"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/09/2014

Presunções judiciais e competência (decisória) do STJ




1. De acordo com o seu sumário, o STJ 9/7/2014 decidiu o seguinte:

1. Na definição legal, a declaração tácita é a que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam – art. 217,º n.º 1 do CC.

2. Os factos de que a vontade se deduz são os factos concludentes ou significativos, no sentido de se poder afirmar que, segundo os usos da vida, há toda a probabilidade de que o sujeito tenha querido, realmente, o negócio jurídico cuja realização deles se infere.

3. Na declaração tácita, entre os factos concludentes e a declaração há um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo. A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles.

4. Esta presunção, na declaração tácita propriamente dita, é judicial, sendo-lhe aplicável todo o respectivo regime legal: cabe ao juiz apurar se, de certo comportamento, se pode deduzir, de modo indirecto, mas com toda a probabilidade, certa vontade negocial.

5. As presunções judiciais não são propriamente meios de prova, mas ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349.º do CC).

6. Constitui jurisprudência corrente que é lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la.

7. Ao STJ está, porém, vedado o uso de presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados – cfr. art. 674.º, n.º 3 do CPC.

8. Por outro lado, o Supremo só pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.

9. A questão de saber se houve ou não erro por parte da Relação ao não usar de uma presunção judicial é insindicável pelo Supremo, que não pode fazer mais do que suprimir o facto presumido (nos termos referidos).

10. Mesmo não sendo confessório, o tribunal pode valorar livremente o depoimento de parte, desde que o faça cotejando-o com a demais prova produzida.

2. No acórdão cujo sumário foi transcrito, o STJ mantém aquela que tem sido a sua orientação quanto à sua competência (decisória) para conhecer de presunções judiciais. Esta orientação pode ser resumida nas seguintes premissas:

– O STJ não pode, em princípio, sindicar o uso de presunções judiciais pelas instâncias; no entanto, excepcionalmente, o STJ “pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela[s] ofende[m] qualquer norma legal, se padece[m] de alguma ilogicidade ou se parte[m] de factos não provados”;

– Ao STJ está vedado o uso das presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados pelas instâncias, o que significa que o STJ não pode extrair presunções judiciais não extraídas pelas instâncias.

Quer dizer: segundo esta orientação, o STJ só em casos excepcionais pode controlar as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, mas nunca pode controlar a não utilização pelas instâncias dessas presunções.

3. Esta orientação é muito discutível. Uma coisa é o STJ não poder considerar provados factos dados como não provados nas instâncias ou não poder julgar não provados factos considerados provados nas instâncias; outra coisa bem distinta é o STJ não poder inferir outros factos, através de presunções judiciais, dos factos dados como provados nas instâncias.

Além disso, também parece demasiado artificial admitir, ainda que apenas em casos excepcionais, o controlo do uso de presunções judiciais pelas instâncias e não admitir, mesmo que apenas igualmente em hipóteses excepcionais, o controlo da não utilização dessas presunções pelas instâncias. 

Mais até: a referida orientação não parece coerente com a posição – agora prevalecente no próprio STJ – segundo a qual o STJ pode controlar tanto o uso, como o não uso pela Relação dos poderes que a esta são atribuídos pelo art. 662.º CPC. O argumento que pode ser utilizado é o seguinte: o art. 662.º, n.º 1, CPC impõe que a Relação altere a decisão proferida pela 1.ª instância sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento impuserem decisão diversa; essa alteração pode ser imposta pela aplicação pela Relação de uma presunção legal, ou seja, pode suceder que a Relação deva alterar a decisão sobre a matéria de facto na sequência da inferência de um facto de outro facto através de uma presunção judicial; logo, o STJ, ao considerar que não pode controlar o não uso pela Relação de uma presunção judicial restringe indevidamente o âmbito de aplicação do disposto no art. 662.º, n.º 1, CPC. No fundo, o que o STJ acaba por fazer é uma interpretação restritiva do art. 662.º, n.º 1, CPC: o STJ pode controlar se a Relação deixou de alterar, como se lhe impunha, a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância, excepto se a necessidade de alteração decorrer da utilização de uma presunção judicial.

A verdade é que, coerentemente com a posição do STJ sobre o controlo sobre o não uso pela Relação dos poderes que a esta são atribuídos pelo art. 662.º CPC, o STJ também não pode deixar de controlar a omissão do uso pela Relação de uma presunção judicial. Por exemplo: se um facto está provado documentalmente, cabe ao STJ controlar se a Relação deixou de aplicar uma presunção judicial e de extrair desse facto o factum probandum. A alternativa - que consistiria em este facto ser dado como não provado, sem possibilidade de o STJ controlar o não uso pela Relação daquela presunção judicial -- não é aceitável.

4. Num outro âmbito, merece também referência a conclusão do STJ de que o depoimento de parte, quando não tenha força confessória, pode (deve) ser livremente valorado pelo tribunal. A solução não levanta problemas, embora seja discutível que a mesma possa decorrer do disposto no art. 361.º CC (que se refere, não ao reconhecimento não confessório, mas antes ao reconhecimento confessório que, por falta de pressupostos, não pode valer como confissão). Bastante mais convincente são os argumentos retirados dos art. 7.º, n.º 2, e 411.º CPC: se o tribunal pode solicitar o depoimento da parte, é coerente que possa apreciar livremente esse depoimento na parte em que ele não possa valer como confissão.


MTS