"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2015

Bibliografia (115)


-- Cerrone, F./Repetto, G. (Eds,), Alessandro Giuliani: l'esperienza giuridica fra logica ed etica (Milano 2012) (acessível para download no Centro di studi per la storia del pensiero giuridico moderno)


Legislação europeia (Projectos e propostas) (5)



-- Posição (UE) n.º 7/2015 do Conselho tendo em vista o Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos processos de insolvência (reformulação), JO C 141, de 28/4/2015

-- Nota justificativa do Conselho: Posição (UE) n.º 7/2015 do Conselho em primeira leitura tendo em vista a adoção do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos processos de insolvência (reformulação), JO C 141, de 28/4/2015


Jurisprudência (126)


Recurso de revista; dupla conforme; revista excepcional; oposição de julgados;
ordem de apreciação dos recursos


I. É o seguinte o sumário de STJ 15/4/2015 (849/09.9TJVNF.P1.S1):

1. Sendo o recurso de revista interposto, em primeira linha, com base na não verificação de dupla conforme por alegada fundamentação essencialmente diferente, nos termos do n.º 3 do art.º 671.º do CPC, e, subsidiariamente, com fundamento especial radicado em contradição entre o acórdão recorrido e um acórdão do STJ, no domínio de uma outra questão essencial para a decisão recorrida, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do art.º 672.º do mesmo Código, impor-se-á ajuizar, prioritariamente, sobre a questão da admissibilidade em sede geral de dupla conforme.

2. Porém, sendo a fundamentação tida por essencialmente diversa confinada a uma consideração final do acórdão recorrido feita
a latere sem que tivesse sido ali assumida como fundamento nuclear da decisão confirmativa da sentença da 1.ª instância, neste plano, tal consideração revela-se, à partida, irrelevante para descaracterizar a dupla conforme.

3. Não obstante isso, vislumbrando-se que tal consideração final poderá, ainda assim, vir a ser equacionada na apreciação do objeto do recurso, caso improceda a alegada contradição jurisprudencial sobre a outra questão essencial, deverá então admitir-se a revista com base nessa fundamentação essencialmente diversa, em termos prospectivos, mas condicionada à procedência do fundamento subsidiário estribado naquela contradição.

4. Assim, devendo tal contradição jurisprudencial ser apreciada em sede de mérito e não como mero requisito de admissibilidade do recurso, dado envolver um cotejo mais aprofundado dos acórdãos em confronto, julgada que seja improcedente a invocada contradição, ficará, nessa medida, prejudicado o conhecimento do objeto do recurso quanto à questão só prospectivamente tida por essencialmente diversa.
 

II. O acórdão trata de uma matéria interessante e talvez pouco frequente: tendo a parte interposto (respeitando totalmente o regime legal), a título principal, uma revista "normal" e, a título subsidiário, uma revista excepcional, o que sucede quando a questão que constitui o objecto da revista excepcional é prejudicial em relação à apreciação da questão que é objecto da revista "normal"?

O caso apreciado no acórdão foi o seguinte: os autores instauraram uma acção em que, no essencial, pediam o reconhecimento de uma servidão de aqueduto a favor de um seu prédio; a 1.ª instância considerou a acção improcedente quer pela extinção, por renúncia, da servidão, quer por abuso do direito; os autores interpuseram recurso para a Relação, que confirmou a improcedência com base no abuso do direito e que, a latere, acrescentou que nem se poderia falar da constituição da servidão por usucapião por não existir prova, nem sequer ter sido alegada a inversão do título de posse.

Os autores interpuseram recurso de revista nos seguintes termos: 

-- Fundamentaram o recurso de revista "normal" na inexistência de dupla conforme, atendendo a que a Relação, apesar de ter confirmado a decisão da 1.ª instância, o fez com uma fundamentação essencialmente diversa -- não constituição da servidão por usucapião (cf. art. 671.º, n.º 3, CPC);

-- A título subsidiário, fundamentaram, no que respeita à questão do abuso do direito, o recurso de revista excepcional numa alegada contradição de julgados (cf. art. 672.º, n.º 1, al. c)).

III. O problema com que o STJ se confrontou parece ter sido o seguinte: os recursos interpostos a título principal e a título subsidiário contrariam a ordem natural da apreciação das questões suscitadas pelos recorrentes, dado que uma eventual confirmação pelo STJ da decisão quanto ao abuso do direito -- que constituía o objecto do recurso subsidiário -- precludiria a necessidade da apreciação da não verificação da dupla conforme pela fundamentação essencialmente distinta constante do acórdão da Relação -- que constituía o objecto do recurso principal.

Ao contrário do que o STJ entendeu, tudo parece situar-se no plano da admissibilidade dos recursos interpostos pelos recorrentes: os art. 671.º, n.º 3, e 672.º, n.º 1, al. c), CPC referem-se apenas à admissibilidade da revista e da revista excepcional. Neste plano, não havia que considerar a ordem natural da apreciação das questões suscitadas nos recursos: antes de saber qual a ordem pela qual os recursos devem ser apreciados, há que determinar se ambos os recursos são admissíveis.

O problema que o STJ enfrentou só surgiria no caso de a revista "normal" ser considerada admissível, dado que, segundo o regime legal, a admissibilidade desta revista afasta a admissibilidade (e a necessidade) da revista excepcional. Era isto que não poderia suceder no caso concreto, dado que a questão suscitada na revista excepcional era prejudicial em relação à questão colocada na revista "normal". Assim, apesar da admissibilidade da revista "normal", haveria que analisar também a admissibilidade da revista excepcional. Desta análise poderia resultar uma das seguintes consequências:

-- Se a revista excepcional também fosse admitida, teria de ser a questão nela suscitada a primeira a ser analisada pelo STJ;

-- Se a revista excepcional não fosse admitida, estaria prejudicada a apreciação da revista "normal" (apesar de esta ter sido admitida), dado que a questão dependente que nesta foi suscitada só poderia ser apreciada no caso de improcedência da revista excepcional.

Dado que o STJ considerou a revista "normal" inadmissível, a solução do problema estava bastante facilitada, dado que tudo se concentrava na admissibilidade ou inadmissibilidade da revista excepcional:

-- Se esta revista viesse a ser considerada admissível, passava-se a analisar a questão do abuso do direito; 

-- Se aquela revista também não fosse considerada admissível, nada seria apreciado, em termos de mérito, nesse recurso.

MTS

29/04/2015

Informação (54)


Pacto de jurisdição assimétrico

Por decisão de 25/3/2015 (13-27264), a Cour de Cassation  considerou que um pacto de jurisdição assimétrico -- que é um pacto que vincula uma das partes a demandar num determinado tribunal e que permite que a outra parte possa intentar a acção em qualquer tribunal competente -- concluído segundo o disposto no art. 23.º CLug II não é necessariamente inválido. De acordo com a Cour de Cassation, não se estando no âmbito de uma relação de consumo, tudo depende da existência de "elementos objectivos" que possam justificar a referida competência alternativa.

MTS

Jurisprudência (125)



Regime de bens; abuso do direito

É o seguinte o sumário de STJ 14/4/2015 (3/11.0TBOHP.C1.S1)

I - No regime de separação de bens, inexistem bens comuns dos cônjuges mas, apenas, bens em compropriedade, sendo configurável a existência de um mandato tácito para enquadrar as hipóteses em que um dos cônjuges adquire bens em nome próprio mas com dinheiro que é também do outro, atento o facto de a comunhão de vida implicar realizações económicas conjuntas. 

II - Resultando da factualidade provada que os cônjuges ignoravam que o seu casamento estava imperativamente sujeito ao regime da separação de bens e que acreditavam que vigorava entre eles um regime de comunhão (o que explicaria a desnecessidade de rodear a utilização do dinheiro de ambos de quaisquer cautelas ou de fazer intervir a autora como compradora para que os bens fossem comuns) e tendo decorrido 40 anos de vida comum, constitui abuso do direito a invocação, pelo réu, daqueloutro regime para se arrogar a propriedade exclusiva de bens que foram adquiridos com dinheiro da sua cônjuge, havendo, pois, que considerar que tais bens pertencem a ambos, em regime de compropriedade.



28/04/2015

Bibliografia (114)


-- Lieder, J., Die Aufrechnung im Internationalen Privat- und Verfahrensrecht, RabelsZ 78 (2014), 809
 
 

Jurisprudência (124)



Recurso para uniformização de jurisprudência; oposição de julgados


I. O sumário de STJ 14/4/2015 (2098/11.7TBPBL.C1-A.S1.A) é o seguinte: 

1. O recurso para uniformização de jurisprudência (art. 688.º, n.º 1, do CPC) exige que haja contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão fundamental de direito.

2. No caso, a questão fundamental de direito tem a ver com o conceito da dupla conformidade e com a interpretação e aplicação da norma do art. 671.º, n.º 3, do CPC (acórdão recorrido) e, bem assim, na versão anterior deste diploma, do art. 721º nº 3 (acórdão-fundamento).

3. Sobre tal questão, os referidos acórdãos adoptaram entendimento diferente:

- Para o acórdão recorrido, mesmo que não haja perfeita coincidência de decisões, continuará a existir dupla conforme, se, na procedência parcial da apelação, a Relação emitir decisão que seja mais favorável para o recorrente do que a decisão da 1ª instância;

- Para o acórdão-fundamento, para existir dupla conforme, terá de se verificar uma sobreposição integral de decisões, ou seja, uma total e irrestrita coincidência entre a decisão da 1ª instância e o acórdão da Relação.

4. Porém, a redacção das normas dos citados arts. 671.º, n.º 3, e 721.º, n.º 3, evidencia que a caracterização da figura da dupla conforme sofreu uma alteração restritiva, passando a exigir-se que a confirmação da decisão da 1ª instância seja feita sem fundamentação essencialmente diferente.

5. Ora, a oposição de acórdãos, como fundamento do recurso de uniformização, pressupõe que se esteja
no domínio da mesma legislação; releva, pois, que, no intervalo entre um e outro acórdão, não tenha ocorrido qualquer mudança legislativa com interferência directa ou indirecta na questão de direito controvertida.

6. Para vingar a oposição entre os acórdãos, as situações apreciadas em cada um deles teriam de ser nuclearmente idênticas e as soluções teriam de ser diferentes, independentemente da alteração legislativa ocorrida entre eles.

7. Não é isso, porém, o que se verifica no caso: perante o quadro normativo anterior, sem interferência da fundamentação das decisões, operaria a contradição entre os acórdãos (limitada ao referido diferente entendimento sobre a dupla conforme); à luz da norma actual, a decisão do acórdão recorrido, fruto da diferente fundamentação, não seria, perante a situação apreciada no acórdão-fundamento, diferente da decisão adoptada neste, ou seja, não existiria dupla conforme.

8. Assim, apesar do diferente entendimento dos dois aludidos acórdãos sobre o conceito da dupla conforme, as situações apreciadas num e noutro não são idênticas, assim como não é substancialmente idêntico o quadro normativo neles considerado e aplicado, não se verificando todos os pressupostos do recurso para uniformização de jurisprudência.
 


II. O regime da dupla conforme fornece um critério de duvidosa valia para bloquear o acesso ao STJ, principalmente quando estão em causa decisões de mérito das instâncias. Em todo o caso, das duas orientações de que o acórdão dá conta, a única aceitável é a que considera que o proferimento pela Relação de uma decisão mais favorável ao recorrente do que a decisão recorrida obsta à admissibilidade do recurso de revista.

A fundamentação do acórdão é algo obscura, pelo menos para quem não acompanhou o processo (no terceiro parágrafo a contar do fim parece haver uma troca entre "acórdão recorrido" e "acórdão-fundamento"). Acima de tudo (e mesmo que haja empenho em seguir o principle of charity) permanece a dúvida sobre se o argumento do STJ é o de que o acórdão-fundamento não pode ser utilizado como tal para efeitos de interposição de recurso para uniformização de jurisprudência, atendendo a que este acórdão, se fosse visto à luz do actual art. 671.º, n.º 3, CPC, não constituiria uma dupla conforme com a decisão da 1.ª instância, dado que a fundamentação nele utilizada não é a mesma que foi utilizada pela 1.ª instância. 

Esta interpretação encontra algum apoio na relevância que o acórdão dá à mudança de critérios de constituição de uma dupla conforme, embora o acórdão, na sua globalidade, dificilmente a corrobore. É pena que o STJ não tenha sido mais claro, para que se percebesse, sem dúvidas, o sentido da sua orientação.

III. Atendendo à divergência jurisprudencial sobre o sentido da dupla conforme -- alguma jurisprudência entende que se verifica a dupla conforme sempre que a decisão da Relação seja mais favorável ao recorrente do que a decisão recorrida, outra exige, para que se verifique a dupla conforme, uma total coincidência entre as decisões das instâncias --, é previsível que venham a ser interpostos novos recursos para uniformização de jurisprudência nesta matéria. Se tal suceder, deve a jurisprudência ser uniformizada de acordo com o primeiro dos referidos entendimentos, dado que é incoerente que, se o acórdão da Relação confirmar a decisão recorrida, o recorrente não possa interpor revista, mas o possa fazer se o acórdão da Relação, em vez de confirmar a decisão recorrida, for mais favorável a esse recorrente.

MTS

Paper (81)


-- Stephen Nwoye, I., Applicable Laws and Standards for Interim Measures in International Arbitration (04.2015)

27/04/2015

Decisão absolutória e caso julgado legibus sic stantibus



1. Num artigo dedicado ao estudo dos reflexos da alteração da lei sobre as decisões judiciais, W. Habscheid (ZZP 78 (1965), 403) apresenta um caso interessante: em 1941, durante o Governo de Vichy, foi aprovada uma lei que permitia que, passados três anos após a separação de pessoas e bens, o cônjuge que tinha sido considerado culpado nessa separação podia requerer a conversão da separação em divórcio, mas o tribunal tinha o poder discricionário de decretar ou não decretar essa conversão; em 1945 e 1946, duas novas leis restabeleceram a situação legal que existia antes da lei aprovada pelo Governo de Vichy, situação segundo a qual o cônjuge culpado podia, nas mesmas condições, requerer a conversão da separação em divórcio, mas -- e nisto reside o aspecto importante -- o tribunal, perante a verificação do requisito temporal, tinha de decretar a conversão da separação em divórcio.

A alteração legislativa colocou a questão de saber se o cônjuge que, durante a vigência da lei de Vichy, tinha requerido a conversão de separação em divórcio e não a tinha obtido podia requerer, de novo, essa conversão. Quase unanimemente mas com fundamentações muito distintas, a jurisprudência e a doutrina francesas responderam -- num caso que tinha fortes contornos políticos -- que nada impedia que esse cônjuge voltasse a requer a conversão (e, portanto, a obter, em termos potestativos, a conversão da separação em divórcio).

No mesmo estudo, W. Habscheid (ZZP 78 (1965), 435) refere um outro exemplo -- por acaso igualmente francês -- cuja solução também suscita alguns problemas. O exemplo é o seguinte: temendo ficar sem as acções de uma sociedade pela iminente invasão alemã, A alienou, a título fiduciário, essas acções a B; A morre durante a Segunda Guerra Mundial; o irmão de A pede a restituição das acções, mas não obtém ganho de causa, dado que o tribunal entendeu que a pretensão já se encontrava prescrita; em 1950, é publicada uma lei que admite, no caso de uma pessoa ser declarada morta por sentença, a propositura de qualquer acção durante os seis meses posteriores a essa declaração; A foi nessa altura declarado morto; o seu irmão intentou uma nova acção, que o tribunal considerou admissível.

A estes casos pode acrescentar-se um outro (completamente imaginado e politicamente neutro): suponha-se que, numa altura em que não eram admitidas nenhumas presunções legais, um pretenso filho propõe uma acção de investigação da paternidade; a acção é julgada improcedente; algum tempo depois, é introduzido na respectiva ordem jurídica um novo regime legal que estabelece algumas presunções da paternidade; pode perguntar-se se o pretenso filho pode instaurar, de novo, uma acção de investigação da sua paternidade.

2. A todos os exemplos anteriores são comuns os seguintes factos: é intentada uma acção; a acção é julgada improcedente; sobrevém uma lei que, em teoria, permitiria que, se a situação fosse por ela apreciada, a acção viesse a ser julgada procedente. Perante, estas circunstâncias pode perguntar-se se o caso julgado que resultou da primeira acção obsta à admissibilidade da segunda acção.

Sendo hoje assente que o caso julgado (mesmo o de uma obrigação instantânea) só vale rebus sic stantibus, o que se pergunta é se um caso julgado absolutório só pode valer legibus sic stantibus.

3. A questão colocada nada tem a ver com obrigações duradouras -- como é tipicamente uma obrigação de alimentos -- e com a possibilidade de alterar um caso julgado a elas respeitante com fundamento tanto em factos supervenientes, como numa alteração legislativa igualmente superveniente (sobre esta última situação, cf. I. Alexandre (Modificação do Caso Julgado Material Civil por Alteração das Circunstâncias (pol. 2010), 543 ss.). Em todos os exemplos anteriores a acção terminou com uma decisão de improcedência, pelo que não se chegou a constituir nenhuma situação jurídica, muito menos uma situação de carácter duradouro. 

Após uma decisão de improcedência, o que pode haver de duradouro não pode ser uma situação constituída por essa decisão (se houve absolvição, nada foi constituído em termos substantivos), mas antes o estado de coisas que já existia antes da decisão e que permanece inalterado após o caso julgado. Por exemplo: o alegado credor que não obteve a condenação do devedor continua a não ser credor; o cônjuge que não conseguiu o decretamento do divórcio continua a estar casado; o pretenso filho que não obteve o reconhecimento da paternidade continua a não estar reconhecido como filho; o devedor que não obteve a declaração da extinção do crédito continua a ter o dever de realizar a correspondente prestação.

Visualizando, num esquema, a situação:

                                  CJA
                                      ↓
│––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-------------–––-→
NEP→                         NEP→


 
(CJA = Caso julgado absolutório; NEP = Não estabelecimento da paternidade)

Esta colocação da questão é importante, porque demonstra que o que se trata de saber não é se o caso julgado absolutório pode ser modificado, mas antes de saber se o estado de coisas que o caso julgado não alterou pode ser modificado com base numa lei superveniente ao próprio caso julgado. Dito de outra forma: o que agora está em causa não é saber se o caso julgado da decisão que não reconheceu a paternidade pode ser modificado, mas antes saber se o não estabelecimento da paternidade pode ser alterado (e se, portanto, é admissível estabelecer essa paternidade) com base numa lei superveniente. Ainda mais em concreto: o problema não é de modificação do caso julgado absolutório, mas de modificação, com fundamento numa lei posterior, da situação que o caso julgado absolutório deixou inalterada.

A continuação da situação anterior ao caso julgado absolutório é clara nas situações em que ele incide sobre uma decisão proferida numa acção constitutiva: uma decisão absolutória proferida numa acção constitutiva nada constituiu, pelo que se mantém inalterado o estado de coisas que existia antes da decisão. Por exemplo: uma decisão de improcedência proferida numa acção divórcio deixa inalterada o estado de casado dos cônjuges. Mas pode dizer-se o mesmo de qualquer outra decisão absolutória: uma decisão de improcedência proferida numa acção de reivindicação deixa imodificado o não reconhecimento do autor como proprietário: a situação (propriedade do autor) não existia antes do caso julgado e continua a não existir depois do caso julgado.

Esta colocação do problema é muito relevante, porque, desde logo, permite concluir que a aplicação da lei nova à situação que já existia antes do caso julgado absolutório e que continua a persistir após esse caso julgado não pressupõe nenhuma retroactividade dessa lei. Isto é importante, porque, não havendo que operar com nenhuma retroactividade da lei nova, não se coloca o problema de salvaguardar o caso julgado absolutório dessa retroactividade. Em termos mais explícitos: do disposto no art. 282.º, n.º 3, CRP quanto à salvaguarda dos casos julgados civis perante a retroactividade da declaração de inconstitucionalidade tem-se retirado que uma lei retroactiva não pode atingir o caso julgado; mas, como o que está em causa é saber se a lei nova pode ser aplicada imediatamente a uma situação que subsiste após um caso julgado absolutório, este caso julgado não é afectado com essa aplicação e, por isso, não se coloca o problema da sua salvaguarda retroactiva. O que se discute é se a lei nova é aplicável para o futuro, não se a lei nova vai destruir o passado (incluindo neste o caso julgado absolutório). 

Na ordem jurídica portuguesa, o problema em análise tem ainda de ser visto por uma outra perspectiva. No processo civil português, não há nenhum ónus de o autor alegar todas as causas de pedir concorrentes que podem fundamentar o seu pedido; assim, se o autor não obtiver ganho de causa com fundamento numa causa de pedir, nada impede que essa mesma parte instaure uma nova acção com fundamento numa outra causa de pedir, porque, como os objectos dos dois processos são distintos, não opera a excepção de caso julgado (cf. art. 580.º, n.º 1, e 581.º, n.º 1, CPC). Por exemplo: o autor instaurou uma acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge com fundamento no facto x; nada impede que, se não obtiver ganho de causa, proponha uma outra acção com o fundamento y. Assim, supondo que uma lei nova vem acrescentar o fundamento z às causas do divórcio, nada pode impedir que o cônjuge instaure uma nova acção de divórcio, invocando agora como causa de pedir o facto z.

Do exposto resulta que o que se pode discutir é se a lei nova é imediatamente aplicável à situação que o caso julgado absolutório não alterou e que, por isso, persiste no momento da entrada em vigor dessa lei. Por exemplo: A não obteve o reconhecimento da sua paternidade; B não conseguiu o decretamento do divórcio; o que, em ambos os casos, importa averiguar é se uma alteração legislativa posterior é imediatamente aplicável ao não estabelecimento da paternidade de A ou ao estado de casado de B. Para a resposta a esta pergunta, a circunstância de ter havido um caso julgado absolutório (que não reconheceu a paternidade ou que não decretou o divórcio) é completamente irrelevante. O que é relevante é que a situação que já existia antes do caso julgado -- e que este não alterou -- se mantém no momento da entrada em vigor da lei nova.

A resposta já está implícita no que antes se referiu. Há que concluir, na verdade, que um caso julgado absolutório não obsta à aplicação imediata de uma lei nova à situação jurídica que o mesmo não alterou e que, por isso, persiste depois dele. Aquele caso julgado não impede a aplicação imediata de uma lei nova à situação jurídica que ele não alterou e que subiste no momento da entrada em vigor daquela lei. Em suma: o caso julgado absolutório só vale legibus sic stantibus.

Visualizando, num esquema, a solução proposta:

                                  CJA                 LN         NA
                                      ↓
                     ↓          
    
│––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-------------–––-→
NEP→                         NEP→


(LN = Lei nova; NA = Nova acção)

4. Importa precisar o sentido da solução proposta. Esta solução significa que o caso julgado absolutório não obsta a que possa ser instaurada uma nova acção com fundamento na lei nova, ou seja, ela implica que esse caso julgado não produz uma excepção de caso julgado na segunda acção. Neste momento, não se discute se esta excepção não opera porque as causas de pedir das duas acções são distintas ou porque, apesar de isto não suceder, a lei superveniente bloqueia aquela excepção. Muito provavelmente, verificar-se-á, conforme a hipótese concreta, uma ou outra das referidas situações.

Uma das consequências da solução agora defendida pode ser a destruição retroactiva do caso julgado absolutório: isso sucede sempre que, na segunda acção, seja constituída uma situação jurídica com eficácia retroactiva. Suponha-se, por exemplo, que, depois de uma decisão de improcedência, é estabelecida a paternidade numa segunda acção com fundamento numa lei nova; este estabelecimento é retroactivo (cf. art. 1797.º, n.º 2, CC), o que destrói o anterior caso julgado absolutório. A solução impõe-se por si mesma e não pode constituir obstáculo à solução acima defendida, dado que a alternativa seria o estabelecimento da paternidade apenas a partir do caso julgado absolutório – o que é uma impossibilidade jurídica.

5. As reflexões anteriores incidem apenas sobre o caso julgado absolutório. Supõe-se que há boas razões para discutir de forma distinta a susceptibilidade de instauração de uma nova acção com fundamento numa lei nova depois de um caso julgado absolutório (que não constitui nenhuma situação jurídica) e de um caso julgado condenatório (que constitui – em sentido amplo – uma nova situação jurídica).

Porque o caso julgado condenatório constitui (lato sensu) uma nova situação jurídica, há que distinguir duas hipóteses:

– Se o caso julgado condenatório tiver constituído uma situação duradoura, é possível alterar esse caso julgado com fundamento numa lei superveniente (cf. art. 619.º, n.º 2, CPC);

– Se o caso julgado condenatório tiver constituído uma situação instantânea, só é possível afectar esse caso julgado se a lei nova tiver eficácia retroactiva; contra esta possibilidade vale, no entanto, a tutela constitucional do caso julgado e a insusceptibilidade de o afectar por uma lei retroactiva (cf. art. 282.º, n.º 3, CRP).

MTS


25/04/2015

Bibliografia (113)


-- Passo Cabral, A. do/Pedrosa Nogueira, P. H. (Eds.), Negócios Processuais (Editora JusPodivm: Salvador 2015)


Bibliografia (112)



-- Castanheira, S./Amaral, R., Procedimento Extrajudicial Pré-Executivo - Anotado (Almedina: Coimbra 2015)

Bibliografia (111)


-- Cassese, S., Dentro la Corte / Diario di un giudice costituzionale (Il Mulino: Bologna 2015)


24/04/2015

Bibliografia (110)


-- Münch, J. (Ed.), Prozessrecht und materielles Recht / Liber Amicorum für Wolfram Henckel aus Anlass seines 90. Geburtstages (Mohr: Tübingen 2015)
 
 

Informação (53)


Disponibilização de obras digitalizadas
em bibliotecas públicas


O BGH decidiu, por acórdão de 16/4/2015 (I ZR 69/11), que, segundo o UrhG (Lei sobre o Direito de Autor), uma biblioteca pública pode digitalizar as obras que pertencem às suas colecções e colocar a versão digitalizada à disposição dos seus utentes, incluindo a possibilidade de download para uma Pen Drive USB. 

Antes de decidir o caso, o BGH procedeu a um reenvio prejudicial para o TJ, que estabeleceu o seguinte (TJ 11/9/2014, C-173/13, Technische Universität Darmstadt/Eugen Ulmer): 

1) O conceito de «condições de compra ou licenciamento», que figura no artigo 5.°, n.° 3, alínea n), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser entendido no sentido de que implica que o titular do direito e um estabelecimento, como uma biblioteca acessível ao público, previsto nesta disposição, devem ter celebrado um contrato de licença ou de utilização da obra em causa que especifique em que condições pode o estabelecimento utilizá‑la.

2) O artigo 5.°, n.° 3, alínea n), da Diretiva 2001/29, lido em conjugação com o seu artigo 5.°, n.° 2, alínea c), deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro conceda às bibliotecas acessíveis ao público, previstas nestas disposições, o direito de digitalizarem as obras que fazem parte das suas coleções, se esse ato de reprodução for necessário para efeitos da colocação à disposição dos utilizadores dessas obras, através de terminais destinados a esse efeito, nas instalações desses estabelecimentos.

3) O artigo 5.°, n.° 3, alínea n), da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que não abrange atos como a impressão das obras em papel ou a sua gravação num dispositivo de memória USB praticados por utilizadores a partir de terminais destinados a esse efeito instalados em bibliotecas acessíveis ao público, previstas nessa disposição. Em contrapartida, tais atos podem, consoante o caso, ser autorizados a título da legislação nacional que transpõe as exceções ou as limitações previstas no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) ou b), desta diretiva, desde que se verifiquem, em cada caso concreto, as condições exigidas por essas disposições.


Legislação (19)


-- L 32/2015, de 24/4: Transpõe a Diretiva n.º 2012/28/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro, relativa a determinadas utilizações permitidas de obras órfãs, e procede à décima alteração ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março.


Jurisprudência europeia (TJ) (43)


Diret. 93/13/CEE; cláusulas abusivas; contrato de seguro; avaliação do carácter abusivo das cláusulas contratuais; cláusula que visa garantir a cobertura das prestações de um contrato de empréstimo imobiliário; incapacidade total do mutuário para o trabalho; exclusão do benefício desta garantia em caso de aptidão reconhecida para exercer uma actividade remunerada ou não


TJ 23/4/2015 (C‑96/14, Van Hove/CNP Assurances) decidiu:

O artigo 4.º, n.º 2, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula estipulada num contrato de seguro e que visa garantir a cobertura das prestações devidas ao mutuante em caso de incapacidade total do mutuário só está abrangida pela exceção enunciada nessa disposição na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio constate:

– por um lado, à luz da natureza, da economia geral e das estipulações no quadro contratual em que figura, bem como do seu contexto jurídico e factual, que esta cláusula fixa um elemento essencial do referido quadro que, como tal, o caracteriza, e,

– por outro, que a referida cláusula está redigida de maneira clara e compreensível, ou seja, que não é inteligível para o consumidor apenas no plano gramatical, mas igualmente que o contrato expõe de maneira transparente o funcionamento concreto do mecanismo a que se refere a cláusula em causa bem como a relação entre esse mecanismo e o mecanismo previsto noutras cláusulas, de modo a que o consumidor possa avaliar, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas que daí decorrem para ele.



Penhora de créditos; dação em função do cumprimento (pro solvendo); inoponibilidade ao credor exequente





[Para aceder ao texto clicar em J. H. Delgado Carvalho]




23/04/2015

Bibliografia (109)


-- Aige Mut, M. B., Los documentos electrónicos en el ámbito del proceso (Civitas: Madrid 2015)

Nota: a obra corresponde, muito provavelmente, à Tesis Doctoral, disponível para consulta e download aqui.

Legislação europeia (11)


-- Regulamento de Processo do Tribunal Geral (JO L 105, de 23/4/2015)


Jurisprudência (123)


Saneador-sentença; audiência prévia

1. O sumário de TCAS 26/3/2015 (11818/15) é o seguinte: 

I - O despacho que marque a audiência prévia indica o seu objecto e finalidade, mas não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa.

II - Como o caso presente (conhecimento da totalidade do mérito da causa) não integra o previsto no artigo 592º do CPC, nem o previsto no artigo 591º/1-b) do CPC, há que ponderar da necessidade ou desnecessidade da audiência prévia para debate da questão a decidir e ainda se o nº 3 do artigo 3º do CPC é respeitado assim.

III - Ora, como no caso presente, a questão a decidir foi a única e central dos articulados, seria inútil ouvir de novo as partes sobre a mesma.
 

2. O TCAS entendeu que é admissível proferir um saneador-sentença sem convocar a audiência prévia quando o mesmo recair sobre matéria que já tenha sidodiscutida nos articulados. A solução é duvidosa, dado que a realização da audiência prévia é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa (art. 591.º, n.º 1, al. b), CPC). Nesta hipótese, a audiência prévia destina-se a facultar às partes a discussão de facto e de direito antes do proferimento do saneador-sentença, à semelhança do que acontece com as alegações orais com que termina a fase da audiência final (cf. art. 604.º, n.º 3, al. e), e 5, CPC) e que antecedem o proferimento da sentença final.

Esta conclusão é confirmada pelo disposto no art. 592.º, n.º 1, al. b), CPC: a audiência prévia não se realiza quando o processo haja de findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta já tenha sido debatida nos articulados (o que, atendendo à actual função da réplica (cf. art. 584.º CPC), raramente acontece). Assim, a contrario sensu, pode concluir-se que a audiência prévia deve realizar-se quando o juiz pretenda conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o que se justifica pela referida função da audição prévia das partes.

3. Da fundamentação do acórdão consta a seguinte passagem:

"Este tribunal tem sempre presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida socioeconómica submetida ao bem comum e à suprema dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa lei fundamental; (iii) os princípios estruturantes do Estado de Direito (ex.: a juridicidade, a segurança jurídica [...] e a igualdade [...]); (iv) as normas que exijam algo de modo definitivo e ou as normas que exijam uma otimização das possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto [...], através de uma ponderação racional e justificada [...]; e (v) a máxima da unidade e coerência do nosso sistema jurídico, bem como, sempre que possível e necessário, as máximas da igualdade e da proporcionalidade jurídica".

MTS

22/04/2015

Paper (80)



-- Bufford, S., International Insolvency Law & International Arbitration - A Preliminary Perspective (04.2015)

Conhecimento de excepções peremptórias no despacho saneador? Depende!...


I. De acordo com o seu sumário, STJ 26/3/2015 (1847/08.5TVLSB.L1.S1) decidiu o seguinte:

1. As exceções perentórias, como fundamentos de defesa, traduzem-se em questões fundamentais, preliminares em relação ao thema decidendum, delimitando, negativa e internamente, a pretensão deduzida pelo autor.

2. A decisão que verse sobre a procedência ou improcedência de uma exceção perentória inscreve-se no domínio da relação material controvertida e pode ser proferida imediatamente no despacho saneador, se o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas, mesmo que, quando julgada improcedente a exceção, o processo deva prosseguir para conhecimento da existência do direito em causa.

3. Ainda que a eficácia do caso julgado material incida nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, alcança também os fundamentos e as questões que nela se entroncam, enquanto limites objetivos dessa decisão.

4. A decisão interlocutória que julgue improcedente uma exceção perentória vale, desde o respetivo trânsito em julgado, com o alcance de limite objetivo, negativo, do caso julgado material que vier a recair, a final, sobre a pretensão deduzida.

5. No caso vertente, tendo sido julgada, em sede de saneador, improcedente a exceção de caducidade do direito de a A. investigar a paternidade do R., tal decisão impede que essa questão seja novamente apreciada no processo, valendo como limite objetivo da decisão final. 


II. Na sua generalidade, o sumário do acórdão não levanta nenhuns problemas. É claro que é possível conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador (cf. art. 595.º, n.º 1, al. b), CPC) e é também claro que o decidido neste despacho é vinculativo na posterior sentença final. A linearidade do sumário esconde, no entanto, uma questão muito importante, de certo modo aflorada no item n.º 1 do sumário: a questão tem a ver com as condições nas quais o tribunal pode conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador.

À primeira vista, a questão parece ter uma resposta muito simples e indiscutível: o tribunal pode conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador sempre que tenha os necessários elementos de facto e de direito para tal. Esta resposta está evidentemente correcta, mas não responde a todos os problemas.

O que importa analisar é, por exemplo, se o tribunal pode conhecer da excepção de pagamento antes de ter reconhecido o crédito do autor, da excepção de nulidade antes de ter reconhecido a existência do contrato celebrado entre as partes ou da excepção de caducidade do direito à anulação do contrato antes de ter reconhecido o respectivo fundamento de anulação. Passando para um outro plano, também se pode perguntar se o tribunal pode considerar a acção improcedente com fundamento no contracrédito invocado pelo réu (em reconvenção: cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC) antes de reconhecer o crédito do autor.

No fundo, o que se questiona é se o tribunal pode conhecer de uma excepção peremptória antes de conhecer do direito do autor que essa excepção visa impedir, modificar ou extinguir. Noutros termos: é possível uma decisão de procedência de uma excepção peremptória -- e, portanto, uma decisão de absolvição do pedido (cf. art. 576.º, n.º 3, CPC) -- que deixa em aberto a existência do direito que esta excepção pretende impedir, modificar ou extinguir?

III. Por vezes, entende-se que a excepção peremptória é uma questão prejudicial em relação à apreciação do direito invocado pelo autor (ou em relação à apreciação do mérito da causa (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado III (1950), 189; a posição tem defensores na moderna doutrina processual portuguesa). A origem desta orientação não é determinável. Talvez a mesma resulte de uma leitura equivocada de Chiovenda, que realmente configurava as excepções peremptórias como uma questão prejudicial, mas para defender que às mesmas se aplicava o regime da apreciação incidental constante do art. 34 Cpc (IT), que estabelece o seguinte: "Il giudice, se per legge o per esplicita domanda di una delle parti è necessario decidere con efficacia di giudicato una questione pregiudiziale che appartiene per materia o valore alla competenza di un giudice superiore, rimette tutta la causa a quest'ultimo, assegnando alle parti un termine perentorio per la riassunzione della causa davanti a lui". (Istituzioni di diritto processuale civile I, 2.ª ed. (1935), 304 ss. e 319.). No entanto, não é este o aspecto que agora importa considerar.

A verdade é que, se a excepção peremptória constituísse uma questão prejudicial, ter-se-ia verificado, nas milenares relações entre a actio e a exceptio, uma mudança radical. No direito romano, era indiscutível que a prioridade era reconhecida à actio e que a exceptio destruía ou paralisava a actio. Mais importante até: como resulta da conhecida passagem de Ulpianus, D. 44.1.1. (Agere etiam is videtur, qui exceptione utitur: nam reus in exceptione actor est.), a actio é o contraposto da exceptio, pelo que não é possível conhecer isoladamente da exceptio

Assim, se a excepção fosse considerada uma questão prejudicial e se constituísse, portanto, um objecto autónomo, isso implicaria não só que a exceptio seria o prius e a actio o posterius, mas também que estaria desfeita a relação entre a actio e a exceptio que era característica do direito romano. Em vez do binómio inseparável actio/exceptio (e de ser a exceptio a operar em função da actio), ter-se-ia agora o binómio separável exceptio-actio (e, portanto, a  ser actio a operar em função da exceptio, sendo esta apreciada prévia e autonomamente e sendo a actio apenas apreciada se a exceptio não vier a ser considerada procedente). 

Em vez de uma análise processual, há boas razões para se preferir uma linguagem e uma análise substantivas, dado que o efeito impeditivo, modificativo ou extintivo se produz sobre uma situação substantiva, e não, como ainda entendia Chiovenda, sobre a actio (cf. Istituzioni di diritto processuale civile I, 2.ª ed., 309 s.). Assim, em vez da actio, há que falar do Anspruch (pretensão) e utilizar o binómio Anspruch/Einrede (pretensão/excepção). Deste modo, se se tivesse verificado a referida inversão, o binómio seria agora Einrede-Anspruch: o Anspruch só seria apreciado pelo tribunal em função do conhecimento realizado quanto à Einrede.

IV. A concepção da excepção peremptória como uma questão prejudicial não é aceitável. Nada certamente de inesperado, se se tiver presente que a excepção se destina a obstar à procedência da causa apesar da reconhecimento do direito do autor (ou apesar da veracidade dos factos alegados pelo autor). "A E.[xceptio] é [...] uma condição negativa da condenação (Gai. IV 119: exceptio ita formulae inseritur, ut condicionalem faciat condemnationem" (Wenger, Paulys VI-2 (1909), 1554): por isso, o tribunal só pode proferir uma decisão condenatória se a excepção não for considerada procedente (Kaser/Hackl, Das römische Zivilprozessrecht, 2.ª ed. (1996), 320). Partindo desta base clássica da exceptio, podem ser invocados alguns argumentos contra a sua concepção como uma questão prejudicial.

A concepção da excepção peremptória como uma questão prejudicial é incompatível com a sua -- alias, muito frequente -- alegação a título subsidiário perante a impugnação da acção. Se, por exemplo, o autor solicitar o cumprimento de uma prestação emergente de um contrato, o réu pode impugnar a celebração do contrato e alegar, a título subsidiário, a invalidade do contrato ou o pagamento da prestação. Como é que uma alegação subsidiária do réu se transforma numa alegação principal desta parte e como é que ela afasta a apreciação da impugnação também deduzida pelo réu, eis o que as orientações que qualificam a excepção peremptória como uma questão prejudicial terão de explicar. 

A isto acresce que, se, na sentença final, o tribunal tiver de conhecer da existência de um contrato e do pagamento da respectiva prestação, não é aceitável que o tribunal comece por apreciar este pagamento e não venha a conhecer da existência do contrato no caso de reconhecer esse pagamento com a justificação de que, se está provado o pagamento, está encontrado um fundamento de improcedência da acção. Se tal sucedesse, imediatamente se alegaria -- com total acerto -- que a sentença seria nula por não conhecer de uma matéria de que não podia deixar de conhecer -- em concreto, a existência do contrato celebrado entre as partes.

Ao contrário do que entende a concepção que configura a excepção peremptória como uma questão prejudicial, esta excepção não pode constituir um objecto autónomo na apreciação do mérito da causa. A excepção peremptória é sempre relativa (ou, talvez mesmo, relacional): só há excepção se houver uma situação jurídica a que ela se possa opor ("a uma pretensão pode contrapor-se uma excepção": Windscheid/Kipp, Lehrbuch des Pandektenrechts, 9.ª ed. (1906), 202). É aliás por isso que a não invocação de uma excepção peremptória num processo implica a sua preclusão num processo posterior (cf. art. 573.º, n.º 1, CPC): uma vez reconhecida a pretensão do autor numa causa, não é admissível invocar em nenhum processo (mesmo executivo) uma excepção que se refere a essa mesma pretensão.

As excepções peremptórias costumam ser distinguidas entre excepções em sentido próprio (restrito ou substantivo) e excepções em sentido impróprio (ou amplo): aquelas correspondem às muito antigas exceptiones iuris e consistem na invocação de um contra-direito oponível ao direito do autor; estas são reconduzíveis às exceptiones facti e consistem na invocação de um facto que demonstra que, no momento da propositura da acção, o autor já não era titular da pretensão que alega. A concepção da excepção como uma questão prejudicial não é aplicável a nenhuma destas modalidades da excepção.

Quando a excepção peremptória assenta numa contra-norma e constitui um contra-direito do réu -- o que pode ser exemplificado com a invocação da exceptio non adimpleti contractus ou do direito de retenção --, a concepção da excepção como uma questão prejudicial implica aplicar a contra-norma antes de aplicar a norma e de reconhecer o contra-direito do réu antes de verificar o direito do autor. Certo é, no entanto, que não tem sentido reconhecer a exceptio non adimpleti ou o direito de retenção antes de conhecer do dever de cumprimento ou do dever de entrega da coisa do réu. 

O mesmo há que concluir das excepções em sentido impróprio. Por exemplo: se o réu alegar o pagamento, o tribunal não pode considerar a acção improcedente com base nesta excepção antes de reconhecer que o crédito do autor se constituiu e entretanto se extinguiu por aquele pagamento. 

Impõe-se, portanto, afastar a concepção de que a excepção peremptória é uma questão prejudicial da apreciação do mérito da causa.  Isto implica que a excepção se mantêm no âmbito do art. 91.º CPC (relativo às questões incidentais), e não no âmbito do art. 92.º CPC (referido às questões prejudiciais). Sendo a opção legal no sentido de incluir as excepções peremptórias no âmbito da apreciação incidental, pode acrescentar-se que não há nenhuma razão intransponível que justifique que a decisão sobre a excepção não possa adquirir ope legis valor de caso julgado material (se a decisão sobre a pretensão do autor adquire valor de caso julgado, o que obsta a que a decisão sobre a excepção alegada pelo réu possa adquirir esse mesmo valor?). Isto é, no entanto, uma questão que agora não pode ser analisada.

Interessa analisar as consequências da conclusão de as excepções peremptórias não podem ser configuradas como uma questão prejudicial para as condições em que é possível conhecer de uma dessas excepções no despacho saneador.

V. É claro que a situação não é problemática quando, no despacho saneador, se pode conhecer em simultâneo da pretensão e da excepção. Por exemplo: o tribunal está em condições de reconhecer quer a existência e a validade do contrato, quer o cumprimento da respectiva prestação contratual; nesta hipótese, o tribunal pode absolver o réu do pedido com base nesta excepção extintiva.

A situação problemática é aquela em que, no momento da elaboração do despacho saneador, o tribunal já se pode pronunciar sobre a excepção sem ainda se poder pronunciar sobre a pretensão. Por exemplo: o tribunal já pode dar como assente que houve pagamento (ou melhor, uma entrega de dinheiro que, no caso de o contrato ter sido celebrado e ser válido, consubstancia pagamento), mas ainda não se pode pronunciar nem sobre a existência do contrato, nem sobre a sua validade; pergunta-se: o tribunal pode conhecer desse pagamento no despacho saneador? O caso torna-se até mais interessante se tiver sido o réu a suscitar, em simultâneo, a questão relativa à validade e a questão referente ao pagamento, pois que então também se pode perguntar se o tribunal pode considerar o pagamento deixando em aberto a questão da validade do contrato.

Afastada que foi a concepção de que a excepção peremptória é uma questão prejudicial da apreciação de outros aspectos atinentes ao mérito da causa, a resposta parece evidente: o tribunal não pode pronunciar-se no despacho saneador sobre a excepção antes de se pronunciar sobre a pretensão, ou seja, não pode considerar a acção improcedente com base na excepção peremptória antes de reconhecer a existência do direito alegado pelo autor. Dito de outra forma: o tribunal não pode justificar o julgamento de procedência da excepção com o argumento de que não interessa analisar a pretensão do autor, porque, ainda que esta viesse a ser reconhecida, a acção sempre haveria de improceder com fundamento na excepção.

Esta conclusão também vale para as excepções impeditivas, isto é, para as excepções que impedem o preenchimento de uma previsão legal (como, por exemplo, a invalidade). Assim, por exemplo, não é possível que o tribunal, no despacho saneador, considere que o contrato é nulo sem previamente se ter certificado de que o contrato foi realmente celebrado entre as partes.

O que, no fundo, se entende é que o tribunal não pode criar o paradoxo de considerar procedente o pedido assente no facto impeditivo, modificativo ou extintivo antes de julgar procedente o pedido baseado no facto constitutivo a que aquele facto se opõe. Não é que o direito não conviva com alguns paradoxos (cf. Fletcher, Colum. L. Rev. 85 (1985), 1263 ss. e 1268 ss.); mas não é aceitável que o tribunal crie o paradoxo de dispensar a apreciação da pretensão do autor com base na procedência da excepção invocada pelo réu para se opor a essa mesma pretensão.

Quando é invocada uma excepção peremptória, o objecto do processo passa a comportar, além do facto constitutivo invocado pelo autor, um facto impeditivo, modificativo ou extintivo alegado pelo réu. Consequentemente, o objecto da decisão passa a ser não só aquele facto alegado pelo autor, mas também este facto invocado pelo réu. Este objecto passa de uno (o tribunal só tem de se pronunciar sobre a pretensão do autor) para plúrimo (o tribunal também tem de se pronunciar sobre a excepção invocada pelo réu). Assim, resta acrescentar que é nulo por omissão de pronúncia sobre a pretensão do autor o despacho saneador que conheça da procedência de uma excepção peremptória -- e que, consequentemente, absolva o réu do pedido e extinga a instância -- com o fundamento de que é inútil a continuação desta, dado que, mesmo que a pretensão do autor viesse a ser reconhecida, a acção terminaria necessariamente com aquela decisão de improcedência (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), e 613.º, n.º 3, CPC).

Do exposto decorre que o tribunal não pode conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador e absolver o réu do pedido com base nessa excepção antes de reconhecer a pretensão que essa excepção visa impedir, modificar ou extinguir.

VI. Nada obsta, no entanto, a que, no despacho saneador, o tribunal considere uma excepção peremptória improcedente. Esta decisão de improcedência não depende do prévio reconhecimento da pretensão do autor: para declarar que a excepção não existe, basta a pressuposição da existência dessa pretensão, desde que esta pressuposição possa vir a ser confirmada ou infirmada mais tarde no processo, ou seja, desde que o conhecimento do tribunal não se limite à apreciação da excepção peremptória.

Nada impede que, no despacho saneador, seja antecipado o julgamento de improcedência sobre a excepção peremptória e que, depois, se averigúe no processo a pretensão do autor. Nesta hipótese, embora em momentos distintos, são apreciados a pretensão alegada pelo autor e a excepção invocada pelo réu. Como acima se demonstrou, o que não é admissível é julgar a excepção procedente e dispensar, com base nesta procedência, a averiguação da pretensão do autor.

VII. Também se pode configurar a hipótese contrária àquela que se tem vindo a examinar: então há que analisar se, no despacho saneador, o juiz pode considerar procedente o pedido do autor, reservando para a sentença final o conhecimento de eventuais excepções oponíveis à pretensão que, entretanto, já se encontra reconhecida. Na ordem jurídica portuguesa, a sentença com reserva (Vorbehaltsurteil; sentenza con riserva) não encontra nenhuma regulamentação legal, limitando-se a (pouca) experiência com o regime dessa sentença ao disposto no Reg. 1896/2006: primeiro é emitida a injunção de pagamento europeia (art. 12.º Reg. 1896/2006), só depois é que o requerido se pode opor (art. 16.º a 20.º Reg. 1896/2006).

Atenta a falta de regulamentação legal sobre a sentença (não definitiva) com reserva, haverá que analisar o valor do reconhecimento da pretensão do autor no despacho saneador, nomeadamente para efeitos de execução. Quanto a este aspecto, pode perguntar-se se, apesar de não ter sido interposto recurso do despacho saneador, se justifica, para protecção do réu executado que ainda não viu analisada em 1.ª instância a excepção que alegou, a aplicação analógica do regime da execução provisória (cf. art. 704.º CPC); mas também se pode perguntar se, tendo sido interposto recurso do despacho saneador, o regime da execução provisória -- que então seria aplicável -- protege suficientemente o réu executado. Como se vê, a questão merece ser estudada (incluindo nela, naturalmente, a própria admissibilidade da decisão com reserva).

VIII. Resumindo o essencial: a excepção peremptória não é uma questão prejudicial da apreciação do mérito da causa; é antes uma questão prejudicada quando não for reconhecida a pretensão do autor, pois que então não pode operar o seu efeito impeditivo, modificativo ou extintivo.

MTS