"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/06/2014

Legislação europeia (Processo Civil Europeu) (4)



-- Regulamento (EU) n.º 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de maio de 2014 que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial (JO L 189, de 27/6/2014).

Nota: sobre os antecedentes deste importante acto europeu, cf. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que cria uma decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial (COM(2011) 445 final, de 25/7/2011).



Poderes da Relação em matéria de facto; não uso pela 1.ª instância de poderes inquisitórios




1. Pelo seu interesse, divulga-se uma recente decisão proferida numa das Relações, cujo sumário é o seguinte:

“I - O actual artigo 662.º do CPC configura uma clara evolução do sentido conferido pela lei à reapreciação da matéria de facto, tendo claramente consagrado a autonomia decisória dos Tribunais da Relação, aos quais compete formar e formular a sua própria convicção e, bem assim, conferindo-lhes a possibilidade de renovação de certos meios de prova e mesmo a produção de novos meios de prova, em casos de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.

II - Esta medida não significa a possibilidade de realização de um novo julgamento, destinando-se antes a servir para firmar uma convicção mais segura sobre determinado facto controvertido, devendo a Relação avaliar a prova que foi ou deveria ter sido produzida, mediante critérios objectivos que, atentas as circunstâncias, revelem a imprescindibilidade ou não de uma tal diligência complementar, visando sempre a superação de dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada.

III – Verificando-se a existência de tal dúvida fundada sobre o alcance da prova produzida, e não tendo sido determinada oficiosamente em primeira instância diligência reputada absolutamente essencial à formação da convicção quanto à prova ou não prova daquele facto cuja reapreciação é pedida pela recorrente, em obediência aos princípios da celeridade e da economia processual, é função do relator ordenar as diligências que considere necessárias, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, alínea d) [sic; leia-se b)], do CPC, que concretiza o poder de direcção do processo pelo juiz genericamente consagrado no artigo 6.º da referida codificação, tornando desnecessário que o processo baixe à primeira instância para recolha de uma prova essencial nos termos sobreditos e que o tribunal da Relação pode, por si mesmo, obter”.

2. O que estava em causa era saber se, num processo de insolvência, a reclamação de um crédito tinha sido apresentada dentro do prazo. Estavam juntos ao processo dois documentos com datas diferentes quanto à expedição da referida reclamação; fazendo uso do disposto no art. 411.º nCPC, o juiz da 1.ª instância solicitou ao Administrador de Insolvência que confirmasse o recebimento da reclamação apresentada numa dessas datas; perante a resposta negativa, o mesmo juiz não solicitou ao Administrador a confirmação da recepção da reclamação que o reclamante alega ter enviado na outra data e deu como não provado que a reclamação tivesse sido enviada em qualquer das referidas datas.

Neste contexto, a Relação entende que, fazendo uso do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. b), nCPC, pode solicitar ao Administrador da Insolvência o esclarecimento sobre a correspondência que lhe teria sido remetida na outra data.

3. O caso é particularmente interessante, porque se prende com o não cumprimento pela 1.ª instância do dever de cooperação do tribunal. Mais em concreto: o caso mostra que o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. b), nCPC também pode ser utilizado para sancionar o não cumprimento pelo tribunal de 1.ª instância do dever de cooperação em matéria probatória, ou seja, para sancionar a falta de uso dos poderes inquisitórios que lhe são atribuídos pelo art. 411.º nCPC.

Pela minha parte, tenho entendido que o estabelecido no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC pode ser utilizado nos casos em que a violação do dever de cooperação se se traduz na não utilização pela Relação do dever de convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4). O caso em análise mostra que o art. 662.º, n.º 2, al. b), nCPC pode ser utilizado nas situações em que a violação do dever de cooperação se verificou em matéria probatória. Isto significa que vai fazendo o seu caminho a orientação segundo a qual (i) compete à Relação sancionar o não cumprimento do dever de cooperação pela 1.ª instância e (ii) a Relação está impedida de apreciar e decidir o recurso como se essa violação não tivesse existido.


MTS

27/06/2014

Paper (24)


-- Mullenix, L. S.,  Discovering Truth and the Rule of Proportionality (06.2014)

24/06/2014

Jurisprudência (20)


Responsabilidade civil do mandatário judicial; perda de chance

É o seguinte o sumário de RC 27/5/2014:

"1. O dever do mandatário traduz-se, como é genericamente reconhecido, numa obrigação de meios e não de fins ou resultados, não tendo o mesmo a obrigação de ganhar a causa, mas apenas a de defender de forma cuidada os interesses do mandante, segundo as regras da arte e direcionado ao ganho do processo. 

2. Com a omissão do R., que não interpôs recurso de decisão desfavorável aos AA., fica afastada a possibilidade destes verem reapreciada a decisão, frustrando-se qualquer expectativa que pudessem ter no ganho da acção, no que se traduz a “perda da chance” ou a “perda da oportunidade” do ganho da causa. 

3. O art.º 563 do C.Civil vem consagrar a chamada teoria da causalidade adequada, ao dispôr que a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

4. A avaliação dos danos indemnizáveis tem de passar assim por um juízo de prognose  póstuma, ou seja, por uma avaliação sobre as probabilidades de êxito da pretensão dos AA. naquele processo. Só há lugar à obrigação de indemnizar por perda da chance, se há uma probabilidade elevada de ganho da acção. 

5. Decidindo a sentença recorrida, o que os Recorrentes não questionaram, que não haveria uma probabilidade séria e consistente na chance dos AA. conseguirem a procedência dos embargos, forçoso se torna concluir que a omissão do R. não foi causa adequada da sua perda da oportunidade em obter ganho de causa."


Jurisprudência (19)



Acção de honorários; competência material

O sumário de RC 3/6/2014 é o seguinte:


"I - Não obstante a previsão do artigo 76.º, n.º 1, do CPC (hodiernamente, artigo 73.º [do nCPC]), para o conhecimento de acção de honorários de mandatário judicial é materialmente competente, não o tribunal criminal onde correu termos o processo no qual foi prestado o serviço, mas o tribunal de competência genérica ou de competência específica em matéria cível.

II - Efectivamente, aquele normativo prevê a competência territorial por conexão, sendo irrelevante quanto à competência material."

Afirma-se no acórdão:

"[...] escreveu o saudoso Professor Alberto dos Reis [Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, [2.ª ed., 1960,] pág. 204]:

«É manifesto que o art. 76.º nada tem a ver com a competência em razão da matéria; tem unicamente por fim resolver um problema de competência territorial, supondo, por isso, já resolvidos os problemas de competência que logicamente está antes deste, e consequentemente o problema da competência em razão da matéria.

Sendo assim, é bem de ver se o tribunal perante o qual foi exercido o mandato […] não é competente em razão da matéria, para conhecer da questão de honorários, o preceito do art. 76.º não pode funcionar. O artigo manda propor a acção no tribunal da causa em que foi prestado o serviço; com esta determinação não quis atribuir-se competência ao tribunal da causa, seja qual for a sua natureza, para conhecer da acção de honorários; o que quis prescrever-se foi que, se esse tribunal tiver competência objectiva para julgar a acção de honorários, a essa competência acrescerá a competência territorial para a referida acção. Por outras palavras: o art. 76.º pressupõe necessariamente que o tribunal da causa tem competência, em razão da matéria, para conhecer da acção de honorários; e partindo desse pressuposto, atribui-se-lhe também competência, em razão do território, para a mesma acção.

Se o pressuposto falha, como no caso do mandato ter sido exercido perante um tribunal militar, administrativo, fiscal, etc., cessa a disposição do artigo [...]»."



21/06/2014

Legislação europeia (Processo Civil Europeu) (3)


-- Regulamento de Execução (UE) n.º 663/2014 do Conselho de 5 de junho de 2014 que substitui os anexos A, B e C do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 relativo aos processos de insolvência (JO L 179, de 19/6/2014)


Revelia do réu: uma incongruência normativa




1. A Comissão que, em 2010 e 2011, foi chamada a colaborar na reforma do processo civil tinha apenas por missão propor algumas medidas mais urgentes em áreas nas quais a prática mostrava que havia disfuncionalidades e bloqueios. Nunca teve mandato para proceder a uma reformulação geral do CPC e nunca isso esteve no seu espírito. Pelo contrário: a Comissão sempre trabalhou na pressuposição de que o que propunha era a última revisão do CPC antes da construção, de raiz, de um novo CPC.

Uma das áreas em que havia que fazer um trabalho cuidadoso na preparação de um novo CPC é aquela que respeita às relações entre o direito interno e o já vasto processo civil europeu. Haveria que determinar que adaptações é que se imporiam ao direito interno em função do direito europeu e que desarmonias entre o direito interno e o direito europeu deveriam ser evitadas.

2. O estabelecido no art. 18.º Reg. 861/2007 (relativo ao processo europeu para acções de pequeno montante) mostra uma das desarmonias que teria sido necessário colmatar. Esse preceito estabelece a possibilidade da revisão de uma decisão proferida numa acção de pequeno montante em que se verificou a revelia do demandado quando:

A notificação do formulário de requerimento ou a citação para comparecer numa audiência tenham sido efectuadas segundo um método que não fornece prova da recepção pelo próprio requerido (art. 18.º, n.º 1, al. a) i), Reg. 861/2007);

– A citação ou notificação não tenha sido transmitida ao requerido com a antecedência suficiente para lhe permitir preparar a sua defesa, sem que tal facto lhe possa ser imputado (art. 18.º, n.º 1, al. a) ii), Reg. 861/2007);

– O requerido tenha sido impedido de contestar o pedido por motivo de força maior ou devido a circunstâncias excepcionais, sem que tal facto lhe possa ser imputado (art. 18.º, n.º 1, al. b), Reg. 861/2007).

Este regime contrasta profundamente com o regime interno em matéria de revelia do réu: a única hipótese que o réu revel tem de impugnar a decisão proferida à revelia é a demonstração da falta ou da nulidade da sua citação (art. 696.º, al. e), nCPC). Assim, por exemplo, se a citação edital tiver sido devidamente utilizada pelo tribunal da acção, não há qualquer forma de o demandado impugnar a decisão proferida à sua revelia.

3. Para além de o direito português ser muito mais restritivo do que outros direitos em matéria de expurgação da revelia, sucede que a convivência do regime europeu em matéria de acções de pequeno montante com o regime interno português mostra uma desarmonia dificilmente aceitável:

– Se a acção – cujo valor não pode exceder € 2.000 (art. 2.º, n.º 1, Reg. 861/2007) – seguir o regime do processo europeu para acções de pequeno montante, é possível a revisão da decisão proferida nos termos do art. 18.º, n.º 1, Reg. 861/2007;

– Se a acção – que pode referir-se a interesses patrimoniais significativos ou que pode incidir sobre interesses não patrimoniais – seguir a forma do processo comum, só é possível atacar a decisão proferida nos termos muito restritos do art. 696.º, al. e), nCPC.

 
MTS

18/06/2014

Paper (23)


-- Jones, O. D./Wagner, A, D./Faigman, D. L./Raichle, M. E., Neuroscientists in court, Nature Reviews Neuroscience 14 (2013), 730

17/06/2014

Uma desarmonia no nCPC


1. Em substituição do anterior incidente de aclaração (cf. art. 669.º, n.º 1, al. a), aCPC), o nCPC estabelece que qualquer ambiguidade ou obscuridade de que padeça a decisão só é relevante se a tornar ininteligível: nesta hipótese, a decisão é nula (art. 615.º, n.º 1, al c), nCPC). Os art. 666.º e 685.º estendem este regime aos acórdãos dos tribunais superiores.

Se uma decisão ou um acórdão for efectivamente ininteligível, ou seja, se não for possível determinar o seu sentido, compreende-se mal que o tribunal de recurso possa tomar outra posição que não seja a de mandar baixar a decisão ou o acórdão ao tribunal a quo, para que este possa explicar-se melhor e fazer-se compreender. Infelizmente, não é esse o regime legal, dado que o conhecimento das nulidades das decisões no nCPC não foi adaptado (também mea culpa...) a esta nova nulidade processual:

-- O art. 665.º, n.º 1, nCPC  estabelece que a Relação, ainda que declare nula a decisão da 1.ª instância por ininteligibilidade, conhece do objecto do recurso;

-- O art. 684.º, n.º 1, nCPC -- através da remissão para o art. 615.º, n.º 1, al. c), nCPC -- estabelece que o STJ supre a nulidade por ininteligibilidade, declara em que sentido a decisão deve considerar-se modificada e conhece dos outros fundamentos do recurso.

Em ambos os casos, a lei institui um regime de substituição, quando logicamente deveria estabelecer um regime de cassação.

2. O regime legal não levanta problemas quando é o próprio tribunal que proferiu a decisão ou o acórdão que, pela inadmissibilidade do recurso, aprecia, por reclamação da parte, a alegada ininteligibilidade (art. 615.º, n.º 4, 666.º e 685.º). Nesta hipótese é o próprio órgão judicante que é chamado a explicar-se ou a fazer-se compreender.


3. Uma observação complementar: o nCPC mantém a diferença -- que já existia no aCPC -- no conhecimento das nulidades da decisão da 1.ª instância pela Relação (art. 665.º, n.º 1: sempre regime de substituição) e das nulidades do acórdão da Relação pelo STJ (art. 684.º, n.º 1 e 2: nalguns casos regime de substituição, noutros regime de cassação). A justificação para esta diferença de tratamento de uma mesma nulidade não é nada evidente. Perante, por exemplo, uma omissão de pronúncia da 1.ª instância, a Relação substitui-se ao tribunal recorrido; perante uma omissão de pronúncia da Relação, o STJ não pode substituir-se à Relação e deve solicitar a esta que se pronuncie.


MTS

Paper (22)


-- Honorati, C., Provisional Measures and the Recast of Brussels I Regulation: A Missed Opportunity for a Better Ruling (05.2014)

16/06/2014

Breves nótulas sobre o controlo pela Relação da omissão do dever de cooperação da 1.ª instância





I – Na obra acabada de sair (II Volume) de Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro defendem que “nos casos verdadeiramente excepcionais nos quais o tribunal ad quem entende que a justa composição do litígio exige um aperfeiçoamento da articulação, o relator (art. 652.º, n.º 1, al. d)), por iniciativa própria ou concertado com dos juízes adjuntos (art. 658.º), deve convidar a parte a aperfeiçoar a sua alegação de recurso, nela fazendo incluir, querendo, a arguição da nulidade por omissão do despacho do convite ao aperfeiçoamento – nulidade só agora cognoscível pela parte, já que o tribunal a quo havia considerado a factualidade alegada suficiente –, fazendo-o subsidiariamente – nos termos previstos no art. 636.º, n.º 1, quando a acção tenha sido julgada procedente –, acautelando o acolhimento desta solução plausível de direito pelo tribunal ad quem. Na alegação subsidiária, a parte deverá logo revelar a factualidade omitida, se ela efectivamente existe, de modo a que o colectivo possa ajuizar da relevância da sua alegação” (5.4.1) (página 126 e ss.).


Desta forma – concluem – “se transpõe para a instância de recurso – já não do articulado –, de direito e de facto, orientado por uma solução plausível de direito”.
Com o devido respeito pela douta opinião dos ilustres autores (e é todo), tendo apenas em mente contribuir para a discussão da temática referida, atrevo-me a dizer o seguinte a este respeito:


1.º - Nos termos do disposto no artigo 652.º,n.º 1, alínea d), do CPC, compete ao relator “ordenar as diligências que considere necessárias”. Estas diligências a que a lei se refere são apenas as relativas à decisão do recurso, rectius, à boa decisão por parte do tribunal ad quem. Apenas e só. E, como sabido, a decisão do tribunal ad quem tem por objecto a decisão do tribunal a quo.


Ao relator apenas cabe julgar nos apertados casos previstos na alínea c) do mesmo preceito legal e, mesmo assim, sujeito à supervisão da conferência, nos casos em que a parte vencida não se conforme.


Nos tribunais superiores as decisões (de fundo) são colegiais, o que significa que nada autoriza a incumbência que é feita ao relator para ordenar o convite ao aperfeiçoamento dos articulados.


2.º - Caso o juiz de 1.ª instância, por circunstâncias várias, não exerça o poder vinculado do convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 2) comete nulidade processual sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3, e 201.º).


Caso a nulidade derivada da referida omissão não seja arguida atempadamente pela parte interessada, forçoso é concluir que a mesma está definitivamente sanada. 


3.º - O relator (e/ou a conferência), ao convidar a parte a aperfeiçoar articulado que passou o crivo da apreciação do juiz a quo (bem ou mal), como proposto, comete ele (ou ela) próprio (a) nulidade, esta prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.


4.º - Ao tribunal de recurso compete apreciar a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância; a este cumpre decidir tendo em conta os allegata et probata. Assim sendo, parece-me que o tribunal da Relação não se pode substituir ao tribunal da 1.ª instância no cumprimento do preceituado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC.


5.º - Definitivamente está consagrado no direito positivado o princípio da cooperação. Ele aparece consagrado logo no artigo 7.º do CPC, mas tem tradução prática na alínea b) do n.º 2 do artigo 590.º do mesmo diploma: princípio da cooperação habemus – há que o respeitar na sua plenitude.


Como? Veremos.


II – Mais à frente (5.4.2), os autores acabam por reconhecer que não cabe nos poderes da Relação suprir nulidades secundárias (sanadas). Se bem enxergo, parece haver contradição na tese que perfilham ao defenderem que lhe cabe o papel de “revelar às partes a eventual ocorrência da nulidade”.


Pergunto: se a nulidade derivada do facto da omissão do juiz a quo por não ter providenciado pelo aperfeiçoamento dos articulados, transgredindo o postulado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC, está sanada, qual o efeito útil de tal revelação?!


Faço notar que, segundo a tese avançada, ao tribunal da Relação são cometidos poderes de decisão sobre o já julgado e, concomitantemente, poderes de apreciação de factos articulados ex novo, por via do apregoado convite ao aperfeiçoamento não levado a cabo na 1.ª instância.


Ora, a sede própria e única para alegação dos factos constitutivos do seu direito do autor e, ainda, dos (eventuais) factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele mesmo direito (estes a cargo do réu, obviamente) é a 1.ª instância.


III – Em nota de rodapé, insurgem-se os ilustres autores contra a proposta avançada por Teixeira de Sousa (cfr. Blog do IPPC), segundo a qual a solutio da quaestio passaria pela anulação da decisão proferida com o fito de alargar a base factual, sanando, dest’arte, a omissão decorrente da já aludida transgressão ao preceituado no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC. Acreditam que a solução proposta “pode levar a resultados indesejados, quando, anulando o processado, a parte não acolhe o convite ao aperfeiçoamento: neste caso, estaremos perante uma anulação perfeitamente inútil. Em qualquer caso, trata-se de uma decisão surpresa, …”.


Que a solução proposta acarreta resultados indesejados, estou de acordo: todas as anulações acarretam prejuízos decorrentes do atraso na realização da justiça do caso concreto.


É uma proposta arrojada, sem dúvida e que, por certo, levantará objecções e oposições, mas que tem apoio nos amplos poderes que o nCPC concedeu à Relação em matéria de ampliação da matéria de facto.


Vistas bem as cousas, se a Relação pode ordenar ex officio a ampliação da matéria de facto alegada, qual a razão de não poder ordenar que a 1.ª instância diligencie por isso mesmo, na justa medida em que tal decisão resulta directamente do facto de não ter feito uso, como devia, dos poderes vertidos na já referida alínea b) do n.º 2 do artigo 590º do CPC?


Decisão surpresa?


A decisão que anula não é uma decisão: ela não diz às partes se têm ou não têm direito a algo.


Podem elas (as partes) ficar surpreendidas, mas não ficam prejudicadas, pois nada foi decidido com a anulação. Esta (bem ou mal determinada) tem por finalidade encontrar a boa decisão. A decisão de anulação é, pois, uma não decisão.


A anulação não se pode considerar inútil pelo facto de a parte não responder ao convite: nesse caso a acção não poderá deixar de improceder: não poderá a parte queixar-se de que não foi avisada – sibi imput a improcedência! 


Assim sendo, como me parece que é, não vejo razão para apelidar de decisão surpresa a decisão que ordene a anulação do julgado para os fins propostos.


IV – A posição dos autores parece assentar num ponto, qual seja o poder de substituição do julgado em 1.ª instância que assiste ao tribunal da Relação. Se assim é, então terei de dizer que olvida um ponto deveras importante: é que esse poder só está ao alcance da Relação quando esta tem todos os elementos para decidir (ut artigo 665.º, n.º 2 – “… sempre que disponha dos elementos necessários), não quando esses elementos estão em falta.


V – Ficou a pergunta no ar: como solucionar a questão da transgressão do artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC?


Fica aqui o aplauso para o arrojo da proposta dos ilustres magistrados. Dela discordo pelas razões sinopticamente assinaladas.


Pela anulação do julgado, como avança Teixeira de Sousa? Do ponto de vista da ortodoxia dos princípios consagrados no nCPC parece-me que nihil obstat. E na prática? Não será fácil. Veremos…


VI – Uma coisa parece certa: há que discutir, encontrar caminhos e estar atento à forma como os tribunais de 2.ª instância vão tentar resolver esta vexata quaestio.



Urbano Dias