"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/07/2014

Validade da decisão; "discursive dilemma"



1. O sumário de STJ 17/6/2014 é o seguinte:

“I. Se na prolação de um Acórdão, ambos os Adjuntos seguirem uma fundamentação diversa da porfiada pelo Relator, sem embargo de o resultado poder ser idêntico, o caminho para o alcançar não é igual, pelo que tal Aresto assim obtido mostra-se lavrado «sem o necessário vencimento», a que se alude no normativo inserto no artigo 716.º, n.º 1, do CPCivil [= art. 666.º, n.º 1, nCPC], porquanto se não seguiram os items aludidos no artigo 713.º [= art. 663.º nCPC], do mesmo diploma legal.

II. O Acórdão proferido com dois votos de vencido no que tange à fundamentação é nulo.

III. Esta nulidade é insuprível pelo Tribunal ad quem, devendo a mesma ser colmatada pelo Tribunal a quo e neste pelos mesmos Juízes que participaram na elaboração do Acórdão.

O acórdão não merece nenhuma censura: é efectivamente nula a decisão que, num tribunal colectivo, seja lavrada sem o necessário vencimento (art. 666.º, n.º 1, e 685.º, n.º 1, nCPC), isto é, em contradição com o sentido maioritário dos juízes do tribunal. O regime legal só se refere às decisões colectivas dos tribunais superiores, mas é necessariamente aplicável a qualquer decisão de qualquer tribunal colectivo.

O acórdão em referência também é interessante por permitir uma reflexão sobre a relevância dos fundamentos da decisão para a validade desta e, em especial, sobre a relevância da fundamentação de cada um dos juízes do tribunal colectivo para essa mesma validade. Normalmente, na análise das situações de nulidade da decisão, é descurado o aspecto relacionado com a necessidade de a decisão corresponder ao sentido maioritário dos juízes. O acórdão chama a atenção para este aspecto.

2. É um dado bem conhecido que a decisão tem de estar em consonância com os seus fundamentos. Assim, por exemplo, a decisão não pode ser condenatória do devedor demandado quando dos fundamentos consta o pagamento da dívida por esse mesmo devedor. No direito português, a contradição entre os fundamentos e a decisão conduz à nulidade desta (art. 615.º, n.º 1, al. c), 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC).

Menos conhecida é a relevância que deve ser concedida à fundamentação de cada um dos juízes de um tribunal colectivo. Como o acórdão mostra, a maioria tem de se formar ao nível desta fundamentação, não sendo suficiente uma concordância maioritária ou mesmo unânime quanto ao sentido (absolutório ou condenatório) da decisão. Se um juiz vota a decisão com o fundamento x e dois outros juízes votam essa mesma decisão com o fundamento y, a decisão tem de ser tomada por maioria com base no fundamento y. É por isso que, como se diz no acórdão, a decisão tomada por três juízes não pode ter dois votos de vencido. Estes votos de vencido correspondem, afinal, ao sentido maioritário da opinião dos juízes e, portanto, à decisão que deveria ter obtido vencimento.

3. A relevância concedida aos fundamentos da decisão colectiva conduziu à descoberta do chamado discursive dilemma ou doctrinal paradox (para uma primeira aproximação ao problema, cf. Wikipedia e referências dela constantes; para um interessante aprofundamento em open source, cf. Mongin, The doctrinal paradox, the discursive dilemma, and logical aggregation theory (MPRA Paper No. 37752 (2012)).

O discursive dilemma costuma ser exemplificado através de um exemplo jurídico (apesar de o seu âmbito ser muito mais vasto e pretender abranger a generalidade das decisões colectivas). Suponha-se que um tribunal composto por três juízes tem de decidir se (i) houve incumprimento contratual por parte do devedor e se (ii) houve danos resultantes desse incumprimento. As hipóteses quanto ao preenchimento destes elementos (da regra jurídica: p & qr) são as seguintes:



Coluna 1
Coluna 2
Coluna 3
Coluna 4

Incumprimento (p)
Danos (q)
p & q
Decisão
Juiz 1
Sim
Não
Não
Absolvição
Juiz 2
Não
Sim
Não
Absolvição
Juiz 3
Sim
Sim
Sim
Condenação
Maioria
[Condenação]
[Condenação]
Absolvição
Absolvição


O paradoxo reside – afirma-se – em que, atendendo à posição de cada um dos juízes quanto aos fundamentos da decisão (colunas 1 e 2), esta devia ser condenatória, dado que há maiorias de juízes a favor da verificação de cada um dos elementos do tipo legal; no entanto, a decisão final é absolutória (colunas 3 e 4). Importa procurar perceber porquê.

4. A circunstância de, no exemplo acima apresentado, a condenação do demandado pressupor uma maioria de juízes quanto à verificação do tipo legal (isto é, quanto à verificação conjunta de p e de q) permite duvidar de que, pelo menos no âmbito de uma análise jurídica, se possa dizer que exista um verdadeiro dilema ou paradoxo. 

Na verdade, dado que ambos os elementos do tipo legal (incumprimento (p) e danos (q)) têm de estar preenchidos para que o réu possa ser condenado, não parece que seja possível agrupar a votação elemento a elemento e concluir que há dois juízes que consideram que houve incumprimento e dois juízes que consideram que se verificaram danos (colunas 1 e 2). Qualquer jurista concluiria que, sendo o tipo legal constituído por p & q, uma decisão de condenação exige a verificação conjunta de p e de q e que, para o proferimento de uma decisão de absolvição, basta que falte um qualquer desses elementos do tipo legal.

Em termos jurídicos, o que conta é o voto sobre o conjunto constituído pelo incumprimento do contrato (p) e pelos danos sofridos pelo demandante (q), isto é, o resultado da coluna 3 (p & q). Nesta perspectiva, não há nenhum dilema, nem existe nenhum paradoxo, dado que os resultados da coluna 3 coincidem totalmente com o sentido da decisão constante da coluna 4 (decisão que é condenatória se p e q estiverem preenchidos e absolutória em todos os demais casos).

O exemplo mostra que o resultado da votação sobre cada um dos elementos do tipo legal (incumprimento (p), danos (d)) constante das colunas 1 e 2 é irrelevante para o sentido da decisão: relevante é apenas o resultado quanto à verificação conjunta desses mesmos elementos que consta da coluna 3 (para uma decisão condenatória, tem de haver incumprimento (p) e, além disso, têm de existir danos (d)). Em concreto: a soma dos votos realizada nas colunas 1 e 2 é juridicamente irrelevante, porque um único dos elemento de um tipo legal não pode desencadear nenhuma consequência jurídica. A ordem jurídica só opera com tipos legais, não com elementos isolados de tipos legais. Assim, o que interessa para se saber se, na opinião de cada juiz, um tipo legal está preenchido é sempre a sua posição sobre todos os elementos desse tipo (não a sua posição sobre cada um desses elementos), isto é, é sempre a sua votação sobre p & q (coluna 3).

É aliás por isso que é irrelevante que os juízes 1 e 2 não estejam de acordo quanto aos elementos do tipo legal que se encontram preenchidos (um entende que é o incumprimento (p), outro os danos (d)), mas, ainda assim, seja possível somar os seus votos no sentido da absolvição do demandado. Sucede assim, porque o que releva é que esses juízes estejam de acordo em que falta um dos elementos do tipo legal, qualquer que seja esse elemento, e que, por isso, o tipo não se encontra preenchido. É apenas este não preenchimento que tem significado para o sentido da decisão.

Em concreto, podem ser somados os votos ~p e q, p e ~q, e ainda ~p e ~q, dado que todos estes votos coincidem no não preenchimento do tipo legal. A não se entender assim, chegar-se-ia a um resultado verdadeiramente paradoxal. Se, no exemplo acima referido, não se pudessem somar os votos dos juízes 1 e 2 (que consideram que o tipo legal não está preenchido, apesar de cada um deles entender que falta um diferente elemento desse tipo), não seria possível nenhuma decisão maioritária, porque haveria que entender que existiriam três decisões distintas, uma por cada um dos três juízes (ver colunas 1, 2 e 3). Contraria o sentimento jurídico que, entendendo dois em três juízes que o tipo legal alegado pelo demandante não se encontra preenchido, o demandado não seja absolvido ou só o possa ser se esses juízes estiverem de acordo quanto ao elemento do tipo legal que não está preenchido.

5. Do exposto pode concluir-se que é possível a soma de votos com diferentes fundamentações quando se trata de concluir que um tipo legal não está preenchido. Os motivos pelo qual cada juiz considera que o demandado não é civilmente responsável podem ser vários: um juiz pode entender que a conduta não é ilícita, outro pode considerar que não há nenhum nexo causal entre a conduta e os danos. Isto não afasta que os seus votos se possam somar e, se forem maioritários, conduzam ao proferimento de uma decisão absolutória do demandado.

A justificação desta solução não é lógica, mas, acima de tudo, estritamente jurídica. Os tipos legais são normalmente compostos por vários elementos; a ordem jurídica só opera com tipos legais cujos elementos estejam, todos eles, preenchidos, isto é, não opera nem com elementos isolados de tipos legais, nem com tipos legais não preenchidos; logo, para essa mesma ordem, é indiferente o fundamento pelo qual se considera que o tipo legal não está preenchido, porque, desde que tal aconteça, a ordem jurídica não pode extrair nenhuma consequência dessa circunstância.

O discursive dilemma é uma muito interessante análise da decisão colectiva sob o ponto de vista lógico. Mas a ordem jurídica orienta-se por princípios que nem sempre podem ser reconduzidos à lógica: designadamente, a circunstância de, para a ordem jurídica, apenas o preenchimento de um tipo legal ser relevante implica o seu desinteresse dos motivos pelos quais um tipo legal não se encontra preenchido. Para a ordem jurídica releva apenas o tipo legal que esteja preenchido; se isso não suceder, a situação é juridicamente irrelevante. É por isso que, no âmbito de uma análise jurídica, as maiorias constantes das colunas 1 e 2 são irrelevantes: a ordem jurídica não lhes atribui nenhuma importância, porque não pode retirar delas nenhumas consequências.

Em última análise, é o princípio in dubio pro libertate que justifica esse desinteresse da ordem jurídica quanto aos fundamentos pelos quais o tipo legal não está preenchido: a ordem jurídica assegura que não intervém quando o tipo legal não se encontrar preenchido, ou seja, quando faltar algum dos elementos de um tipo legal. A circunstância de haver divergência entre os juízes de um tribunal quanto ao elemento de um tipo legal que não se encontra preenchido não pode alterar o princípio de não intervenção da ordem jurídica. Isto justifica a irrelevância dos motivos desses juízes numa decisão que conclui pelo não preenchimento de um tipo legal.

Em conclusão: o paradoxo a que se reporta o discursive dilemma só existe se os resultados das colunas 1 e 2 tiverem, por si só e em si mesmos, algum significado, isto é, se deles puder ser retirada alguma consequência. Não importa agora discutir se há alguma situação em que isso possa suceder, mas parece poder dizer-se que, na área do direito, isso não acontece. Se assim é, então no âmbito jurídico o discursive dilemma não se coloca.

6. Discursive dilemma à parte, o exemplo em análise confirma a relevância dos fundamentos da decisão, porque mostra que uma decisão é nula:

– Se não coincidir com a maioria formada quanto ao preenchimento do tipo legal, isto é, se houver contradição entre os resultados da coluna 3 e da coluna 4; nesta hipótese, a decisão é proferida sem o necessário vencimento (cf. art. 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC);

– Se a decisão sobre o preenchimento do tipo legal for contraditória com a decisão tomada sobre cada um dos elementos desse tipo, isto é, se houver contradição entre o que consta da coluna 3 ou 4 e o que foi apurado nas colunas 1 e 2; é o caso, por exemplo, de se dar como preenchido um tipo legal quando a maioria dos juízes considerou que um dos elementos desse tipo não se encontra preenchido; nesta hipótese, a decisão é nula quer por ser proferida sem o necessário vencimento (cf. art. 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC), quer por contradição com os seus fundamentos (cf. art. art. 615.º, n.º 1, al. c), 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC).


MTS

Nota: Por imperícia informática, foi publicitada uma versão ainda de trabalho deste post. O texto que agora é publicitado é o que corresponde à versão final (que, atendendo ao tema em análise, não deve ser confundida com versão definitiva).

Legislação (4)


Defesa dos consumidores

-- L 47/2014. de 28/7 (Procede à quarta alteração à Lei n.º 24/96, de 31/7, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores, e à primeira alteração ao DL 24/2014, de 14/2, transpondo parcialmente a Diretiva n.º 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25/10/ 2011)

24/07/2014

6 meses, 12.000 visualizações


Mensagem

O Blog do IPPC nasceu há precisamente 6 meses. No exacto momento em que se completam esses 6 meses, o Blog conseguiu chegar às 12.000 visualizações (número que não integra os leitores que optaram por receber por email os novos posts, dado que o mesmo não é contabilizável). O número de visualizações justifica o empenho que tem sido posto na sua elaboração e actualização.

O Blog do IPPC é de todos os membros do IPPC. Toda a colaboração é bem-vinda, traduza-se ela em contribuições destinadas a serem publicitadas ou na sugestão de questões que devam ser analisadas.

MTS

Jurisprudência (26)


Nulidade de acórdão

O sumário de STJ 17/6/2014 é o seguinte


"I - Se na prolação de um Acórdão, ambos os Adjuntos seguirem uma fundamentação diversa da porfiada pelo Relator, sem embargo de o resultado poder ser idêntico, o caminho para o alcançar não é igual, pelo que tal Aresto assim obtido mostra-se lavrado «sem o necessário vencimento», a que se alude no normativo inserto no artigo 716.º, n.º 1, do CPCivil [= art. 666.º, n.º 1, nCPC], porquanto se não seguiram os items aludidos no artigo 713.º, do mesmo diploma legal [= art. 663.º nCPC].

II - O Acórdão proferido com dois votos de vencido no que tange à fundamentação é nulo.

III - Esta nulidade é insuprível pelo Tribunal ad quem, devendo a mesma ser colmatada pelo Tribunal a quo e neste pelos mesmos Juízes que participaram na elaboração do Acórdão."

Jurisprudência (25)


Mandato forense; perda de chance

É o seguinte o sumário de STJ 1/7/2014:

1. A figura da “perda de chance” visa superar a tradicional dicotomia: responsabilidade contratual versus responsabilidade extracontratual ou delitual, summa divisio posta em causa num tempo em que cada vez mais se acentua que a responsabilidade civil deve ter uma função sancionatória e tuteladora das expectativas e esperanças dos cidadãos na sua vida de relação, que se deve pautar por padrões de moralidade e eticidade, como advogam os defensores da denominada terceira via da responsabilidade civil.

2. A perda de
chance relaciona-se com a circunstância de alguém ser afectado num seu direito de conseguir uma vantagem futura, ou de impedir um dano por facto de terceiro. A dificuldade em considerar a autonomia da figura da perda de chanceno direito português, resulta do facto de ser ligada aos requisitos da responsabilidade civil extracontratual – art. 483.º, n.º1, do Código Civil – mormente ao nexo de causalidade. 
Com efeito, um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no contexto da responsabilidade civil
ex contractu, ou ex delictu, é que exista nexo de causalidade entre a conduta do responsável e os danos sofridos pelo lesado por essa actuação culposa.

3. Para que se considere autónoma a figura de
perda de chancecomo um valor que não pode ser negado ao titular e que está contido no seu património, importa apreciar a conduta do lesante não a ligando ferreamente ao nexo de causalidade – sem que tal afirmação valha como desconsideração absoluta desse requisito da responsabilidade civil – mas, antes, introduzir, como requisito caracterizador dessa autonomia, que se possa afirmar que o lesado tinha uma chance [uma probabilidade, séria, real, de não fora a actuação que lesou essa chance], de obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse e/ou que a actuação omitida, se o não tivesse sido, poderia ter minorado a chance de ter tido um resultado não tão danoso como o que ocorreu. Há perda de chance quando se perde um proveito futuro, ou se não se evita uma desvantagem por causa imputável a terceiro.

4. Não devem assimilar-se os planos do dano e da causalidade, com implicação na perspectiva de excluir como dano autónomo a perda de
chance, nem esta figura deve ser aplicada, subsidiariamente, quando se não provou a existência de nexo de causalidade adequada entre a conduta lesiva por acção ou omissão e o dano sofrido, já que existe sempre uma álea, seja quando se divisa uma vantagem que se quer alcançar, ou um risco de não conseguir o resultado desejado.

5. No caso de perda de
chance não se visa indemnizar a perda do resultado querido, mas antes a da oportunidade perdida, como um direito em si mesmo violado por uma conduta que pode ser omissiva ou comissiva; não se trata de indemnizar lucros cessantes ao abrigo da teoria da diferença, não se atendendo à vantagem final esperada.

6. Assente que a Ré, como defensora oficiosa, apresentou a contestação em nome do Réu, fora do prazo legal. Essa omissão teve como consequência, desde logo, o terem-se por fictamente confessados os factos alegado pelo Autor, não implicando automaticamente a condenação no pedido.

7. Importa saber se, revelando em si mesmo a não apresentação da contestação, perda de
chance do Réu fazer valer em juízo a sua versão dos factos, essa omissão da Ré, profissionalmente desvaliosa, contendeu com um sério, real e muito provável desfecho favorável da acção para o Autor.

8. O Autor/recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado por ter provocado um acidente de viação enquanto condutor sob a influência de álcool.

9. Tudo ponderado, mormente a presunção do art. 674.º-A do Código de Processo Civil, teremos que afirmar que, com contestação ou não, na acção de regresso, as probabilidades, as 
chances do Réu (ora Autor/recorrente) não ser condenado, não se anteviam providas de razoável grau de êxito, no sentido em que, ante a prova que pudesse oferecer não teria reais probabilidades de ser absolvido; ademais, fora condenado por duas sentenças transitadas em julgado no que respeita à sua grave conduta causadora de um acidente de viação causalmente ligado ao facto criminoso de conduzir sob a influência do álcool.

10. A sua “
chance” de não ser condenado era mínima, não credível e, por isso, não se pode afirmar que a conduta omissiva e censurável da Ré Advogada tenha sido a causa directa, imediata de não ter sido absolvido na acção de regresso, implicando perda dessa chance."


21/07/2014

Factos complementares e função da causa de pedir


1. Continuando a reflexão sobre o recorte dos factos complementares no actual processo civil português, importa começar por chamar a atenção para a função e a natureza da causa de pedir. A relevância da análise desta função e natureza é clara: se se trabalha com a dualidade entre causa de pedir e factos complementares (hoje imposta pela lei: cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al. b), CPC), importa atender à função e natureza da causa de pedir para permitir a distinção entre esta causa petendi e os factos complementares.

2. É aceite, supõe-se que sem discussão, que a causa de pedir realiza, entre outras, uma função de individualização do pedido (e, portanto, do objecto da causa). A causa de pedir destina-se a permitir averiguar por que motivo o autor pede uma determinada forma de tutela jurídica para uma certa situação jurídica (o que, como se sabe, é essencial para apurar a verificação das excepções de litispendência e de caso julgado). Por exemplo: o autor pede a condenação do réu em 1000; é necessário saber se o pede porque celebrou um contrato com o demandado, porque foi lesado por este demandado nesse mesmo montante ou ainda porque tem direito a receber essa quantia por sucessão mortis causa. Desde que se perceba o fundamento do pedido do autor – isto é, desde que se perceba o porquê daquele pedido –, há uma adequada causa de pedir.

Contra isto poder-se-ia objectar que não basta que se perceba o porquê do pedido formulado pelo demandante, sendo necessário que a causa de pedir contenha todos os factos que são indispensáveis para assegurar a procedência da acção. O argumento não pode ser considerado relevante: a causa de pedir não é um conceito substantivo, mas (tal como, aliás, os conceitos de objecto do processo e de pedido) um conceito processual; consequentemente, a sua função é processual (assegurar a individualização do objecto do processo), e não substantiva (garantir a procedência da causa).

É na mistura indevida do plano substantivo e processual que residem muitos dos equívocos sobre a causa de pedir (e da sua relação com os factos complementares). Uma coisa é um tipo legal e os elementos que o compõem, outra, bem distinta, é a causa de pedir e os factos que são necessários para individualizar um objecto processual. Sem o preenchimento de todos os elementos de um tipo legal (x, y e z, por exemplo), a acção não pode ser julgada procedente; mas sem todos os factos que são subsumíveis a um tipo legal pode haver uma causa de pedir (x e y podem ser suficientes para constituir uma causa de pedir, ou seja, para individualizar um certo objecto processual). Supõe-se que esta última afirmação é indesmentível: se a mesma não fosse (necessariamente) verdadeira, nunca poderia haver uma improcedência da acção por falta de elementos de um determinado tipo legal, dado que, se a causa de pedir tivesse de coincidir com todos os factos necessários para preencher esse tipo legal, verificar-se-ia então uma ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), CPC).

Dito de outro modo: para que, por exemplo, uma acção de indemnização proceda, é necessário que estejam preenchidos os elementos x, y e z; o autor só alega x e y; apesar da falta de alegação de z, está perfeitamente claro qual é o acidente de automóvel a que o autor se refere, ou seja, está perfeitamente demarcada a causa de pedir invocada por esse demandante; a falta de alegação de z implica a improcedência da acção, não a falta de causa de pedir e a ineptidão da petição inicial.

Portanto, é possível que um facto não seja essencial para constituir uma causa de pedir (ou seja, para individualizar um certo objecto), mas seja essencial para obter a procedência da acção. É precisamente isto que configura um facto complementar.

3. Como se referiu, o plano substantivo dos elementos do tipo legal não deve ser confundido com o plano processual da causa de pedir. O direito português é bastante explícito nesta distinção: se não houver causa de pedir, a consequência desencadeia-se no plano processual (ou de admissibilidade), em concreto, na ineptidão da petição inicial; se os elementos do tipo legal não estiverem todos preenchidos, a consequência situa-se no plano da fundamentação: a acção é julgada improcedente.

Estes planos não devem ser misturados, não se devendo exigir que a causa de pedir – que é um conceito processual, relevante para a admissibilidade da acção – deva cumprir uma função substantiva, nomeadamente a de assegurar a fundamentação da acção. Uma coisa é verificar se a acção é admissível por conter uma causa de pedir; outra bem distinta é saber se os factos alegados pelo autor são suficientes para assegurar a fundamentação da acção. Tal como, por exemplo, a legitimidade do demandado (plano processual) não assegura a procedência da acção contra essa parte (plano substantivo), também a causa de pedir (plano processual) pode não ser suficiente para garantir a fundamentação da acção (plano substantivo).

As confusões sobre a causa de pedir deixariam de existir se os referidos planos (o processual e o substantivo) não fossem misturados, isto é, se não se atribuísse à causa de pedir uma função que ela não tem de cumprir. Repete-se: a função da causa de pedir é individualizar o objecto do processo; tudo o que não seja necessário para realizar essa individualização não integra a causa de pedir, por muito essencial que seja para assegurar a procedência da acção.

4. Esta conclusão é relevante para o recorte dos factos complementares. As orientações que integram os factos complementares na causa de pedir, com o argumento de que os mesmos são relevantes (quiçá indispensáveis) para a procedência da acção, são as mesmas que exigem que a causa de pedir cumpra uma função (de fundamentação) que não lhe é própria.

O que essas orientações não conseguem explicar é a própria distinção (que é hoje legal: cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al. b), CPC) entre a causa de pedir e os factos complementares. Acima defendeu-se que a causa de pedir não tem de coincidir com todos os elementos de um tipo legal; agora pode argumentar-se que a previsão legal dos factos complementares impede que a causa de pedir seja reconduzida a todos os elementos de um tipo legal. Se há factos complementares de uma causa de pedir e se esses factos, por preencherem um dos elementos do tipo legal, são essenciais para a procedência da acção, então pode concluir-se que a causa de pedir não tem de comportar todos os elementos do tipo legal. Há factos que se reconduzem a alguns desses elementos e que constituem a causa de pedir; mas também há factos que se reconduzem a outros elementos do tipo e que integram os factos complementares. Negar isto equivale a negar a própria distinção – legal, repita-se – entre causa de pedir e factos complementares.

Em suma: um tipo legal exige o preenchimento de todos os seus elementos (objectivos, subjectivos, temporais, etc.); a causa de pedir não integra os factos complementares (sob pena de, contra legem, não se fazer nenhuma distinção entre a causa de pedir e os factos complementares); logo, a causa de pedir não tem de coincidir com todos os elementos de um tipo legal. Assim, em vez de procurar reconduzir os factos complementares à causa de pedir (e de, com isso, negar a distinção legal entre a causa de pedir e esses factos), o que há que fazer é precisamente o contrário, sob pena de a distinção não ter nenhum significado (e, acima de tudo, não ter qualquer utilidade): o que, coerentemente com a referida distinção, há a fazer é afastar os factos complementares da causa de pedir.

5. A distinção entre a causa de pedir e os factos complementares pode ser conjugada com uma classificação dos elementos de um tipo legal. Um tipo legal pode conter elementos essenciais e elementos acessórios. Por exemplo: numa acção de indemnização pelos danos sofridos num acidente de automóvel devem estar preenchidos todos os elementos (essenciais) respeitantes à responsabilidade civil; além disso, exige-se que o responsável pelo acidente tenha a direcção efectiva do veículo e o utilize no seu próprio interesse (cf. art. 503.º, n.º 1, CC).

Pode suceder que, para a individualização do objecto do processo, bastem factos respeitantes aos elementos essenciais, apesar de, para a fundamentação da causa, também serem indispensáveis factos referidos aos elementos acessórios. No exemplo anterior: a descrição do acidente de viação e o enunciado dos danos sofridos pelo lesado são suficientes para se perceber a razão pela qual o autor quer ser indemnizado; mas este autor não consegue a procedência da acção se não ficar demonstrado que quem é demandado (ou substituído pela sua seguradora) tem a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse.

A distinção entre a causa de pedir e os factos complementares passa precisamente por aqui: a causa de pedir é integrada pelos factos subsumíveis aos elementos essenciais de um tipo legal; os factos complementares são subsumíveis aos elementos acessórios (ou complementares, poder-se-ia dizer) desse mesmo tipo.

6. Independentemente de qualquer adesão ao que acima foi dito, supõe-se que uma coisa é indiscutível: a lei opera com uma distinção entre causa de pedir e factos complementares; assim, integrar os factos complementares na causa de pedir com o fundamento de que os mesmos são essenciais para a procedência da acção não só não corresponde à função da causa petendi, como implica negar aquela distinção e contrariar a lei.

 

MTS

19/07/2014

Factos complementares e causa de pedir



1. Um dos desafios que é colocado pelo nCPC à jurisprudência e à doutrina é aquele que respeita à necessidade de repensar ideias feitas em função de novos enquadramentos legais. Neste Blog tem-se insistido na repercussão do dever de colaboração do tribunal na decisão da causa e no controlo desta decisão em recurso: aquele dever impede que o tribunal possa considerar a acção improcedente com base na falta da alegação de um facto que o tribunal devia ter convidado a parte a alegar. Refere-se agora um outro problema: o das consequências do regime dos factos complementares para a configuração da causa de pedir.

A chamada teoria da substanciação é aquela segundo a qual a causa de pedir é constituída pelos factos necessários à procedência da causa. Ora, a verdade é que, pelo menos desde a introdução, no art. 264.º, n.º 3, aCPC, do poder de o tribunal considerar factos complementares adquiridos durante a instrução da causa que a teoria da substanciação deixou de ter correspondência com os dados do direito positivo. Esta incompatibilidade entre a teoria da substanciação e o direito positivo mantém-se (e até se acentua) no nCPC, atendendo ao disposto no art. 5.º, n.º 2, al. b). O facto complementar não integra a causa de pedir, pela simples razão de que a causa de pedir não pode ser adquirida (e nem sequer completada) durante a instrução da causa. 

Também nunca se entendeu o (agora) disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC como permitindo suprir a inexistência ou insuficiência da causa de pedir; logo, não se pode admitir que os factos complementares que sejam alegados na sequência do convite ao aperfeiçoamento sejam factos integrantes da causa de pedir. Esta causa petendi tem de constar da petição inicial, sob pena de ineptidão deste articulado (art. 186.º, n.º 2, al. a), nCPC); assim, se a petição não é inepta por conter uma causa de pedir, nenhum facto que seja adquirido durante a tramitação da causa pode integrar essa mesma a causa de pedir. O que já está completo na petição inicial não pode ser completado por nenhum outro facto.

Fornecendo um exemplo: o facto de a direcção efectiva de um veículo pertencer ao demandado é essencial para a procedência da acção de responsabilidade civil decorrente de um acidente rodoviário (cf. art. 503.º, n.º 1. CC), mas não integra a causa de pedir desta acção, dado que não se pode concluir que a omissão desse facto torne inepta a petição inicial da respectiva acção; consequentemente, a aquisição desse facto durante a tramitação da acção (em consequência de convite ao aperfeiçoamento ou da instrução da acção) não pode ser vista como a aquisição de um elemento da causa de pedir. Não há que confundir o que é necessário para a procedência da causa (e que tem a ver com o plano da fundamentação da acção) com o que é necessário para a constituição da causa de pedir (e que se move no plano da admissibilidade da causa). Dito de outra forma: nem tudo o que é essencial para a procedência da causa é essencial para constituir a causa de pedir.

É, aliás, por isso que os art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), nCPC só impõem a alegação da causa de pedir, dado que essa alegação é o que é necessário para que a petição inicial não seja inepta por falta de causa petendi. Dito de outro modo: aqueles preceitos movem-se no plano da admissibilidade da causa, dado que só definem o que é necessário para que a petição inicial não seja inepta. Se o que é suficiente para assegurar a admissibilidade da acção é também bastante para assegurar a sua fundamentação, isso só pode ser visto caso a caso. Por exemplo: numa acção destinada a obter o cumprimento de uma prestação contratual, os elementos da causa de pedir serão, em regra, suficientes para garantir a sua procedência; em contrapartida, numa acção de responsabilidade extracontratual, poderão existir tactos complementares (relativos, nomeadamente, às condições em que se verificou a violação do direito do lesado) que são indispensáveis à sua procedência. 

2. O que acima se afirmou é completado por outros aspectos do regime dos factos complementares. Além de poderem ser adquiridos durante a instrução da causa, os factos complementares também podem ser adquiridos na sequência do convite ao aperfeiçoamento do articulado da parte (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4); como não se pode entender que este convite possa servir para a parte completar uma causa de pedir insuficiente (dado que este vício determina a ineptidão da petição inicial e esta ineptidão não é sanável), só se pode concluir que os factos complementares não integram a causa de pedir. Por exemplo: (i) se o autor de uma acção de indemnização por acidente de viação não invocar que sofreu danos, a petição inicial é inepta, por falta de um elemento essencial da causa de pedir dessa acção; (ii) se, nessa mesma acção, o autor não alegar que o demandado tem a direcção efectiva do veículo, a petição não é inepta e o tribunal pode convidar a parte a alegar esse facto; se esse facto for alegado pela parte, isso não significa nenhuma correcção ou complemento da causa de pedir alegada pelo autor.

A conclusão de que os factos complementares não integram a causa de pedir é confirmada pelo disposto no art. 590.º, n.º 6, nCPC: este preceito estabelece que os factos alegados pela parte na sequência do convite formulado pelo tribunal não podem implicar uma alteração da causa de pedir. Isto significa que os factos que são susceptíveis de ser invocados pela parte não podem constituir nenhuma nova causa de pedir, ou seja, só podem ser factos complementares da causa de pedir invocada pelo autor.

3. Os factos complementares são isso mesmo: factos complementares de uma causa de pedir. Os factos complementares não integram a causa de pedir (ou seja, são irrelevantes para a admissibilidade da acção), embora possam ser essenciais para a procedência desta acção. Mutatis mutandis, o mesmo vale para os factos complementares de uma excepção peremptória: embora não integrem essa excepção, podem ser essenciais para a improcedência da acção com base naquela excepção.

MTS