"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2014

Jurisprudência (42)



Reg. 1896/2006; competência internacional

1. É o seguinte o sumário de STJ 14/10/2014 (147/13.3TVPRT-A.C1.S1):

"I - O Regulamento (CE) n° 1896/2006 teve por objectivo simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados, através da criação de um procedimento europeu de injunção de pagamento, e permitir a livre circulação das injunções de pagamento europeias em todos os Estados-Membros, sendo aplicável em matéria civil e comercial;

II - A injunção de pagamento europeia assume uma forma processual com especificidades próprias, que a diferenciam do procedimento português de injunção e da acção declarativa subsequente;

III - De acordo com o art. 12.º, nº 3 do Regulamento n.° 1896/2006 o requerido é avisado de que pode optar entre pagar ao requerente o montante indicado na injunção ou deduzir oposição à injunção de pagamento mediante a apresentação de uma declaração de oposição;

IV - Se não for oferecida oposição, a injunção de pagamento europeia adquire força executiva no Estado-Membro de origem e é reconhecida e executada nos outros Estados-Membros sem que seja necessária uma declaração de executoriedade e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento (cfr. arts. 18.º, nº 1 e 19.º do Regulamento n.° 1896/2006);

V - Se, ao invés, o requerido deduzir oposição os únicos efeitos que desse facto advêm traduzem-se no termo dessa injunção de pagamento e na passagem automática do litígio para processo civil comum, a menos que o requerente tenha expressamente solicitado que se ponha termo ao processo (cfr. art. 17.°, n.° 1, do Regulamento e considerando 24 do mesmo);

VI - Resulta do art. 16.°, n.° 3, do Regulamento que o requerido devendo indicar na declaração de oposição que contesta o crédito em causa, porém, não é obrigado a especificar os fundamentos da contestação;

VII - A oposição à injunção de pagamento europeia não ocorre no quadro do processo civil comum, não corporiza uma oposição fundamentada mas tão só uma oposição formal, uma mera negação do direito invocado pelo requerente no seu formulário inicial, de modo que não se destina a servir de enquadramento a uma defesa de mérito, mas apenas a permitir ao requerido contestar o crédito desse modo obviando à imediata obtenção de título executivo pelo requerente, relegando a apreciação do mérito para a acção comum que se seguirá;

VIII – Daí que a mesma não valha por “comparência, na acepção do artigo 24.° do Regulamento n.° 44/2001, não possa, para efeitos de determinação do tribunal competente ao abrigo do mesmo normativo, ser considerada como a primeira defesa apresentada no quadro do processo civil comum;

IX - Consequentemente, não pode sustentar-se que a recorrente deveria ter deduzido toda a sua defesa, fosse a defesa por impugnação fosse a defesa por excepção de incompetência internacional do tribunal, naquela oposição, e que tivesse inobservado o chamado princípio da preclusão ou concentração (art. 573.º do NCPC), havendo de se considerar tacitamente aceite a extensão da competência do tribunal."

2. O acórdão decide uma questão no âmbito do processo civil europeu. A questão era a seguinte: uma empresa portuguesa requereu, com base no disposto no art. 7.º Reg. 1896/2006, a emissão de uma injunção de pagamento europeia contra uma empresa francesa; depois de citada (art. 14.º Reg. 1896/2006), esta requerida deduziu oposição (art. 16.º Reg. 1896/2006), pelo que foi determinado que a acção prosseguisse no competente tribunal português (art. 17.º, n.º 1 § 1.º, Reg. 1886/2006); neste tribunal, suscitou-se a questão da competência internacional dos tribunais portugueses, importando saber se a não invocação da incompetência destes tribunais pela requerida no anterior procedimento de injunção implicou, nos termos do art. 24.º Reg. 44/2001, a celebração tácita de um pacto de jurisdição.

Com bem se refere no acórdão, o problema tinha sido solucionado pelo TJ 13/6/2013 (C-144/12, Goldbet Sportwetten/Sperindeo), no qual se entendeu o seguinte:  

"O artigo 6.° do Regulamento (CE) n.° 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento, lido em conjugação com o artigo 17.° deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que uma oposição à injunção de pagamento europeia que não contenha uma contestação da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem não pode ser considerada como uma comparência, na aceção do artigo 24.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, e que a circunstância de o requerido ter formulado, no âmbito da oposição que deduziu, alegações sobre o mérito da causa é desprovida de pertinência a este respeito." 

3. Sobre a vinculação dos tribunais nacionais à interpretação realizada pelo TJ, importa ter presente o deciddo em TJ 27/3/1980 (66/79, 127/79 e 128/79, Amministrazione delle Finanze dello Stato/Sri Meridionale Industria Salumi, Amministrazione delle Finanze dello Stato/Ditta Fratelli Vasanelli e Amministrazione delle Finanze dello Stato/Ditta Fratelli Ultrocchi) (versão portuguesa não disponível):

"1) La interpretación que da el Tribunal de Justicia, en ejercicio de la competencia que le confiere el artículo 177 del Tratado CEE, de una disposición de Derecho comunitario, esclarece y precisa, cuando es necesario, el significado y el alcance de esta disposición tal y como debe o hubiera debido entenderse y aplicarse desde el momento de su entrada en vigor. Consecuencia de ello es que el Juez puede y debe aplicar la norma de este modo interpretada incluso a relaciones jurídicas nacidas y constituidas antes de la sentencia que resuelve la petición de interpretación, si por otra parte concurren los requisitos necesarios para someter un litigio relativo a la aplicación de dicha norma a los órganos jurisdiccionales competentes. Sólo excepcionalmente podría el Tribunal de Justicia, en la sentencia misma que resuelve la petición de interpretación, limitar la posibilidad de los interesados de invocar la disposición así interpretada con vistas a cuestionar relaciones jurídicas nacidas y constituidas con anterioridad. [...]"


MTS

30/10/2014

Jurisprudência (41)



Dever de fundamentação da decisão; matéria de facto

1. É o seguinte o sumário de RP 20/10/2014 (756/13.0TTVNG.P1):

"I – A fundamentação consiste na indicação das razões de facto e de direito que conduzem o julgador, num raciocínio lógico a decidir em determinado sentido. Mas essa indicação não pode ser feita por simples adesão para os fundamentos indicados pelas partes – n.º 2 do preceito [isto é, do art. 154.º do Cód. Proc. Civil]. Proíbe-se, deste modo, esta fundamentação passiva, por simples adesão: as razões hão-de ser expostas num discurso próprio, assente numa análise e ponderação também próprias. 
 
II – Assim, decidida a causa através de sentença, sem se ter assentado expressamente os factos provados e não provados e respectiva fundamentação, tal decisão é de anular, atento o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Cód. Proc. Civil.
 
III – Mesmo que as partes tenham por requerimento acordado na matéria de facto, tal não dispensa o Tribunal de prolatar despacho onde enumere quais os factos que considere provados e não provados e a respetiva fundamentação, devendo, se necessário, caso os restantes factos não abrangidos pelo acordo das partes sejam relevantes para a decisão da causa, proceder ao respetivo julgamento."

2. Transcrevendo o decidido num outro acórdão, afirma-se no acórdão em análise o seguinte:

"Conforme se refere no Acórdão desta Secção de 04/07/2011 [378/10.8TTVNG.P1], «desta disposição [isto é, do art. 712.º, n.º 4, aCPC, correspondente ao art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC] decorre que se a decisão da matéria de facto contiver os vícios [aí] apontados, a decisão pode ser anulada pela Relação, mesmo oficiosamente.Tem-se entendido que tal estatuição deverá ser aplicada àquelas situações em que se assentou os factos na sentença, mas se omitiu o despacho de resposta aos quesitos e respectiva fundamentação ou o despacho a assentar a matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação. Igualmente se tem entendido que se a decisão da matéria de facto omitir a relação dos factos não provados, é de aplicar a mesma disciplina. Por último, também se tem entendido que a norma é de aplicar nos casos em que a decisão da matéria de facto foi completamente omitida, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados, quer quanto à respectiva fundamentação, como sucede in casu. Ora, relativamente a esta última situação, que é a nossa, a aplicação da norma impõe-se, se não por maioria, pelo menos por identidade de razão. Na verdade, se uma decisão da matéria de facto, deficiente, obscura ou contraditória, impede a Relação de sindicar, quer a decisão de facto, quer a decisão de direito, a omissão da decisão de facto impede, em absoluto e em toda a extensão, a referida sindicância. Daí que, a nosso ver, a disciplina constante da norma em apreço é igualmente aplicável aos casos em que a decisão da matéria de facto foi completamente omitida»".

Interessa apenas acrescentar que a decisão de 1.ª instância que não conhece de matéria de facto de que devia conhecer -- ou que omite por completo esse conhecimento -- é nula (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC). A aplicação do disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), nCPC a um caso em que o conhecimento da matéria de facto tenha sido completamente omitido implica que, nesta hipótese, a nulidade da decisão -- que não é, em regra, conhecida ex officio (cf. art. 615.º, n.º 4, nCPC) -- se torna de conhecimento oficioso.


MTS 

Bibliografia (38)



-- L. Prob. & Risk 13 (2014), 193-337 (SPECIAL ISSUE Papers from the Workshop on Formal Argument and Evidential Inference. ICAIL, Rome, June 10–14 2013)

29/10/2014

Jurisprudência (40)



Acção de investigação da paternidade; caducidade

I. É o seguinte o sumário de RP 9/10/2014 (956/10.5TBSTS-D.P1):

"1. A acção de investigação de paternidade pode fundar-se tanto na procriação ou filiação biológica como nas presunções de paternidade a que alude o art.1871.º do Código Civil, nada impedindo que os seus respectivos fundamentos se cumulem na mesma acção.
 
2. Nas hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo está previsto um regime especial segundo o qual, se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, ou existirem escritos nos quais este última reconhece expressamente a sua paternidade, se permite que a acção possa ser proposta dentro de três anos a contar da data em que cessar o tratamento ou o conhecimento superveniente dos factos que possibilitem e justifiquem a investigação [art. 1873.º e 1817.º, n.º 3, al. b), do Código Civil].

3. Assim, a acção pode ser proposta para além do prazo estipulado no n.º 1 do art 1817.º, contando-se o prazo para efeitos de caducidade do direito de accionar, a partir da data em que cessou o tratamento previsto na alínea a) ou em que teve conhecimento da carta ou escrito da alínea b) do supra citado art.1871.º, n.º 1.

4. Nestes casos deve pois repartir-se o ónus da prova segundo as regras gerais do art. 342.º do Código Civil, atribuindo-se ao autor a prova do facto constitutivo do seu direito – o tratamento e/ou o conhecimento da carta ou do escrito – e atribuindo-se ao réu a prova do facto extintivo desse direito – o facto de o autor ter proposto a acção mais de um ano após a cessação do tratamento ou o conhecimento da carta ou do escrito".

II. O acórdão aplica o regime constante do art. 1817.º CC (ex vi do art. 1873.º CC), sem levantar a questão da constitucionalidade dos vários prazos de caducidade fixados naquele preceito. O acordão entende que a questão de saber se o prazo de caducidade estabelecido no art. 1817.º, n.º 3, al. b), CC já se encontrava esgotado no momento da propositura da acção está dependente da prova de determinados factos pela demandante.

A decisão do caso no sentido de não concluir pela caducidade da acção de investigação da paternidade mostra a flexibilidade do regime legal vigente, tendo presente que a investigante nasceu em 1924.

III. A latere do caso concreto, importa referir que valeria a pena reflectir sobre o papel que o exame de ADN deve assumir nas acções de investigação da paternidade ou da maternidade, já que, em hoje em dia, dificilmente se  compreende que essa investigação possa dispensar aquela prova. Poder-se-ia pensar em instituir o exame de ADN, sempre que realizável, como uma condição da admissibilidade da acção de investigação da maternidade ou da paternidade. Também seriam pensáveis soluções menos radicais, como, por exemplo, a de conceder à ré ou ao réu investigado a opção entre contestar a acção ou requerer de imediato o exame de ADN ou a de impor a realização deste exame sempre que o juiz considere verosímil a maternidade ou a paternidade investigada.


MTS

Bibliografia (37)


-- Delgado de Carvalho, J. H., Ação Executiva para Pagamento de Quantia Certa (De acordo com a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e Lei da Organização do Sistema Judiciário) (Lisboa: Quid Iuris 2014)

28/10/2014

Bibliografia (36)


-- Comentário ao Código Civil / Parte Geral (Coord. L. Carvalho Fernandes/J. Brandão Proença) (Lisboa: Universidade Católica Editora 2014)

Jurisprudência (39)


Videovigilância; licitude da prova

Segundo o respectivo sumário, RL 8/10/2014 (149/14.2TTCSC.L1-4) decidiu o seguinte:

"I. Em regra, o Juiz deve diligenciar por observar estes (sic) prazos estabelecidos na Lei. Contudo, casos há em que apesar de o Juiz respeitar a natureza urgente do procedimento e de se empenhar numa tramitação célere, não lhe é praticamente possível observar a rigidez daqueles prazos. As razões podem respeitar ao próprio tribunal, designadamente, em face de um volume processual elevado ou por correrem em simultâneo vários processos com natureza urgente -  o que não é invulgar na jurisdição laboral, já que na sua maioria os processos são considerados urgentes (cfr. art. 26.º do CPT) -, mas também podem resultar da própria complexidade do procedimento cautelar ou da própria conduta processual das partes, assim como também podem concorrer simultaneamente todos esses factores.

II. O facto de não ter sido respeitado o prazo estabelecido na lei processual para ser proferida a sentença não importa qualquer efeito processual.

III. Do quadro normativo que regula a reserva da vida privada e, em particular, os meios de vigilância à distância, ressalta que, verificados os pressupostos legais, mormente a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, a lei não obsta à instalação dos meios de vigilância à distância, incluindo a captação de imagem, nos locais de trabalho. 
 
IV. Contudo, dele decorre igualmente que essa vigilância apenas poderá ser utilizada quando vise a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem, não podendo nunca ter a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador. 
 
V. É de aceitar as imagens captadas por sistema de videovigilância como meio de prova em processo disciplinar e na subsequente acção judicial em que se discuta a aplicação de sanção disciplinar, mormente o despedimento, desde que sejam observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados e concomitantemente se conclua que a finalidade da sua colocação não foi exclusivamente a de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Num quadro circunstancial assim apurado, o trabalhador não merece – nem a lei lhe confere -  maior protecção do que aquela que é  conferida aos demais cidadãos e, logo, o meio de prova é lícito e admissível.

VI. Como resulta do art. 52.º, n.º 1 e 2, da Lei do Jogo, o sistema de videovigilância nas salas de jogos de estabelecimentos legalmente autorizados, é uma “medida de protecção e segurança de pessoas e bens”, acrescendo que é obrigatória. 
 
VII. A Lei do Jogo, no seu art. 83.º, impõe aos trabalhadores que prestam serviço nas salas de jogos, atenta a natureza das funções exercidas e a actividade em que se inserem, um conjunto de proibições, entre elas “Ter(em) em seu poder (..) dinheiro (…) cuja proveniência ou utilização não possa(m) ser justificada(s) pelo normal funcionamento do jogo [83.º, n.º 1, al. c)].  A violação desse dever constitui ilícito contra-ordenacional, punível com coima e “(..) interdição do exercício da profissão (..) até 60 dias, no caso da alínea c)” [artigo 139.º da Lei do Jogo].

VIII. O n.º 3 do artigo 83.º começa por dizer que “Além dos previstos no artigo 52.º", para prosseguir, dizendo “as concessionárias podem utilizar quaisquer outros meios para fiscalizar o cumprimento do disposto no n.º 1.”, resultando, assim, que esse meio- videovigilância -, na medida em que é obrigatório, está já a ser considerado para fiscalizar também a actividade “dos empregados que prestam serviço nas salas de jogos”.

IX. A fiscalização por visionamento – expressamente indicada na lei - tem dois propósitos: dissuadir o trabalhador a adoptar um comportamento desconforme àquelas proibições legais, reportadas todas elas a condutas contrárias à transparência e lisura que deve estar presente na prossecução da actividade legalmente autorizada de exploração de  jogos de fortuna ou azar; e, quando esse efeito dissuasor não resultar, permitir detectar as infracções que sejam praticadas. 
 
X. Considerando-se:  i) que  foram observados os pressupostos que decorrem da legislação sobre a protecção de dados no que respeita à autorização do sistema de videovigilância; ii) que nem a sua colocação nem as imagens captadas visam exclusivamente controlar o desempenho profissional dos trabalhadores, antes sendo obrigatório por lei a sua existência, quer como “medida de protecção e segurança de pessoas e bens”, quer para o controle das “[A]ctividades proibidas aos empregados que prestam serviço nas salas de jogos”; iii) que “Todos os trabalhadores do casino sabem que existe recolha de imagem com CCTV no interior do mesmo e que são filmados enquanto trabalham, estando afixado tal aviso”; resta concluir que não se verifica qualquer violação dos princípios enunciados no art. 20.º, n.º  1, 2 e 3, bem como do n.º 1 do art. 21.º. do CT
."


27/10/2014

Jurisprudência (38)


Aperfeiçoamento de conclusões de alegações de recurso


1. De acordo com o respectivo sumário, STJ 7/10/2014 (118/08.1TVPRT.P2.S2) decidiu o seguinte:


"I - O despacho de convite ao aperfeiçoamento, previsto no art. 639.º, n.º 3, do NCPC (2013), não está coberto pela força do caso julgado, podendo o relator, não obstante, em reflexão e ponderação mais profunda, não aplicar a sanção, aí, contemplada.

II - No despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, deve o relator identificar todos os vícios que, no seu entender, se verificam, por forma a permitir que, sem margem para dúvidas, o recorrente fique ciente dos mesmos e das consequências que podem vir advir da sua inércia ou do deficiente acatamento do convite."

2. O art. 639.º, n.º 3, CPC estabelece que, quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações impostas pelo n.º 2 do mesmo preceito, o relator deve convidar o recorrente a completá‐las, esclarecê‐las ou sintetizá‐las, no prazo de 5 dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afectada.

O problema que o acórdão em análise decidiu é o de saber se, tendo o relator convidado o recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões, ainda assim se justifica que, na falta de qualquer aperfeiçoamento, o tribunal fique impedido de conhecer do recurso na parte afectada. O acórdão entendeu que assim não sucede, admitindo que o tribunal possa reconsiderar a opinião que formou quanto ao vício que encontrou nas referidas conclusões no momento em que dirigiu ao recorrente o convite ao aperfeiçoamento.

A solução encontrada no acórdão não levanta problemas, embora não tenha uma justificação legal evidente (talvez seja por isso que nenhuma é referida no acórdão). Talvez se possa afirmar que o convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso é uma decisão provisória: no entendimento do relator do recurso, as conclusões do recorrente padecem de deficiência, obscuridade ou complexidade; uma decisão definitiva só é admissível depois da (possibilidade de) resposta do recorrente.

Se, nesta resposta, o recorrente remover a deficiência, a obscuridade ou a complexidade, o recurso está em condições de ser apreciado. O mesmo há que concluir se o recorrente mostrar, através dos seus esclarecimentos, que as conclusões não padecem de qualquer vício.

Se o recorrente não responder ao convite ao aperfeiçoamento, também isso não impede que o tribunal possa vir a reponderar a sua primeira opinião. O que então parecia deficiente, obscuro ou complexo pode parecer agora completo, claro e simples.

3. Pressuposto do adequado funcionamento do regime é que, como muito bem se acentua no acórdão, o recorrente seja devidamente informado do vício de que padecem, na opinião do relator, as conclusões do recurso. Dito de outro modo: o regime requer que o relator cumpra devidamente o seu dever de cooperação perante o recorrente (cf. art. 7.º, n.º 1, CPC); o não cumprimento deste dever obsta a que estejam reunidos os pressupostos de que dependem a aplicação da sanção de não conhecimento do recurso.


MTS 

24/10/2014

Paper (34)


-- Kramer, X. E., European Procedures on Debt Collection: Nothing or Noting? Experiences and Future Prospects (04.2014)


23/10/2014

Jurisprudência europeia (TJ) (24)


Reg. 44/2001 – Pedido de reconhecimento e de execução de uma decisão que decreta medidas provisórias ou cautelares – Âmbito de aplicação -- 
Competências exclusivas -- Motivos de recusa de reconhecimento

-- O TJ 23/10/2014 (C‑302/13, flyLAL‑Lithuanian Airlines/Starptautiskā lidosta Rīga et al.) decidiu o seguinte:

"1) O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma ação, como a que está em causa no processo principal, que tem por objeto a reparação do prejuízo resultante de alegadas violações do direito da concorrência da União é abrangida pelo conceito de «matéria civil e comercial», na aceção desta disposição, e, por conseguinte, entra no âmbito de aplicação desse regulamento.

2) O artigo 22.°, ponto 2, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que uma ação, como a que está em causa no processo principal, que tem por objeto a reparação do prejuízo resultante de alegadas violações do direito da concorrência da União não constitui um processo que tem por objeto a validade das decisões dos órgãos de sociedades na aceção desta disposição.

3) O artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que nem as modalidades de determinação do montante das quantias sobre as quais incidem as medidas provisórias e cautelares decretadas numa decisão cujo reconhecimento e execução são requeridos, quando seja possível seguir a lógica do raciocínio subjacente à determinação do montante das referidas quantias, mesmo quando existiam e foram utilizados os meios processuais de impugnação de tais modalidades de cálculo, nem a mera invocação de consequências económicas graves constituem motivos determinantes da violação da ordem pública do Estado‑Membro requerido que permitem recusar o reconhecimento e a execução, nesse Estado‑Membro, de uma tal decisão proferida noutro Estado‑Membro."

Nota: sobre este acórdão, cf. o comentário de P. A. de Miguel Asensio aqui.


Jurisprudência europeia (TJ) (23)


Convenção de Roma relativa à lei aplicável às obrigações contratuais 
-- Lei aplicável na falta de escolha das partes 

-- O TJ 23/10/2014 (C‑305/13, Haeger & Schmidt/Mutuelles du Mans assurances IARD et al.) decidiu o seguinte:

"1) O artigo 4.°, n.° 4, último período, da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de junho de 1980, deve ser interpretado no sentido de que esta disposição só se aplica a um contrato de comissão de transporte quando o objeto principal do contrato consiste no transporte propriamente dito da mercadoria em causa, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

2) O artigo 4.°, n.° 4, da referida convenção deve ser interpretado no sentido de que, não podendo ser fixada nos termos do segundo período dessa disposição, a lei aplicável a um contrato de transporte de mercadorias deve ser determinada em função da regra geral prevista no n.° 1 desse artigo, ou seja, a lei que regula esse contrato é a do país com o qual este apresenta as conexões mais estreitas.

3) O artigo 4.°, n.° 2, da mesma convenção deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese de um contrato apresentar conexões mais estreitas com um país diferente daquele cuja lei é designada pela presunção que consta do referido número, o órgão jurisdicional nacional deve comparar as conexões existentes entre esse contrato e, por um lado, o país cuja lei é designada pela presunção e, por outro, o outro país em causa. A este título, o órgão jurisdicional deve ter em conta todas as circunstâncias, incluindo a existência de outros contratos relacionados com o contrato em causa."




Jurisprudência europeia (TJ) (22)


Proteção dos consumidores – Mercado interno da eletricidade e do gás natural

-- O TJ 23/10/2014 (C‑359/11 e C‑400/11, Schulz/Technische Werke Schussental e Egbringhoff/Stadtwerke Ahaus) decidiu o seguinte: 

"O artigo 3.°, n.° 5, lido em conjugação com o anexo A, da Diretiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 96/92/CE, e o artigo 3.°, n.° 3, lido em conjugação com o anexo A, da Diretiva 2003/55/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Diretiva 98/30/CE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que determina o conteúdo dos contratos de fornecimento de eletricidade e de gás celebrados com consumidores abrangidos pela obrigação geral de fornecimento e prevê a possibilidade de alterar as tarifas desse fornecimento, mas que não garante que os consumidores sejam informados, em tempo útil antes da entrada em vigor dessa alteração, das razões, das condições e do alcance da mesma."

Jurisprudência (37)


Indivisibilidade da confissão

Segundo o respectivo sumário, STJ 9/10/2014 (311/11.0TCFUN.L1.S1) decidiu o seguinte:

"1. De acordo com o princípio da indivisibilidade da confissão a que alude o art. 360.º do CC, se uma declaração complexa feita em depoimento de parte, requerido pela contraparte, contiver afirmações de factos desfavoráveis ao depoente, mas também factos que lhe são favoráveis, a contraparte que se quiser aproveitar de tal confissão como meio de prova plena deve, de igual modo, aceitar a realidade dos factos que lhe são desfavoráveis. Tendo que produzir oportuna declaração em que se reserva o direito de provar o contrário dos factos que lhe são desfavoráveis. Adquirindo, então, a confissão dos factos favoráveis, mediante a prova contrária dos factos que lhe desfavoráveis, a eficácia de prova plena. 

2. A indivisibilidade da confissão complexa tem, pois, como consequência a inversão do ónus da prova quanto à parte favorável ao confitente. 

3. Não tendo a autora cumprido tal ónus, face à confissão complexa da ré, há que considerar também como verdadeiros os factos  favoráveis ao confitente. 

4. Deve entender-se que o silêncio da contraparte, face a uma confissão complexa (feita perante si), não tomando qualquer posição, leva a que a mesma (confissão) se torne eficaz (quer quanto aos factos favoráveis, quer quanto aos desfavoráveis)."

II.  O acórdão aplica, de forma clara e totalmente correcta, o regime legal sobre a indivisibilidade da confissão. No caso em análise, a autora deveria ter extraído, ainda em 1.ª instância, as consequências da indivisibilidade da confissão (complexa) realizada pelo réu e ter provado o contrário do facto favorável alegado por este confitente (in casu, a aceitação da satisfação do montante ainda em dívida através da restituição de uma das betoneiras que a ré adquirira à autora).

Permita-se apenas uma nota de direito comparado sobre a matéria. No direito alemão vigora, atendendo ao disposto no § 290 ZPO, a regra da divisibilidade da confissão, pelo que se, por exemplo, o réu confessar que recebeu dinheiro do autor, mas alegar que o fez como donatário e não como mutuário, fica assente a entrega do dinheiro, mas permanece controvertida a celebração de um contrato de mútuo ou de doação. Quer dizer: os factos favoráveis ao confitente não são abrangidos pelo valor atribuído à confissão, pelo que, na hipótese de serem impugnados pela contraparte, recai sobre o confitente o ónus de realizar a sua prova (cf. v. g., MünchKommZPO/Prütting (2013), § 290 2). A solução contrasta com a inversão do ónus da prova que, quanto às afirmações favoráveis ao confitente, resulta do regime da indivisibilidade da confissão.


MTS

21/10/2014

Papers (33)


-- Barcelo III, J. J., Substantive and Procedural Arbitrability in Ad Hoc Investor-State Arbitration — BG Group v. Argentina (09.2014)

-- Alemanno, A., How Transparent Is Transparent Enough? Balancing Access to Information Against Privacy in European Judicial Selection (10.2014)

-- Park, W. W., Explaining Arbitration Law (10.2014)

18/10/2014

Jurisprudência (36)


Convenção de arbitragem; apreciação da sua validade pelo tribunal judicial

1. Segundo o respectivo sumário, RG 25/9/2014 (1403/13.0TCGMR.G1) decidiu o seguinte:


"I - Os tribunais arbitrais são competentes para conhecer da sua própria competência, devendo os tribunais estaduais absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral, e isto mesmo que, para o efeito, haja necessidade de apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela está inserida. 

II - Destarte, uma vez instaurada a acção nos tribunais estaduais e invocada a excepção de preterição de tribunal arbitral, apenas em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inaplicabilidade da convenção de arbitragem - ou seja, que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade -, pode o juiz declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção.

III - A quebra do monopólio do Estado na função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) apenas se mostra permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos) os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania tribunais o Estado tende a conseguir.

IV - Por essa razão, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito potestativo a exigir a arbitragem, unicamente a verificação da existência de uma situação de absoluta impossibilidade, e não tão-somente de mera difficultas praestandi (em respeito pela autonomia privada), que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, constitui legitimo fundamento justificativo do seu incumprimento."

2. O sumário do acórdão não levanta nenhuns problemas: todos os seus itens podem ser subscritos sem dificuldade. O acerto da decisão torna-se, no entanto, bastante discutível quando se tem presente a factualidade que a RG teve de decidir.

O que estava em causa era uma cláusula compromissória constante de uma cláusula contratual geral de um contrato de swap celebrado entre uma sociedade e um banco. Segundo a descrição que consta do acórdão (que, aliás, parece conter alguns lapsos de escrita), a sociedade propôs uma acção de resolução daquele contrato num tribunal judicial; o banco defendeu-se alegando a incompetência deste tribunal com base na referida cláusula compromissória; a sociedade autora respondeu que a cláusula contratual geral da qual consta a convenção de arbitragem não era aplicável, porque não tinha sido devidamente informada dessa cláusula pelo banco; o tribunal de 1.ª instância considerou procedente a excepção de incompetência absoluta e absolveu o réu da instância (cf. art. 96.º, al. b), e 99.º, n.º 1, CPC).   


Inconformada com esta decisão, a sociedade autora interpôs recurso de apelação para a RG. Perante a alegação pela sociedade demandante da inaplicabilidade da referida cláusula contratual geral, afirmou a RG, como forte apoio na decisão recorrida, o seguinte:


"No que concerne à alegada invalidade do compromisso arbitral, muito pouco, ou mesmo nada, haverá a acrescentar à pertinente e consistente fundamentação aduzida na decisão recorrida a esse respeito, quando refere que, “de acordo com o n.º 4 daquele mesmo preceito (do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 63/2011), as questões da nulidade, ineficácia e inexequibilidade de uma convenção de arbitragem não podem sequer ser discutidas autónoma e judicialmente em acção de simples apreciação, nem em procedimento cautelar que tenha como finalidade impedir a constituição e funcionamento de um tribunal arbitral. [...]

Os árbitros são, assim, os primeiros juízes da sua competência, estabelecendo-se uma regra de prioridade cronológica quanto à tomada de decisão sobre a competência, vigorando, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral. [...]

A nulidade manifesta é a invalidade que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo assim apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade."


3. É possível que, em certos casos, o carácter manifesto da nulidade, da ineficácia ou da inexequibilidade da convenção arbitral possa ser entendido como aquele que é patente em função da própria convenção. É discutível, no entanto, que esse entendimento pudesse ter sido seguido no caso que foi apreciado pela RG, dado que a solução deste caso deveria ter implicado a consideração da protecção que é devida ao contraente que adere a uma cláusula contratual geral.

Como é sabido, o regime das cláusulas contratuais gerais institui um regime de protecção do contraente que adere a uma cláusula proposta pelo outro contraente. Ora, é contrário a este propósito de protecção do contraente aderente que a validade de uma convenção arbitral que consta de uma cláusula contratual geral não possa ser apreciada, com a prova que for necessária, no tribunal judicial no qual esse contraente propôs a acção, porque isso implica para este contraente -- que é aquele que a lei pretende proteger – uma de duas coisas:

– A necessidade de, primeiro, discutir a validade da cláusula contratual geral que contém a convenção de arbitragem no tribunal arbitral e de, depois de obter o reconhecimento por este tribunal da invalidade da cláusula, instaurar a acção de resolução no tribunal judicial;

– De modo a obstar a esta “dupla via”, a propositura da acção no tribunal arbitral e a renúncia a invocar neste a invalidade da convenção arbitral e a consequente incompetência do tribunal arbitral.

Assim, a solução adoptada pela RG traduz-se ou na imposição de uma dupla litigância ao contraente aderente ou na impossibilidade de este discutir a incompetência do tribunal arbitral. Como facilmente se compreende, nenhuma destas soluções é compatível com a protecção que é dispensada ao contraente que adere a uma cláusula contratual geral.  

Como a RG considerou que os tribunais judiciais são incompetentes para a acção de resolução, no caso em análise não está afastado que o mesmo contraente tenha de vir a propor três acções: aquela que já propôs num tribunal judicial, aquela que terá de propor num tribunal arbitral e ainda aquela que terá de instaurar novamente nos tribunais judiciais no caso de aquele tribunal arbitral vir a considerar inválida a convenção de arbitragem que consta da cláusula contratual geral em função da prova que a RG entende que nele deve ser produzida quanto à observância do dever de informação pelo banco proponente.

Em conclusão: o acórdão em análise elimina pela via processual a protecção que a lei substantiva pretende assegurar ao contraente que adere a uma cláusula contratual geral que contém uma convenção de arbitragem.

MTS