste art. 476º, o juiz tem que verificar se a mesma se mostra impertinente e/ou dilatória, sendo que, caso conclua num desses sentidos, deverá indeferir a sua realização. O juízo será no sentido da impertinência quando a prova pericial requerida pela parte indica um objecto que não respeita aos factos essenciais da causa (nem a instrumentais ou complementares dos mesmos) ou, numa perspectiva mais ampla, não respeita a factos relevantes e condicionantes para a decisão final, e o juízo será no sentido do carácter dilatório quando, mesmo que o objecto respeite os factos essenciais (e/ou instrumentais ou complementares), o apuramento dos factos em causa não implica a realização de uma perícia já que, para o efeito, não são exigíveis os conhecimentos especiais que este meio de prova pressupõe (cfr. art. 388º do C.Civil) [Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa, in obra citada, p. 582 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in [Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ªedição, Coimbra Editora], p. 326.], estando, portanto, este carácter dilatório relacionado com a desnecessidade e a inutilidade deste meio de prova para a descoberta da verdade e boa apreciação e decisão da causa (justa composição do litígio), quando a percepção ou apreciação do facto está, completa e seguramente, ao alcance do juiz.

Assinale-se que o juízo de impertinência não se pode fundar no entendimento de que o facto (ou factos) que se pretende provar (ou contraprovar) através da realização da perícia pode ser provado por outro meio de prova, ou de que a prova pericial não produz prova plena do facto, ou de que a execução da perícia iria fazer prolongar a duração do processo [Cfr. Ac. RG de 21/01/2021, Juiz Desembargador Jorge Teixeira, proc. nº847/20.T8BCL-C.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.]. Como se decidiu no citado Ac. desta RG de 05/12/2019 [---], “V. Para admissão da prova pericial não se exige que a mesma seja o único meio disponível para a demonstração de determinado facto (isto é, que deva ser rejeitada desde que a prova do mesmo possa ser feita por outros meios alternativos); poderá ser apenas a prova preferencial, face ao objecto do litígio”.

Como impõe o nº2 deste mesmo art. 476º, a determinação (fixação) final do objecto da prova pericial é feita pelo juiz, ao qual competirá, por um lado, excluir todas as questões de facto que, embora propostas pela parte (ou partes), julgue como legalmente inadmissíveis ou irrelevantes e, por outro lado, ampliá-lo com outras questões de factos que julgue necessárias para a descoberta da verdade e cujo apuramento imponha a intervenção de pessoa conhecimentos especiais (diga-se que este juízo de fixação do objecto nada tem que ver com o juízo liminar de admissibilidade ou inadmissibilidade da prova pericial previsto no nº1 do mesmo preceito).

Explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [In obra citada, p. 326.] que “a restrição há de fundamentar-se na inadmissibilidade (por serem insuscetíveis de prova em geral ou da prova pericial em particular) ou irrelevância (para a solução do caso concreto) de pontos de facto propostos pelo requerente”.

Por último, assinale-se que a prova pericial pode incidir sobre factos passados ou futuros, competindo nestes casos ao perito tentar fazer uma reconstrução dos factos do passado e de estabelecer uma relação de causa-efeito ou, tentar fazer uma projeção dos efeitos futuros dos factos de acordo com a mesma relação causa-efeito, respetivamente [Cfr. o citado Ac. da RL de 15/09/2022, Juiz Desembargador Nelson Borges Carneiro, proc. nº 739/22.0T8PDL-A.L1-2.]."

[MTS]

16/04/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (303)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 6.°, n.° 1 — Âmbito de aplicação — Contrato celebrado entre um consumidor que tem a nacionalidade de um Estado terceiro e um banco estabelecido num Estado‑Membro — Ação intentada contra este consumidor — Tribunal do último domicílio conhecido do referido consumidor no território de um Estado‑Membro


TJ 11/4/2024 (C‑183/23, Credit Agricole Bank Polska / AB) decidiu o seguinte:

O artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

quando o último domicílio conhecido de um requerido, nacional de um Estado terceiro e que tem a qualidade de consumidor, se situa no território do Estado‑Membro do tribunal chamado a decidir e este não consegue identificar o domicílio atual deste requerido nem dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que este está efetivamente domiciliado no território de outro Estado‑Membro ou fora do território da União Europeia, a competência para conhecer desse litígio não é determinada pela lei do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal, mas sim pelo artigo 18.°, n.° 2 deste regulamento, que atribui competência para conhecer desse litígio a um tribunal em cuja área de jurisdição se encontra o último domicílio conhecido do referido requerido.

 

Jurisprudência 2023 (151)


Recurso; prazo; ampliação;
reapreciação de prova gravada


1. O sumário de RC 27/6/2023 (3892/12.7TBLRA-B.C1) é o seguinte:

I – A extensão em dez dias do prazo para interposição do recurso de apelação, que tenha por objeto a reapreciação de prova gravada, nos termos do disposto no art.º 638.º, n.ºs 1 e 7, do CPCiv., só colhe justificação quando se tratar de uma impugnação séria, não fictícia, assente em prova pessoal gravada.

II – Se a parte recorrente invoca pretender a reapreciação de prova gravada, mas a factualidade impugnada é totalmente irrelevante para a decisão do recurso ou apenas suscetível de prova documental, não é de conceder aquela extensão de prazo, com a consequência da rejeição do recurso, por extemporaneidade.


2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:

"Declaração de voto de vencido (art. 663.º, n.º 1, 2.ª parte do CPC)

Dissenti da decisão proferida maioritariamente por entender que, na situação sub judice, o recurso não devia ter sido rejeitado por extemporaneidade.

É sabido que, ressalvados casos especiais (processos urgentes e os previstos nos arts. 644.º, n.º 2 e 677.º do CPC), o prazo “normal” para a interposição do recurso é de 30 dias contados da notificação da decisão (art. 638.º, n.º 1 do CPC).

Todavia, nos termos do n.º 7 do aludido normativo, a esse prazo acrescem 15 [sic] dias quando o recurso “tiver por objeto a reapreciação da prova gravada”.

A questão que se coloca - e que tem propiciado alguma divergência jurisprudencial - é a de saber se este alargamento do prazo para interposição do recurso está ou não dependente do cumprimento pelo recorrente das exigências de impugnação da matéria de facto constantes do art. 640.º do CPC.

Contrariamente à visão que parece, no caso, ter feito vencimento, seguimos, a este propósito, a orientação – segundo se crê, maioritária - que vai no sentido de que a extensão do prazo em causa depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação [ - Neste sentido, v.g. acórdãos do STJ de 22.10.2015 (processo 2394/11.3TBVCT.G1.S1); 28.04.2016 (processo 1006/12.2TBPRD.P1.S1); 06.06.2018 (processo 4691/16.2T8LSB.L1.S1); 06.06.2019 (processo 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1); 19.06.2019 (processo 3589/15.6T8CSC-A.L1.S1); 24.10.2019 (processo 3150/13.0TBPTM.E1.S1); 21.10.2020 (processo 1779/18.9T8BRG.G1.S1) e de 14.09.2021 (processo 18853/17.1T8PRT.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.]

Desde logo por razões de hermenêutica e literalidade da norma, visto que o n.º 7 do art. 638.º apenas aponta para “a reapreciação da prova gravada” como objeto do recurso.

Depois pela inserção da norma no âmbito da admissibilidade dos recursos, em momento prévio e independente à apreciação do conteúdo ou teor da impugnação e da observância, ou falta de cumprimento, dos ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC, matéria que apenas compete ao tribunal superior.

Como se refere no acórdão do TRL de 27.10.2022 (processo 7241/18.2T8LRS-A.L1.2) “Uma coisa é o prazo de recurso, e seu acréscimo; outra, a existência de condições processuais para a apreciação da impugnação da matéria de facto ou para a sua rejeição”.

O que releva nesta sede é, tão só, perante as alegações apresentadas, verificar se o recorrente pretende a impugnação da matéria de facto sustentada em prova gravada, independentemente da avaliação a efetuar ulteriormente quanto ao cumprimento das exigências constantes do art. 640.º do CPC.

Ora, no caso, deixando de lado essa avaliação, apresenta-se inequívoco que a recorrente (insolvente) pretende impugnar factos cuja prova é sustentada em prova testemunhal que foi objeto de gravação.

Foi assim designadamente quando concluiu:

- “A douta sentença proferida nos presentes autos e da qual pelo presente se recorre não considerou como provados, factos que resultam quer da prova testemunhal (…), produzida nos presentes autos” (conclusão A),

- “com relevo para a boa decisão da causa e porque resulta da prova (…) testemunhal produzida nos presente autos, relativamente aos trabalhadores que a seguir se identificam, devem ser adicionados os seguintes factos à matéria de facto assente, o que se requer a V/ Exªs: (….)” (conclusão B),

face à prova (…) testemunhal produzida nos presentes autos, resultam provados os seguintes factos que se requer sejam adicionados à matéria de acto assente (…)” (conclusão F)

A prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos leva necessariamente à total procedência da impugnação dos créditos dos trabalhadores” (conclusão I).

Ora, no caso, deixando de lado essa avaliação, não sobram dúvidas em como a recorrente (insolvente) pretende impugnar factos cuja prova é sustentada em prova testemunhal que foi objeto de gravação (sessão de julgamento de 06.05.2022, sendo que nas demais apenas foram prestadas declarações de parte).

Entendo, como tal, que o recurso devia ter sido admitido e apreciadas as questões nele colocadas, no sentido, em curta síntese:

i) a impugnação da matéria de facto (com a sua rejeição por não terem sido cumpridos os ónus a que se refere o art. 640.º do CPC),

ii) a nulidade da sentença (com improcedência, por a eventual omissão de diligências probatórias prévias não implicar a nulidade da sentença)

e

iii) o erro de julgamento (com a sua procedência, na exata medida em que não se descortina em como a impugnação dos créditos efetuada pela insolvente relativamente a alguns dos trabalhadores - e não a todos consubstancie, sem fundamentação acrescida, abuso do direito (até porque quanto aos demais trabalhadores podem existir fundamentos que justifiquem esse posicionamento).

Paulo Correia"

15/04/2024

Gestão de negócios e processo


I. Apresentação do problema

1. O problema analisado nos acórdãos da RL de 26/10/2023 (6473/22.3T8ALM-A.L1-2) e de 9/11/2023 (6473/22.3T8ALM.L1-6) -- como se vê, proferidos no mesmo processo -- coloca a interessante questão de saber se é possível alguém ser autor agindo como gestor de negócios de outrem. Para simplificar, na exposição subsequente o primeiro acórdão é referido como "ac1" e o segundo acórdão como "ac2".

2. Segundo se afirma no relatório do ac1,

«Em 23/09/2022, A, “na qualidade de gestor de negócios da sua mãe” M intentou uma acção contra os compradores [irmã e cunhado dele, A] e o vendedor de uma fracção autónoma de que a mãe dele (dele, A) era arrendatária, para exercer direito de preferência naquela compra e venda, pedindo que fosse reconhecido tal direito de preferência da sua mãe e fosse transmitido a esta o direito de propriedade da fracção mediante o pagamento do valor da compra e venda, substituindo-se a mesma aos réus na escritura de compra e venda. Entre o mais dizia, no artigo 39, que “deverá o autor na sua qualidade de gestor de negócios considerar-se como parte legítima nos presentes autos.”»

No ac1, a RL enquadrou o caso sub iudice da seguinte forma:

"Ao intentar a acção, A não disse estar a fazê-lo em nome da sua mãe, antes invocou o seu próprio nome: autor, ele, A, em gestão de negócios da sua mãe (e está-se a considerar, tal como a decisão recorrida, a própria petição inicial e não o formulário da petição inicial, pelo que toda a argumentação do recorrente à volta do que colocou no formulário e das razões porque o fez, é irrelevante).

Logo, não se está perante uma gestão representativa." 

No ac2, o enquadramento da mesma questão pela RL é diferente:

"Não concordamos [...] que resulte dos autos que AS está a agir em nome próprio. Aliás, quando o mesmo diz que é parte legítima (artigo 39º da petição inicial), não diz que ele, AS, em seu próprio nome, é parte legítima, mas sim que ele, gestor de negócios da sua mãe, é parte legítima.

Mas voltamos a dizer, o que releva não é o nome que é dado, mas o negócio concreto e a gestão concreta do negócio que é feita. Quando esta gestão passa pela interposição de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa. [...]

Tendo concluído que AS está a agir em gestão de negócios representativa, naturalmente sem poderes, é convocado o artigo 268º do Código Civil [...]".

Não interessa agora resolver o dissídio de opiniões sobre o carácter da gestão de negócios assumida pelo autor de uma mesma acção e também não interessa considerar nem a coexistência dos dois acórdãos no mesmo processo, nem outros aspectos dos acórdãos da RL. A única questão que importa resolver é a de saber se alguém, assumindo-se como gestor de negócios de outrem, pode intentar uma acção, naturalmente como gestor e, portanto, como autor.

3. O ac1 ocupa-se de uma questão relativa à habilitação de herdeiros, porque, entretanto, a mãe do autor faleceu. O ac1 não trata, no entanto, da questão prévia que havia que apreciar: é possível alguém ser autor de uma acção através do regime da gestão de negócios? Da leitura do ac1 fica-se com a ideia de que a RL considera perfeitamente normal alguém propor uma acção actuando como gestor de negócios de outrem. O ac2 também não vê nenhum problema na atribuição de legitimidade processual a um gestor de negócios, principalmente porque, em sua opinião, no caso sub iudice a gestão é representativa. Importa verificar se é assim.

II. Enquadramento do problema

1. a) A primeira observação que há que fazer é a de que o regime da gestão de negócios não é transponível, sem mais, para o processo civil. Neste, o problema de saber se o gestor de negócios pode propor uma acção (sendo, naturalmente, autor nessa acção) coloca-se em termos de legitimidade processual. Sendo assim, o que importa analisar é se há fundamento para reconhecer legitimidade a um autor que se apresenta como gestor de negócios de outrem.

Mais em concreto: dado que o autor que intenta a acção como gestor de negócios não é o titular do direito invocado em juízo (quem é titular desse direito é o dominus), a propositura da acção por aquele gestor só pode ser enquadrada na substituição processual. Recorde-se que esta substituição ocorre quando está em juízo alguém que não é titular do direito alegado na acção e que se apresenta como tal. Sendo assim, o que se deve discutir é se há fundamento para atribuir a qualidade de substituto processual ao gestor de negócios, permanecendo o dominus como parte substituída.  

b) A este propósito convém deixar algumas referências básicas. Como é conhecido, o art. 30.º, n.º 3, CPC dispõe o seguinte:

"Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor."

Deixando de lado a confusão entre a legitimidade e o interesse, o preceito contém uma regra e uma excepção:

-- A regra é a seguinte: são partes legítimas os titulares da relação material controvertida (por exemplo, o credor e o devedor ou o proprietário reivindicante e o possuidor da coisa);

-- A excepção é a seguinte: para que seja reconhecida legitimidade processual a pessoas diferentes dos titulares da relação material controvertida, é necessário que tal resulte de uma "indicação da lei em contrário".

 A substituição processual pode ser legal ou voluntária:

-- A substituição é legal quando resulta da lei; é o caso daquela que está consagrada no art. 263.º CPC;

-- A substituição é voluntária quando a lei permite que alguém atribua legitimidade a quem não é titular do direito; no art. 34.º, n.º 1, CPC encontra-se um exemplo desta substituição quando se permite que um dos cônjuges dê o seu consentimento para a propositura de uma acção por um deles, mas em nome dos dois.

2. Como se sabe, a gestão de negócios pode ser representativa ou não representativa:

-- "a gestão representativa é a que o gestor assume e exerce diante de terceiros em nome do dono, se bem que privado de poderes para o fazer";

-- "na [gestão] não representativa, o gestor age em nome próprio, ainda que por conta e no interesse do dominus" (Andrade Pissarra, in Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado II (Coimbra 2021), Artigo 471.º, n.º 3).

Importa considerar na análise do problema respeitante à actuação do gestor como substituto processual do dominus cada uma destas modalidades da gestão de negócios.

III. Apreciação da solução jurisprudencial

1. a) Começa-se pelo caso em que o autor que actua em gestão de negócios propõe a acção indicando que o faz em representação de outrem, ou seja, o caso em que gestão é representativa e em que, portanto, o autor indica que actua em representação do dominus. A especialidade deste caso resulta de que a gestão de negócios fica sujeita a ratificação por aquele que teria legitimidade para ser autor (art. 471.º, n.º 1, e 268.º CC).

A propositura de uma acção através de uma gestão de negócios representativa poderia ser consistente com uma substituição processual voluntária, dado que a ratificação da gestão pelo dominus valeria como atribuição de legitimidade ao autor gestor. No entanto, a configuração da situação como uma substituição processual voluntária é bastante problemática:

-- Antes do mais, a ratificação que se regula nos art. 471.º, n.º 1, e 268.º CC é a ratificação do negócio concluído pelo gestor, não a ratificação da representação para a celebração do negócio; dito de outro modo: o que é ratificado pelo dominus é o negócio celebrado pelo gestor, não a gestão (que, aliás, já se completou com a celebração do negócio); coerentemente com este regime, a ratificação pelo dominus só devia acontecer depois do trânsito em julgado da decisão proferida na acção; o problema é que não faz sentido tramitar uma acção sem se saber se o dominus vai ratificar o seu resultado; sendo quase certo que essa ratificação não vai ocorrer se o resultado for uma decisão de improcedência, o réu não tiraria nenhuma vantagem da decisão de absolvição que conseguiu obter na acção; falha, por isso, ao contrário do que se entendeu no ac2, qualquer semelhança com a atribuição negocial de legitimidade processual ao substituto processual;
 
-- Acresce que, fora dos casos em que a substituição voluntária tem cobertura legal (isto é, em que se estabelece na lei que uma pessoa pode atribuir, por negócio, legitimidade processual a outra), a admissibilidade daquela substituição é muito discutível, porque à parte demandada não pode ser exigível que litigue contra alguém diferente do titular do direito; ora, a ratificação pelo dominus não pode constituir nenhuma justificação para que o demandado tenha de litigar com o gestor, e não com o titular do direito; 

-- Por fim, "[a negotiorum gestio] ocorre quando uma pessoa, desprovida de intuito de liberalidade e sem que tenha mandato ou autorização para tal, gira os assuntos de outra pessoa, no exclusivo interesse desta" (Menezes Cordeiro, in Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado II, Introdução (Artigos 464.º a 472.º), n.º 5); de acordo com esta noção, nunca se encontra preenchido um requisito característico da substituição processual voluntária: o de que o substituto processual tenha um interesse próprio na defesa de um direito alheio; no caso da gestão de negócios, verifica-se precisamente o contrário: o gestor está sempre a agir no interesse exclusivo do dominus negotii; a circunstância de a gestão de negócios ser representativa em nada altera a situação, porque, como, aliás, acontece em qualquer hipótese de representação, o representante não age em interesse próprio.

Do exposto pode concluir-se que não é possível enquadrar a propositura de uma acção através de uma gestão de negócios representativa como um caso de substituição processual voluntária.

b) Resta testar a hipótese de configurar a instauração de uma acção no regime de gestão representativa como uma substituição processual legal, ou seja, como uma substituição que decorre de um negócio admitido pela lei. O problema é que não se encontra no regime legal da gestão de negócios que consta dos art. 464.º ss. CC nenhuma base para se poder concluir que o dominus pode atribuir, por acto negocial, legitimidade ao gestor.

A conclusão não pode ser considerada surpreendente. A gestão de negócios caracteriza-se por alguém actuar, sem autorização, no interesse e por conta de outra pessoa (art. 464.º CC). A partir do momento em que o terceiro dá autorização para o gestor actuar em seu nome deixou de haver gestão (e passa a haver mandato ou qualquer outro negócio jurídico). Quer dizer: logo que, por acto negocial do dominus, for atribuída legitimidade processual ao gestor deixa de haver gestão.

c) Em suma: não é possível enquadrar a instauração de uma acção por um gestor que actua em representação do titular do direito na substituição processual, seja ela voluntária ou legal.

2. Passa-se agora a considerar a hipótese na qual o gestor propõe a acção não só em nome próprio, mas também sem indicação de que o faz em representação do titular do direito.

A instauração de uma acção através de uma gestão de negócios não representativa nem sequer pode ser considerada uma substituição processual, dado que o autor não revela que não é titular do direito. Esta situação tem uma solução muito fácil: alguém que está em juízo com base num direito alheio sem ter qualquer base legal ou convencional para o fazer só pode ser considerada uma parte ilegítima.

O que acaba de se afirmar recebe apoio no que dispõe no art. 471.º 2.ª parte CC: se a gestão for não representativa, aplica-se o regime do mandato sem representação (art. 1180.º ss. CC); pergunta-se: já alguma vez se admitiu que um mandatário sem representação tem legitimidade para propor uma acção em substituição do mandante?

3. Segundo o ac1, o autor da acção de preferência configurou a sua gestão como sendo uma gestão não representativa. O ac2 não viu nenhuma objecção à legitimidade do autor gestor, porque considerou que a ratificação pode resolver o problema. Salvo o devido respeito, nenhuma destas soluções é aceitável, pelo que o que se devia ter concluído no processo era que o autor não tinha legitimidade processual para se substituir à sua mãe no exercício de um direito de preferência. 

Não pode haver nenhuma admiração perante a conclusão precedente. Se assim não se entendesse, estaria descoberta a via para que, sempre que fosse possível a gestão de negócios, qualquer pessoa se pudesse substituir em processo a qualquer outra, bastando que invocasse que o faz como gestor de negócios. Isto contraria tudo o que se ensina sobre a função da legitimidade processual, que é a de limitar quem pode estar juízo litigando sobre um certo objecto e contra uma certa parte. Através do recurso à gestão de negócios, a legitimidade para a propositura de acções passaria a ser uma legitimidade "aberta".

Pode reforçar-se que a admissibilidade da gestão não representativa faz sentido no âmbito negocial, mas não faz nenhum sentido no campo processual. No âmbito negocial pode admitir-se que alguém não revele à outra parte que está a agir como gestor de negócios de outrem (o comprador não tem de revelar que está a comprar o selo raro que encontrou por um bom preço como gestor de negócios de um amigo); no campo processual, não é pensável um comportamento semelhante.

IV. Solução proposta (e única possível)

1. Salvo melhor opinião, não é possível justificar através da gestão negócios a atribuição da qualidade de parte processual ao gestor. Apesar disso, não pode deixar de se reconhecer que casos como aquele que se verifica nos acórdãos da RL (que, no fundo, se aproxima de uma incapacidade de facto do possível autor de uma acção) merecem uma resposta jurídica. Não constando do CPC nenhum regime para superar a incapacidade de facto de um possível autor, há que procurar encontrar uma solução.

A solução que se propõe é a seguinte: em vez de se utilizar a gestão de negócios para procurar justificar a atribuição da qualidade de parte ao gestor (empresa que, como se viu, está condenada ao fracasso), aquela gestão é utilizada para justificar a atribuição a esse gestor da qualidade de representante do dominus,

A diferença entre a solução que implicitamente se aceitou, embora com visões distintas, nos dois acórdãos da RL e aquela que agora se propõe é, em termos processuais, muito significativa:

-- Em vez de o problema ser analisado no âmbito da legitimidade processual (quem pode ser parte processual?), ele é considerado no plano da capacidade judiciária (quem pode representar uma parte processual?);

-- Em termos práticos, isso significa que, em vez de o gestor propor a acção em nome próprio (isto é, como autor), esse gestor propõe a acção como representante do dominus; o autor é o dominus e o gestor o seu representante.

2. Neste enquadramento, o problema é semelhante àquele que é resolvido pelo art. 49.º CPC no âmbito do patrocínio judiciário, ou seja, o problema é do mesmo tipo daquele que respeita ao exercício do patrocínio judiciário a título de gestão de negócios. O que está em causa em ambas as situações é uma situação de representação: no caso do art. 49.º CPC, a representação ocorre no âmbito do patrocínio judiciário; no caso agora em análise, a representação verifica-se no âmbito da capacidade judiciária. 

É verdade que no ac1 se refere o disposto no art. 49.º CPC, mas, salva a devida consideração, de uma forma equivocada, dado que nesse ac1 o que se estava a analisar era a admissibilidade de atribuir ao gestor a qualidade de parte processual. Uma coisa é um advogado assumir a representação de uma parte em juízo através da gestão de negócios; outra completamente diferente é alguém tornar-se parte através de uma gestão de negócios (o que, como é claro, aquele advogado não faz). 

Não parece que o ac1 tenha tomado em consideração a diferença entre os dois casos, chegado mesmo a concluir que "a comparação com a actuação de um mandatário representativo ajuda a compreender o regime" aplicável ao caso sub iudice (que era o de reconhecer ao gestor de negócios a qualidade de autor). Salva a devida consideração, não é assim. Do disposto no art. 49.º CPC -- que respeita a uma situação de representação assumida pelo gestor de negócios -- nunca se pode retirar nenhuma justificação para atribuir a qualidade de parte a esse gestor.

3. Atenta a semelhança entre a situação que é resolvida pelo disposto no art. 49.º CPC e aquela que consiste em atribuir ao gestor a qualidade de representante do dominus, a solução torna-se evidente: basta aplicar por analogia o disposto no art. 49.º CPC à representação processual assumida pelo gestor. Desta aplicação resulta o seguinte regime:

-- Em casos de urgência, a representação judiciária pode ser exercida por um gestor de negócios;

-- A parte representada tem de ratificar a gestão dentro do prazo fixado pelo juiz; se o não fizer, além de a acção não poder continuar, o gestor deve ser condenado nas custas que provocou e na indemnização do dano causado à parte contrária ou à parte cuja gestão assumiu;

-- O despacho que fixar o prazo para a ratificação deve ser notificado pessoalmente à parte cujo patrocínio o gestor assumiu.

 

MTS

Nota: agradece-se ao Doutor Nuno Andrade Pissarra a troca que opiniões que esteve subjacente â elaboração deste post.


Jurisprudência 2023 (150)


Citação;
réu estrangeiro*

1. O sumário de RC 12/7/2023 (5044/22.9T8CBR.C1) é o seguinte:

I –  Nos atos judiciais usa-se, ao menos por via de regra e salvo casos excecionais devidamente comprovados, a língua portuguesa – artº 133º nº1 do CPC.

II – Assim, afora tais casos, a citação deve ser efetivada, mesmo perante citando de nacionalidade estrangeira, em língua portuguesa, competindo a este, no prazo da contestação, diligenciar pela prova de não ter compreendido o seu teor e requerer em conformidade, vg. impetrando a tradução.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estatui o artº 191º do CPC:

«Nulidade da citação

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.

2 - O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação

E prescreve o artº 133º do mesmo diploma:

«Língua a empregar nos atos

1 - Nos atos judiciais usa-se a língua portuguesa.

2 - Quando hajam de ser ouvidos, os estrangeiros podem, no entanto, exprimir-se em língua diferente, se não conhecerem a portuguesa, devendo nomear-se um intérprete, quando seja necessário, para, sob juramento de fidelidade, estabelecer a comunicação.

3 - A intervenção do intérprete prevista no número anterior é limitada ao que for estritamente indispensável.»

Finalmente expressa o artº Artigo 197º:

«Quem pode invocar e a quem é vedada a arguição da nulidade

1 - Fora dos casos previstos no artigo anterior, a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato.

2 - Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição.

Perante estes nucleares  preceitos a pretensão recursiva meridianamente está votada ao insucesso.

Em primeiro lugar porque, como bem alega a recorrida, é extemporânea.

Os réus foram citados em 2.11.2022.

O prazo para arguir a nulidade é de trinta dias, pois que este foi o prazo concedido para a contestação – cfr. fls. 40.

Ora a arguição apenas foi efetivada em fevereiro de 2013, com o recurso da sentença.

Muito depois do terminus de tal prazo.

E nem se diga que ela podia ser arguida com tal recurso, nos termos dos artºs 615º nº4 e 616º do CPC.

É que esta possibilidade apenas emerge para as nulidades da sentença previstas no artº 615º do CPC.

Obviamente que a presente nulidade não quadra na previsão deste normativo, pois que ela assume o jaez de nulidade procedimental, rectius do próprio e liminar ato  da citação, cujo regime de arguição é específico e autónomo, nos termos dos artºs supra mencionados.

Em segundo lugar,  e mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e o recurso não soçobrasse por motivos formais, a pretensão sucumbiria por motivos substantivos, tal como outrossim é defendido pela recorrida.

A recorrente pugna que a citação é nula porque ela não compreende suficientemente a língua portuguesa, pelo que o teor da citação devia de vir traduzido.

Esta tese assume-se como totalmente peregrina, quer perante a lógica, quer perante os preceitos legais atinentes/pertinentes.

Naquela vertente há a considerar que sendo a citação o  primeiro ato processual cuja função é dar a conhecer ao réu a ação contra si instaurada e chamá-lo a juízo, naturalmente que o tribunal não  sabe se ele, mesmo sendo a citanda de nacionalidade estrangeira, não tem conhecimento da língua portuguesa.

Quantos imigrantes que chegam a Portugal, passados uns meses ou poucos anos, já dominam a língua portuguesa, ao menos o suficiente para inteligirem o essencial de uma citação judicial, ou seja, que ela vem de um tribunal, que é relativa a um processo  identificado por um certo número e que, indo dirigida a si, naturalmente que lhe diz respeito.

Aliás, esse é um dos poderes/deveres de um emigrante que emigra [sic] para Portugal ou para qualquer país: aprender o mais rápido possível a língua do país de acolhimento para mais facilmente  nele se integrar a todos os níveis: laboral, social, etc.

Ora os réus já estão em Portugal pelo menos desde 2005, ano em que arrendaram o locado, pelo que é suposto, razoável e sensatamente, concluir que eles já dominam a língua portuguesa o suficiente para compreenderem o significado, ou o possível significado, do teor duma citação enviada por um tribunal.

Mesmo que assim não fosse, o mínimo exigível aos réus - recebida a citação e porque ela lhes foi  enviada por um tribunal  em seu nome e, portando, lhes dizia respeito -, era dirigirem-se ao tribunal, colherem as informações a ela atinentes junto dos respetivos senhores funcionários, e requererem então o que tivessem por necessário.

Nada disto tendo feito e apenas mais de um mês depois e só após a sentença ter sido prolatada e notificada, terem enveredado pela tese da nulidade com o fundamento aduzido, demonstra mero oportunismo e atuação em desespero de causa, aliás, e como se viu, tardia.

Finalmente, e nesta última ótica legal, urge ter presente que, como supra referido, e pelo menos por via de regra, afora casos excecionais devidamente notificados/confirmados, nos atos judiciais usa-se apenas a língua portuguesa como instrumento comunicante.

Nada na lei obriga que estes atos sejam praticados, a priori e liminarmente, na língua da nacionalidade do citando se este for estrangeiro.

É que,  reitera-se, a qualidade de estrangeiro não implica, necessariamente, o desconhecimento da língua portuguesa.

Esta regra do uso da sua própria língua, como é intuitivo e do entendimento comum, é a emanação do poder soberano de cada país, e sendo que o uso da língua nacional é o reflexo e um dos fatores agregadores da sua identidade nacional e cultural.

Tal regra vigora em todos os ramos de direito, tanto privado como público.

Assim e para além do Acordão citado pela recorrida, o da RL de 18.06.2015, p. nº 1821/14.2T8CSC-B.L1-6, veja-se o estudo de Artur Flamínio da Silva, sob a epígrafe:

«A obrigatoriedade da utilização da língua portuguesa no procedimento administrativo», in Revista Julgar, on line, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/12/20191209,

no qual se expende:

«…a consagração do português como a língua do procedimento administrativo, enquanto concretização legislativa do constitucionalmente consagrado direito fundamental dos cidadãos à língua portuguesa, …São razões de eficiência administrativa que justificam a existência desta regra. …Neste contexto, importa reter que é complexa a imposição da utilização de língua estrangeira que exige a tradução de certa documentação, visto que implica um esforço económico que promove a assimetria informativa entre os cidadãos portugueses e a Administração ou, no limite, uma exigência que é desproporcional.»

Esta ideia de que a tradução – de português para língua estrangeira ou vice versa -  apenas pode emergir em casos de estrita e comprovada necessidade, estende-se aos próprios documentos juntos com a petição, ou juntos posteriormente.

Assim:

« A citação com entrega de uma petição inicial acompanhada de documentos escritos em língua estrangeira não enferma de nulidade, nem sequer de qualquer outro tipo de irregularidade.

« Tão-pouco é obrigatória a ulterior tradução dos documentos juntos em língua estrangeira; ela só terá de ser feita quando o juiz a ordene e o juiz só deverá ordená-la se, no seu prudente arbítrio, entender que a mesma é necessária, nomeadamente por não dominar a língua em causa.» - Ac. da RL de 28.05.2019, p. 19156/18.0T8LSB-B.L1-7, in dgsi.pt.

Ora no caso vertente, reitera-se, os réus não provaram que não tinham conhecimentos bastante da língua portuguesa para intuíram o teor da citação, minimamente e ao menos para despoletarem ulteriores diligências, vg. junto do tribunal, para, se dúvidas tivessem, as dissiparem, inteirarem plenamente do seu teor e significado junto do tribunal.

E poderiam tê-lo feito, pois que o prazo da contestação de trinta dias era suficiente para o efeito.

Aliás, do que dos autos emerge – docs de fls. 45 e sgs e  documentos ora juntos pela recorrida, e cuja junção se justifica considerando o fundamento do recurso, que é novo, porque não apreciado na sentença: artº 423º nº3 do CPC - , é que os réus,  rectius a recorrente, conhecem suficientemente a língua portuguesas para se  terem apercebido do teor e significado da citação.

Na verdade, tal suficiência foi atestada pelo agente de execução na notificação judicial avulsa para a resolução do contrato.

 E a ré, antes da citação, já tinha adquirido a nacionalidade portuguesa nos termos do artº 6º nº 1 da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro – Lei da Nacionalidade -  o qual, e para além do mais, exige para tal aquisição, os requerentes  «conheceram suficientemente a língua portuguesa».

Se, reitera-se, perante tal conhecimento, não encetaram diligências com vista a inteirarem-se plenamente  - se algumas dúvidas tinham - do conteúdo, significado e consequências da não contestação no prazo legal, sibi imputat.

Nesta conformidade, a inelutável conclusão final é que, nitidamente, o caso não encerra contornos factuais e jurídicos mínimos dos quais se possa vislumbrar  a existência da assacada nulidade da citação por falta de compreensão, decorrente do desconhecimento da língua portuguesa, dos aludidos teor e significado da citação."


*3. [Comentário] Dado que a citação ocorreu em território português, a RC decidiu bem. E decidiu bem não apenas porque aplicou a lei, mas também porque, resididindo os réus em Portugal desde 2005 e tendo a citação sido realizada em 2022, era exigível outra conduta a esses demandados.

Uma sugestão: atenta a crescente imigração para Portugal, talvez não fosse má ideia que a comunicação de certos actos processuais -- entre os quais necessariamente a citação do réu -- fosse acompanhada de uma mensagem em língua inglesa sobre a finalidade da comunicação.

MTS