"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2015

30/01/2015

Prazo de interposição de recurso e de apresentação de alegações no procedimento especial de despejo


O art. 15.º-S, n.º 5, NRAU estabelece que aos prazos do procedimento especial de despejo se aplicam as regras previstas no CPC, não havendo lugar à sua suspensão durante as férias judiciais, nem a qualquer dilação. O art. 138.º, n.º 1, CPC prescreve que os prazos processuais se suspendem durante as férias judiciais, excepto se se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes. 

Um recente acórdão de um tribunal superior teve de decidir se a não suspensão dos prazos durante as férias judiciais imposta pelo art. 15.º-S, n.º 5, NRAU significa, em conjugação com o disposto no art. 138.º, n.º 1, CPC, que o procedimento especial de despejo deve ser qualificado como um procedimento urgente. A resposta a esta pergunta era determinante para se saber se as contra-alegações do recorrido tinham sido entregues dentro do prazo, dado que, se o procedimento especial de despejo fosse qualificado como urgente, essas contra-alegações deveriam ter sido entregues, não no prazo normal de 30 dias, mas no prazo excepcional de 15 dias (art. 638.º, n.º 1 e 5, CPC).

Sob o ponto de vista conceptual poder-se-ia dizer que um procedimento que tem uma das características dos processos urgentes -- a não suspensão dos prazos durante as férias judiciais -- é um procedimento urgente. Outra foi, no entanto, a orientação do tribunal superior, com o argumento de que em parte alguma o legislador qualificou esse procedimento como urgente.

Analisado o problema pela perspectiva da tutela da confiança, o tribunal superior decidiu bem. A consagração de uma característica dos processos urgentes a um procedimento que não é qualificado pela lei como urgente não torna este procedimento urgente. Qualquer outro entendimento poderia vir a frustrar expectativas das partes e mesmo a tornar inadmissíveis actos praticados por estas.

Pode acrescentar-se que a mesma solução é imposta pelo disposto no art. 15.º-S, n.º 8, NRAU, que estabelece que os actos a praticar pelo juiz no âmbito do procedimento especial de despejo assumem carácter urgente. Desta regra decorrem dois argumentos: a própria regra só tem justificação se o procedimento especial de despejo não for considerado pela lei como um procedimento urgente; daquela regra pode inferir-se, a contrario sensu, que, se os actos a praticar pelo juiz assumem carácter urgente, o mesmo não sucede quanto aos actos a praticar pelas partes.

Importa ainda fazer uma última observação sobre o caso concreto, dado que neste, como se referiu, se tratava de saber se as contra-alegações do recorrido tinham sido apresentadas dentro do prazo. A inadmissibilidade destas contra-alegações por extemporaneidade causaria maior prejuízo à parte recorrida -- que ficaria sem a possibilidade de apresentar as suas razões perante o tribunal ad quem -- do que o prejuízo que é causado à parte recorrente com a admissibilidade daquelas contra-alegações, dado que, nesta hipótese, o único "prejuízo" sofrido pela parte recorrente é o de o seu recurso ser apreciado com a observância do princípio do contraditório. Esta comparação reforça a (boa) decisão do tribunal superior.

MTS

Paper (46)


-- Hazelhorst, M., The ECtHR's Decision in Povse: Guidance for the Future of the Abolition of Exequatur for Civil Judgments in the European Union. European Court of Human Rights 18 June 2013, Decision on Admissibility, Appl. No. 3890/11 (Povse v. Austria) (01.2014)

Nota: o ac. 3890/11 do TEDH pode ser lido aqui.

Jurisprudência (70)



Responsabilidade de mandatário judicial; perda de chance

1. É o seguinte o sumário de RC 20/1/2015 (810/13.9TBCBR.C1):

"I - Ao demandar o Advogado que o patrocinou em anterior acção no foro laboral, o A teria de alegar – para os vir a demonstrar – factos idóneos ao reconhecimento do seu arrogado direito a créditos que, segundo a convicção manifestada, mantinha em relação à sua ex-entidade patronal e que, alegadamente, o R, com violação dos seus deveres profissionais, não peticionara naquela acção, pois só assim poderia vir a evidenciar nesta acção que da conduta alegadamente omissiva (ilícita e culposa) do demandado resultaram os prejuízos cujo ressarcimento aqui peticiona e que estes foram causados pelo cumprimento defeituoso do mesmo.

II - Não foi a conduta do R – mesmo que, porventura, tivesse sido omissiva – que importou para o A a perda dos seus créditos, quando foi este quem, conformando-se com o valor indemnizatório pelo qual veio a celebrar uma transacção, homologada por sentença, pôs termo ao “litígio mediante recíprocas concessões”, na sequência da cessação do seu contrato de trabalho. 

III - Em geral, a mera perda de uma chance não terá virtualidade jurídico-positiva para fundamentar uma pretensão indemnizatória.

IV - A doutrina da perda de chance propugna, em tese, a compensação quando fique demonstrado, não que a perda de uma determinada vantagem é consequência segura do facto do agente (o nexo causal entre o facto ilícito e o dano final), mas, simplesmente, que foram reais e consideráveis as probabilidades de obtenção de uma vantagem ou de obviar um prejuízo.

V - A mesma doutrina distribui o risco da incerteza causal entre as partes envolvidas, pelo que o lesante responde, apenas, na proporção e na medida em que foi autor do ilícito, sendo o dano que se indemniza constituído apenas pela perda de chance, que não pode ser igual à vantagem que se procurava, nem igual à quantia que seria atribuída caso se verificasse o nexo causal entre o facto e o dano final.

VI – No nosso ordenamento jurídico, a identificação de um dano constitui pressuposto incontornável de toda a responsabilidade civil e daí que, perante a apontada insuficiência de causa de pedir, o A nunca poderia vir a demonstrar que a alegada actuação omissiva do R lhe acarretou a perda de chance ou de oportunidade de alcançar os falados créditos, através da muito provável condenação da sua ex-entidade patronal na respectiva satisfação."

2. Admitindo a aplicação da doutrina da perda de chance na responsabilização do mandatário judicial, cf., por exemplo, STJ 5/2/2013 (488/09.4TBESP.P1.S1) e STJ 1/7/2014 (824/06.5TVLSB.L2.S1).

MTS
 

29/01/2015

Jurisprudência europeia (TJ) (37)


Reg. 44/2001; contratos celebrados pelos consumidores; consumidor, domiciliado num Estado‑Membro, que adquiriu títulos, emitidos por um banco estabelecido noutro Estado‑Membro, através de um intermediário estabelecido num terceiro Estado‑Membro

I. TJ 29/1/2015 (C‑375/13, Kolassa/Barclays Bank) decidiu o seguinte: 

"1) O artigo 15.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, um demandante que, na qualidade de consumidor, adquiriu uma obrigação ao portador através um terceiro profissional, sem que tenha sido celebrado um contrato entre o referido consumidor e o emitente dessa obrigação – o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar –, não pode invocar a competência prevista nesta disposição para efeitos da ação intentada contra o referido emitente e fundada nas condições de empréstimo, na violação dos deveres de informação e de controlo e na responsabilidade relativa ao prospeto. 

2) O artigo 5.°, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, um demandante que adquiriu uma obrigação ao portador através de um terceiro, sem que o respetivo emitente tenha livremente assumido uma obrigação para com esse demandante, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, não pode invocar a competência prevista nesta disposição para efeitos da ação intentada contra o referido emitente e fundada nas condições de empréstimo, na violação dos deveres de informação e de controlo e na responsabilidade relativa ao prospeto. 

3) O artigo 5.°, ponto 3, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação destinada a pôr em causa a responsabilidade do emitente de um certificado, devido ao respetivo prospeto e à violação de outros deveres legais de informação que incumbem a esse emitente, desde que essa responsabilidade não se insira no âmbito da matéria contratual na aceção do artigo 5.°, ponto 1, do referido regulamento. Nos termos do ponto 3 do mesmo artigo 5.°, os órgãos jurisdicionais do domicílio do demandante são competentes, a título da materialização do dano, para conhecer de uma ação desse tipo, nomeadamente, quando o dano alegado se produz diretamente numa conta bancária do demandante, num banco estabelecido na área de competência territorial desses órgãos jurisdicionais.

4) No âmbito da verificação da competência nos termos do Regulamento n.° 44/2001, não há que proceder a uma produção de prova abrangente em relação a factos controvertidos que são pertinentes quer para a questão da competência quer para o exame da existência do direito invocado. Todavia, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação poderá apreciar a sua competência internacional à luz de todas as informações de que dispõe, incluindo, se for caso disso, as contestações apresentadas pelo demandado."

II. Cf. o comentário de M. Lehmann.

28/01/2015

Papers (45)


-- Ayres, I./Nalebuff, B.J.,The Rule of Probabilities: A Practical Approach for Applying Bayes' Rule to the Analysis of DNA Evidence (01.2015)

-- Burbank, S. B., Procedure and Pragmatism (01.2015)



-- Papayannis, D. M., Probabilistic Causation in Efficiency-Based Liability Judgments (12.2014)




Jurisprudência (69)


Decisão sobre a matéria de facto; falta de fundamentação

1. É o seguinte o sumário de RC 20/1/2015 (2996/12.0TBFIG.C1): 

"I – Se o decisor de facto da 1ª instância formou a sua convicção sobre a veracidade e a irrealidade dos factos cujo julgamento é impugnado no recurso, também na prova testemunhal, deve exigir-se aos documentos nos quais o recorrente funda a impugnação um valor probatório tal que imponha para os aqueles factos uma decisão diversa que não possa ser destruída por aquela prova pessoal. 

II - Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório.

III – Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (artº 662º, nº 2 do nCPC).

IV - O documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, mas não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.

V - A proibição de produção de testemunhas para prova de quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou dos documentos particulares, quer essas convenções sejam anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento, não exclui a possibilidade de provar por testemunhas qualquer outro elemento como o fim ou o motivo do negócio, dado que aquele fim ou este motivo não é nem contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional à declaração.

VI - Apesar de, com a conclusão do contrato de mútuo e com a entrega do dinheiro mutuado ao mutuário, este se tornar proprietário dele, não viola este direito o mutuante que, por força de uma convenção das partes sobre a finalidade ou objectivo de contracção do mútuo ou, ao menos, por consentimento ou autorização do mutuário, afecta o dinheiro mutuado à satisfação de débitos que o último e a sua empresa tinha para consigo."

2. O acórdão trata -- aliás, bem -- de várias matérias importantes (entre outras, a admissibilidade e relevância da prova documental, a apresentação de documentos na 2.ª instância e a admissibilidade da prova testemunhal), mas tem um especial interesse quanto à solução que fornece para a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. Entende o acórdão que a falta desta fundamentação não constitui uma nulidade da sentença, isto é, não constitui, em concreto, a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), CPC.

Efectivamente, apenas a falta da especificação dos fundamentos de facto ou de direito implica a nulidade da sentença. Não é o que se verifica quando os fundamentos de facto constam da sentença, mas o tribunal não especifica as razões pelos quais esses fundamentos são considerados adquiridos ou provados. Esta falta de fundamentação não gera a nulidade da sentença, antes permite a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, como se refere no acórdão, justifica que a Relação possa exigir à 1.ª instância a fundamentação dessa decisão (cf. art. 662.º, n.º 2, al. d), CPC).

MTS
 

Jurisprudência (68)


Incompetência absoluta; momento do conhecimento

I. O sumário de RL 20/1/2015 (375014/09.5YIPRT) é o seguinte:

"1. A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da questão. Mas, se a questão da competência em razão da matéria respeitar apenas a dois tribunais judiciais, só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não tendo este lugar, até ao início da audiência final.
 
2. Não se forma caso julgado quanto à competência do tribunal em razão da matéria quando a questão se suscitar entre dois tribunais de diferente jurisdição, ainda que no despacho saneador tenha sido decidido tabularmente que o tribunal da causa é competente para o julgamento. 
 
3. Em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 212º, da Constituição da República Portuguesa, os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos que, excepcionalmente, venham a ser atribuídos por lei especial a outra jurisdição. 
 
4. Tendo em consideração que os tribunais administrativos são os competentes para dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, importa essencialmente apurar em cada caso o que se entende por “relação jurídica administrativa”.
 
5. A relação jurídica administrativo poderá ser entendida com “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.
 
6. Assim, no fundo, há que averiguar se a invocada relação jurídica é uma relação de direito privado ou de direito público, pois é essa averiguação que irá determinar qual o tribunal competente para o julgamento da causa.
 
7. O direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes públicos, mas actuando estes despidos do «ius imperii», pelo que se a relação jurídica controvertida não se apresentar com estas características, estaremos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários.
 
8. Consequentemente, se no âmbito de uma relação contratual ambos os contraentes forem entidades particulares, e actuando apenas nessa qualidade, não estará em causa uma relação jurídica tutelada pelo direito público.
 
9. O facto de o Contrato de Cessão de Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial ter sido celebrado pela autora na qualidade de Concessionária, não significa necessariamente que se trate de um contrato de direito público, até porque o próprio Estado, em certos casos, actua como se de um simples particular se tratasse (despido do ius imperii), pelo que também a cessionária, por maioria de razão, pode celebrar contratos de natureza privada.
 
10. A causa de pedir nesta acção assenta no alegado incumprimento pelo Réu do “Contrato de Cessão do Direito de Utilização de Estabelecimento Comercial”, no que diz respeito à falta de pagamento das taxas de manutenção mensalmente facturadas pela autora nos termos acordados, tendo a autora, embora concessionária, actuado desprovida de poderes de autoridade.
 
11. A obrigação contratual de pagamento mensal de uma determinada quantia, que foi designada de “taxa”, não reveste, ela própria, uma qualquer natureza ou regulamentação administrativa e/ou de direito público.
 

12. Este vocábulo não está empregue em sentido técnico jurídico (nomeadamente fiscal), ou seja, no sentido de importância cobrada aos utentes de um serviço público como contrapartida pela prestação desse mesmo serviço, tratando-se antes de quantias pagas a título de “manutenção e demais serviços prestados”, designadamente de vigilância, limpeza e promoção global, não estando em causa serviços de ordem e/ou interesse público".

II. Discute-se no acórdão se, para a apreciação da acção, são competentes os tribunais judiciais (no qual a acção foi proposta) ou os tribunais administrativos. No despacho saneador, o tribunal judicial a quo considerou-se, em termos genéricos ou "tabulares", competente para apreciar a acção, mas, na sentença final, declarou-se incompetente para essa apreciação, absolvendo o réu da instância.

Estando em causa saber se a competência (material) pertence aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos, aplica-se, quanto ao momento da arguição e do conhecimento da incompetência absoluta, o disposto no art. 97.º, n.º 1, CPC: essa incompetência pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal até ao trânsito em julgado da decisão proferida sobre o fundo da causa (portanto, teoricamente, mesmo depois do proferimento dessa decisão). O acórdão da RL é totalmente correcto quanto à aplicação daquele preceito.

O que a RL tinha a decidir era se a afirmação genérica e "tabular" no despacho saneador da competência do tribunal impedia que, na sentença final, esse mesmo tribunal viesse a considerar-se incompetente. Apesar de a RL não a referir, a solução para este problema encontra-se na lei: segundo o disposto no art. 595.º, n.º 3, CPC, quando o tribunal se pronuncia no despacho saneador sobre uma excepção dilatória ou uma nulidade processual, esse despacho só constitui caso julgado formal se houver uma apreciação concreta da excepção ou da nulidade, ou seja, se o tribunal analisar e discutir essa excepção ou essa nulidade. Sendo assim, tendo o tribunal a quo apreciado genericamente a sua competência absoluta no despacho saneador, não se formou caso julgado quanto a essa apreciação, pelo que, de acordo com o disposto no art. 97.º, n.º 1, CPC, não estava precludida a apreciação, mediante arguição das partes ou por iniciativa oficiosa, dessa incompetência na sentença final.

Atendendo ao disposto no art. 595.º, n.º 3, CPC, é discutível que se verifique a oposição jurisprudencial reconhecida pela RL na fundamentação do acórdão, dado que, em alguns dos acórdãos referidos, se fala da apreciação genérica da competência do tribunal do despacho saneador e, num outro, da apreciação concreta dessa competência. Seja como for e apesar de não ter referido o art. 595.º, n.º 3, CPC, a RL decidiu bem quanto a não considerar precludida a possibilidade de, na sentença final, o tribunal a quo se considerar materialmente incompetente, isto depois de, no despacho saneador, se ter considerado, em termos genéricos ou "tabulares", competente para a acção.

III. A latere do presente acórdão da RL, pode perguntar-se como se conjuga o disposto no art. 97.º, n.º 2, CPC (que só permite a arguição ou o conhecimento da incompetência absoluta até ao despacho saneador) com o estabelecido no art. 595.º, n.º 3, CPC, no caso de ter havido apenas uma apreciação genérica ou "tabular" da competência absoluta no despacho saneador

A resposta não levanta dificuldades. Se o despacho saneador omitir qualquer referência à incompetência absoluta, é claro que opera a preclusão imposta pelo art. 97.º, n.º 2, CPC; a solução não pode deixar de ser a mesma, se o despacho saneador se pronunciar em termos genéricos ou "tabulares" sobre essa mesma incompetência. Este despacho não constitui caso julgado sobre a competência absoluta, mas, por força do art. 97.º., n.º 2, CPC, encontra-se precludida a apreciação desta competência em momento posterior. A solução demonstra que, como é bem conhecido, a preclusão é mais ampla que o caso julgado, ou seja, nem toda a preclusão decorre do caso julgado.


MTS

27/01/2015

Jurisprudência (67)


Prestação de facto negativo; execução

É o seguinte o sumário de RP 12/1/2015 (3508/13.4T2OVR-A.P1):

"I - Da conjugação do disposto nos artigos 876.º e 877.º do CPC resulta imperativamente a existência de dois momentos no processo executivo de prestação de facto negativo: a verificação pericial; e o reconhecimento (ou não) pelo juiz da falta de cumprimento da obrigação (de non facere) do executado

II - Revela-se susceptível de causar alguma perturbação interpretativa a expressão “pode requerer”, inserta no n.º 1 do artigo 876.º do Código de Processo Civil.  

III - Deverá, no entanto, entender-se, que o credor exequente que pretenda, coercivamente, por via executiva, pôr termo à violação da obrigação, quando esta tenha por objecto um facto negativo, terá obrigatoriamente, no requerimento executivo, de requerer a verificação da violação por meio de perícia.  

IV - Com efeito, a expressão verbal “pode”, que traduz normalmente a atribuição de uma faculdade, e não a fixação de um imperativo (traduzido na expressão: “deve”), refere-se in casu à faculdade que é conferida ao credor munido de um título executivo no qual se consubstancia a obrigação de non facere do devedor (executado), de requerer: que a violação da obrigação seja verificada pericialmente; que o juiz ordene: a) a demolição da obra que eventualmente tenha sido feita; b) a indemnização do exequente pelo prejuízo sofrido; e c) o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória

V - Tais providências têm como pressuposto óbvio e necessário, a verificação da violação, que terá que ser requerida com base em prova pericial

VI - Em suma, o credor munido do título pode requerer ao juiz, no caso de violação da obrigação que tenha por objecto um facto negativo: que a violação da obrigação seja verificada por meio de perícia; e que sejam decretadas as providências enunciadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 876.º do CPC. Optando por requerer a diligência de demolição, terá necessariamente que requerer a prévia verificação pericial da violação da obrigação."


Bibliografia (57)


-- Network of the Presidents of the Supreme Judicial Courts of the European Union (Ed.), Regulating Judicial Activity In Europe / A Guidebook to Working Practices of the Supreme Courts (Edward Elgar Publishing Limited: Cheltenham/Northampton 2014)

--Taruffo, M., Globalizing Procedural Justice. Some General Remarks, RePro 237 (2014), 459
 
-- Taruffo, M., Evidence, Truth and the Rule of Law, RePro 238 (2014), 87

-- Uzelac, A., Delays and Backlogs in Civil Procedure / A (South East) European Perspective, RePro 238 (2014), 39

26/01/2015

Jurisprudência (66)


Objecto da prova; impugnação da decisão sobre a matéria de facto


1. O sumário de RP (12/1/2015) (1989/13.5TBPNF.P1) é o seguinte: 

"I - Não se pode confundir temas de prova com a impugnação da decisão da matéria de facto.

II - A parte tem o ónus da alegação dos factos que, segundo o direito substantivo, lhe compete provar, alegação essa que terá de continuar a fazer nos articulados, sem prejuízo das situações em que a lei lhe permite introduzir os factos mais tarde no processo, pelo que, a prova continua a incidir sobre esses factos alegados e não sobre temas, estes representam apenas o quadro em que os primeiros se inserem, mas os factos é que são objecto da prova.

III - Daí que, quem pretenda impugnar a decisão da matéria de facto deva ela ser circunscrita à fundamentação factual e não aos temas de prova, razão pela qual seja de rejeitar o recurso, nesse segmento, quando não se indiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e se faça, nesse âmbito, alusão àqueles temas.  

IV - Sendo a Autora uma sociedade anónima, competia à sua administração praticar os actos materiais ou jurídicos de execução da vontade da sociedade e manifestar, externamente, a vontade desta, nomeadamente constituindo, modificando e extinguindo as relações jurídicas que tenham a sociedade como sujeito

V - Deste modo, o chefe nacional de vendas da Autora não tinha poderes para vinculá-la no pagamento da quantia de € 30.000,00 de comparticipação publicitária contra a prestação de garantia bancária, uma vez que tal competência é reservada à administração da Autora e não foi, tal acto, por ela ratificado.  

VI - Não age com abuso de direito, designadamente, na modalidade de “venire contra factum proprium”, a parte que tendo fundamento para resolver o contrato não exerce esse mesmo direito e, inclusivamente, paga ao inadimplente a comparticipação financeira de publicidade, pois que, isso podendo ter vários significados, mas visando, em regra, as sociedade comerciais o lucro, apenas pode ser entendido como a concessão ao devedor de um período probatório com vista a verificar se o inadimplente se consegue libertar da situação difícil em que se encontra. 

VII - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um re-estudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas."

2. O art. 410.º CPC estabelece que "a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados [...]". O preceito tem sido criticado com o argumento de que apenas factos podem constituir o objecto da prova. Há, no entanto, boas razões para se entender que o objecto da prova são realmente os temas de prova enunciados pelo juiz. 

É claro que, na linguagem quotidiana, na linguagem dos chamados operadores judiciários e até na linguagem legal (cf. art. 341.º CC), é muito comum falar-se de factos. Importa observar, no entanto, que só por uma simplicidade de linguagem se fala de factos, dado que em processo não há factos, mas antes e apenas afirmações de facto, isto é, enunciados linguísticos sobre factos. Os factos são algo de ontológico, algo que existiu, existe ou existirá. É impossível que um facto volte a acontecer (se for passado) ou venha a acontecer (se for futuro) num processo. Os factos só "entram" no processo através de uma afirmação de facto, ou seja, através de um enunciado linguístico que tem por referência um facto.

Assim, é perfeitamente correcto afirmar que o objecto da prova são os temas da prova. Um tema da prova (Beweisthema) é sinónimo de "prova de uma determinada afirmação" (Beweis einer bestimmten Behauptung), de "facto probando" (Beweistatsache) e de "questão probatória" (Beweisfrage) (Rosenberg/Schawb/Gottwald, Zivilprozessrecht, 17.ª ed. (2010), 619). É por isso que "a partir de um facto probando é possível tirar a conclusão sobre a existência de um tema de prova" (Ekelöf/Edelstam/Heuman, Rättgång V, 7.ª ed. (2009), 17).

3. Os temas da prova são afirmações de facto controvertidas (e não afirmações de factos controvertidos), ou seja, são enunciados de afirmações que, por serem controvertidas entre as partes, devem ser provadas por uma destas partes. Constitui exemplo de um tema de prova o enunciado de que é controvertida a afirmação de que o réu tenha actuado com negligência.  

O tema da prova é uma afirmação de facto controvertida, ou seja, uma afirmação que admite a demonstração tanto da sua verdade (é verdade que o réu actuou com negligência), como da sua não verdade (não é verdade que o réu tenha actuado com negligência). Só uma afirmação de facto pode ser ser verdadeira ou não verdadeira, pois que só uma afirmação pode ser comparada, em termos de verdade ou não verdade, com a realidade (teoria da correspondência da verdade). Não há factos verdadeiros, nem factos falsos: o que existe são afirmações de facto verdadeiras e afirmações de facto falsas.

É por isso que o objecto da prova coincide com o tema da prova, dado que a prova tem por finalidade a demonstração da verdade de uma afirmação de facto controvertida. Após a produção e a avaliação da prova, o tribunal só pode escolher entre a verdade da afirmação (é verdade que x) e a não verdade da afirmação (não é verdade que x) que consta do tema da prova. A prova destina-se precisamente a permitir a escolha de uma destas opções pelo tribunal. Por exemplo: se o tema da prova for a (afirmação da) actuação negligente do réu, a prova produzida vai permitir que o tribunal considere verdadeira ou não verdadeira (a afirmação d)essa actuação.

O tema da prova admite duas respostas (verdade/provado que x e não verdade/não provado que x), mas, na sequência da apreciação da prova produzida, o tribunal só pode considerar a afirmação controvertida verdadeira e provada ou não verdadeira e não provada. Fica também claro que o juízo de verdade ou não verdade e a resposta à prova produzida não se referem ao facto (facto x), mas à afirmação de facto controvertida (afirmação de x) que consta do tema da prova.

MTS

O poder de controlo genérico do juiz sobre a atividade do agente de execução




O papel do agente de execução tem de ser objeto de um efetivo controlo judicial. No entanto, este poder apenas pode ser concebido como um poder de tutela, isto é, de fiscalização da regularidade do processo e da legalidade da atuação do agente de execução, incluindo tanto as suas ações, como as suas omissões. Aquele poder permite que o juiz anule e corrija os atos praticados pelo agente de execução, seja a requerimento de alguma das partes, seja ex officio.

O poder de controlo do tribunal não chega, todavia, a ser um poder funcional, na medida em que não é o juiz quem define e determina o modo como o agente de execução conduz o processo executivo e lhe pode pedir responsabilidade pela sua atuação processual menos diligente.

Com efeito, deixou de ser possível a destituição do agente de execução por decisão do juiz, poder que se encontrava previsto no n.º 4 do artigo 808.º do CPC/61, estando agora as matérias respeitantes à fiscalização e disciplina dos agentes de execução atribuídas à Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (ex-CPEE). De outra parte, as referências ao poder de controlo do juiz sobre a atividade do agente de execução, quer no Código de Processo Civil (arts. 808.º, n.º 1, e 809.º, n.º 1, proémio, do CPC/61) quer no Estatuto da Câmara dos Solicitadores (art. 116.º do ECS), foram eliminadas com a entrada em vigor do DL n.º 226/2008, de 20/11), pelo que a substituição do agente de execução apenas pode ocorrer a requerimento do exequente (art. 720.º, n.º 4, do nCPC).

O agente de execução é um órgão processual ao qual incumbe a direção e gestão do processo em tudo o que não configure matéria jurisdicional e que deve exercer esses seus poderes com autonomia, independência e imparcialidade. Ao juiz de execução cabe garantir a legitimidade e correção da atividade daquele agente.

O poder de controlo do tribunal também não habilita o agente de execução a tirar dúvidas junto do juiz, exigindo deste um dever assistencial ou de amparo e colocando o juiz numa posição de consultor jurídico permanente (p. ex., o agente de execução não pode perguntar ao juiz como deve proceder para a prática de determinado ato ou se um certo ato já praticado foi bem efetuado). Isto não obsta ao dever de colaboração que deve existir entre o juiz e os demais órgãos processuais ao longo de todo o processo.

É por isso que o artigo 723.º, n.º 1, al. d), do nCPC – que atribui ao juiz o poder de decidir quaisquer questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes – deve ser interpretado como servindo apenas para o agente de execução submeter ao juiz questões em matéria jurisdicional, o que pressupõe a existência de um prévio conflito de interesses no processo e o que significa que o juiz controla ex post a atividade do agente de execução. Aquele preceito não deve ser utilizado para permitir que o agente de execução tire dúvidas, servindo de advertência contra esta interpretação o disposto no n.º 2 daquele normativo quanto à possibilidade de o juiz aplicar uma multa ao requerente.

O poder geral de controlo entendido na sua plenitude era aceitável no período inicial de implementação da reforma da ação executiva, em que ainda predominava alguma indefinição sobre o novo modelo. Neste momento, deixou de ser uma solução para se tornar antes um problema, se aquele poder for exercido de forma voluntarista pelo juiz, pois pode constituir um obstáculo – e, nalguns casos já o é, porque duplica tarefas – à eficiência do sistema de justiça executiva.

O atual paradigma permite vários estilos: estes vão desde um controlo mais apertado da atuação do agente de execução (sistema voluntarista) – como seja, tirar prazos, pedir informações constantes sobre o estado dos autos, comunicar provimentos, etc. – até um controlo mais distante, deixando a direção do processo entregue ao agente de execução e limitando o juiz a sua intervenção à apreciação da regularidade dos atos processuais apenas quando seja provocada a sua intervenção nos termos que a lei especificamente prevê (sistema de intervenção mínima).

O primeiro modelo é inexequível e transforma os agentes de execução em meros funcionários do serviço externo. Pessoalmente, parece-me preferível o segundo modelo, pois considero que se deve imprimir alguma autonomia à atuação dos agentes de execução, responsabilizando-os, todavia, pelos atos que praticam.

José Henrique Delgado de Carvalho
(Juiz de Direito)