"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/01/2014

A proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência: um novo princípio processual?




1. O acórdão da RG de 5/12/2013 decidiu um caso de investigação judicial da paternidade. Para além de um ou outro pitoresco elemento de facto, o acórdão chama a atenção pela circunstância de ter considerado improcedente a acção de investigação por entender que a petição inicial da autora não fornecia os elementos suficientes para justificar a procedência da causa, elementos esses que nem sequer seriam bastantes para justificar que o réu (investigado) se submetesse a uma exame hematológico para eventual comprovação da paternidade da autora.
Pode efectivamente discutir-se se os factos alegados pela autora seriam suficientes para justificar que o réu tinha a obrigação de se submeter a um exame hematológico; no acórdão, a RG entende que essa obrigação só existiria se tivessem sido alegados factos dos quais se pudesse concluir a existência da relação de filiação entre o réu e a autora. Pode duvidar-se de que o processo não tenha fornecido elementos suficientes para justificar a realização desse exame pericial (nomeadamente, a "confissão" feita pela mãe de que a filha não era do seu marido), mas não é essa a questão fundamental que o acórdão suscita.
O verdadeiro problema que o acórdão em análise levanta é o seguinte: tendo a 1.ª instância considerado que a matéria de facto alegada pela investigante é, em abstracto, suficiente para justificar a procedência da acção e, por isso, tendo esse tribunal omitido qualquer convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, pode a Relação considerar que essa matéria não é bastante para fundamentar a procedência da causa, a ponto de nem sequer justificar a realização pelo investigado de um exame hematológico?
A pergunta envolve uma questão fundamental, que é a seguinte: perante a insuficiência da matéria de facto alegada pelas partes, cabe ao tribunal de 1.ª instância convidar a parte a completar o seu articulado (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC); se esse tribunal não realizar esse convite, cabe perguntar se, no recurso interposto, a Relação pode julgar a acção improcedente com base numa por ela mesma entendida insuficiência da matéria de facto. Pode também perguntar-se se a Relação pode extrair outras consequências dessa insuficiência da matéria de facto.
Ao impor ao tribunal de 1.ª instância o dever de convidar as partes a completarem os seus articulados incompletos ou deficientes, a lei pretende repartir entre as partes e o tribunal o risco da improcedência da causa por insuficiência da matéria de facto, ou seja, pretende salvaguardar as partes, através de uma função assistencial do tribunal, do risco de não obterem a condenação ou a absolvição que solicitam por insuficiência dessa matéria. No entanto, se se considerar que essa insuficiência é irrelevante para a Relação e, portanto, se se admitir que este tribunal pode considerar a acção improcedente atendendo a essa insuficiência, então o risco da improcedência da causa passa a recair exclusivamente sobre a parte que não foi convidada a aperfeiçoar o seu articulado. Noutros termos: se se entende que a insuficiência da matéria de facto não obsta ao proferimento de uma decisão de improcedência pela Relação, então o risco da improcedência que o convite ao aperfeiçoamento procura retirar à parte passa a recair exclusivamente sobre esta mesma parte. Em suma: o que a lei pretende evitar na 1.ª instância é o que, não tendo sido evitado, passa a constituir fundamento da decisão da 2.ª instância.
O sumariamente descrito basta para que se possa concluir que uma insuficiência da matéria de facto não detectada na 1.ª instância não pode constituir fundamento de uma decisão de improcedência decretada pela 2.ª instância (e, a fortiori, não pode constituir justificação para extrair outras consequências, como, por exemplo, a não obrigação de uma das partes se submeter a um exame hematológico).
Se se pretender teorizar um pouco a situação, poderá dizer-se que a 2.ª instância não pode onerar a parte com o risco da improcedência decorrente da insuficiência da matéria de facto. Se esse risco deve ser combatido na 1.ª instância com o convite dirigido à parte para aperfeiçoar o seu articulado, então a Relação não pode fazer recair sobre essa parte esse mesmo risco. Numa época em que se generaliza a construção de novos princípios processuais, talvez se possa falar do princípio da proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência.
A lei fornece a solução para evitar esta oneração pela Relação do risco da improcedência: a solução é a anulação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância com base na deficiência do julgamento da matéria de facto (art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC), desde que essa deficiência seja entendida, não por referência à matéria de facto constante da causa, mas por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a parte tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pela 1.ª instância.
 
2. Independentemente de qualquer anuência ao que acima se afirma, parece claro que o assunto merece ser analisado e aprofundado.

MTS