"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/07/2016

Jurisprudência europeia (TJ) (108)


Reg. 864/2007 e 593/2008 – Protecção dos consumidores – Dir. 93/13/CEE – Protecção de dados – Dir. 95/46/CE – Contratos de compra e venda em linha celebrados com consumidores residentes noutros Estados‑Membros – Cláusulas abusivas – Condições gerais que contêm uma cláusula de escolha do direito aplicável a favor do direito do Estado‑Membro em que a empresa tem a sua sede – Determinação da lei aplicável à apreciação do carácter abusivo das cláusulas dessas condições gerais no âmbito de uma acção inibitória – Determinação da lei que regula o tratamento de dados pessoais dos consumidores


TJ 28/7/20016 (C‑191/15, Verein für Konsumenteninformation/Amazon EU) decidiu o seguinte:

1) O Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) e o Regulamento (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), devem ser interpretados no sentido de que, sem prejuízo do disposto no artigo 1.°, n.° 3, de cada um destes regulamentos, a lei aplicável a uma ação inibitória, na aceção da Diretiva 2009/22 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa às ações inibitórias em matéria de proteção dos interesses dos consumidores, destinada a fazer cessar a utilização de cláusulas contratuais pretensamente ilícitas por uma empresa estabelecida num Estado‑Membro que celebra contratos, no âmbito do comércio eletrónico, com consumidores que residem noutros Estados‑Membros, nomeadamente no Estado do foro, deve ser determinada em conformidade com o disposto no artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento n.° 864/2007, ao passo que a lei aplicável à apreciação de uma dada cláusula contratual deve ser sempre determinada em aplicação do Regulamento n.° 593/2008, quer esse apreciação seja efetuada no âmbito de uma ação individual ou de uma ação coletiva.


2) O artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13/CE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula constante das condições gerais de venda de um profissional, que não foi objeto de negociação individual, nos termos da qual o contrato celebrado com um consumidor no âmbito do comércio eletrónico é regido pela lei do Estado‑Membro da sede desse profissional é abusiva na medida em que induza esse consumidor em erro, dando‑lhe a impressão de que só a lei desse Estado‑Membro é aplicável ao contrato, sem o informar de que beneficia igualmente, nos termos do artigo 6.°, n.° 2, do Regulamento n.° 593/2008, da proteção que lhe proporcionam as disposições imperativas do direito que seria aplicável na falta dessa cláusula, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar à luz de todas as circunstâncias pertinentes.

3) O artigo 4.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, deve ser interpretado no sentido de que o tratamento de dados pessoais efetuado por uma empresa de comércio eletrónico é regido pelo direito do Estado‑Membro a que se destinam as atividades dessa empresa, se se constatar que essa empresa procede ao tratamento dos dados em questão no contexto das atividades de um estabelecimento situado nesse Estado‑Membro. Cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar se é esse o caso. 




Jurisprudência europeia (TJ) (107)

 
Reg. 44/2001 – Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial – Âmbito de aplicação ratione materiae – Acção de repetição do indevido – Enriquecimento sem causa – Crédito que tem a sua origem no reembolso injustificado de uma coima por infração do direito da concorrência
 
 
TJ 28/7/2016 (C‑102/15, Gazdasági Versenyhivatal/Siemens Aktiengesellschaft Österreich) decidiu o seguinte: 

Uma ação de repetição do indevido fundada no enriquecimento sem causa, como a que está em causa no processo principal, que tem origem no reembolso de uma coima imposta no âmbito de um procedimento de direito da concorrência, não está abrangida pela «matéria civil e comercial» na aceção do artigo 1.° do Regulamento n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.



Legislação europeia (23)


-- Regulamento (UE) 2016/1191 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de julho de 2016, relativo à promoção da livre circulação dos cidadãos através da simplificação dos requisitos para a apresentação de certos documentos públicos na União Europeia e que altera o Regulamento (UE) n.° 1024/2012 (JO L 200 de 26.7.2016)




Jurisprudência (414)



Competência internacional;
direito interno; Reg. 1215/2012


1. O sumário de RL 21/4/2016 (13/15.8YHLSB-A.L1-8) é o seguinte:

- Tendo sido alegado na petição inicial que a Autora produz e exporta produtos para o mercado moçambicano, tendo a sua marca protegida pelo registo em Portugal e em Moçambique, e sendo igualmente alegado que a Ré, aproveitando-se do prestígio da marca da Autora está a vender no mercado moçambicano, a mais baixo preço, produtos com a mesma designação dos da Autora, do que tem resultado diminuição das encomendas recebidas pela Autora com vista à exportação para aquele País, verifica-se estar preenchido um dos requisitos para atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses.

- Com efeito, nos termos do art. 62º b) do CPC, basta que um dos elementos constitutivos da causa de pedir se localize em Portugal, para que a aludida competência esteja assegurada.


- Uma acção de condenação baseada em responsabilidade civil, apresenta uma causa de pedir complexa, integrada pela conduta ilícita e culposa da Ré, a qual é causa de prejuízo para a Autora.

- Ocorrendo o prejuízo em Portugal (no caso dos autos diminuição das encomendas e das vendas por exportação, em Portugal, onde está sediada a Autora) verifica-se uma conexão objectiva que confere ao tribunal português competência internacional. 

2. O acórdão padece de um equívoco na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses. O acórdão (tal como, aliás, a 1.ª instância) aplica o regime interno português, mas, atendendo a que a ré tem sede em Portugal, deveria ter aplicado o Reg, 1215/2012, dado que, como decorre do disposto no art. 6.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, este acto europeu é aplicável sempre que o requerido tenha domicílio ou sede num Estado-Membro.

O que se pode discutir é se, referindo-se o elemento de estraneidade da acção a um Estado terceiro (no caso, Moçambique), isso afasta a aplicação do Reg. 1215/2012. Sobre o âmbito de aplicação da CBrux, o TJ fixou a seguinte jurisprudência: 

-- "[...] para efeitos da aplicação do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, o caracter internacional da relação jurídica em causa não tem de necessariamente decorrer da implicação de diversos Estados contratantes, devido ao mérito da questão ou ao domicílio respectivo das partes no litígio. A implicação de um Estado contratante e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado e da localização dos factos controvertidos no segundo, também é susceptível de conferir natureza internacional à relação jurídica em causa. Com efeito, esta situação é susceptível de suscitar no Estado contratante, como acontece no processo principal, questões relativas à determinação da competência dos órgãos jurisdicionais na ordem jurídica internacional, que constitui precisamente uma das finalidades da Convenção de Bruxelas, como resulta do terceiro considerando do seu preâmbulo" (TJ 1/3/2005 (C-281/02, Owusu/Jackson), n.º 26);

-- "Do que precede decorre que o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas se aplica a uma situação [...] que abrange as relações entre os órgãos jurisdicionais de um único Estado contratante e as de um Estado não contratante e não as relações entre os órgãos jurisdicionais de diversos Estados contratantes" (TJ 1/3/2005 (C-281/02, Owusu/Jackson), n.º 35).

Compreende-se esta jurisprudência. Dado que as decisões proferidas pelos tribunais dos Estados-Membros circulam livremente no espaço europeu, é desejável que a competência internacional dos tribunais de origem seja determinada pelas mesmas regras em todo esse espaço. Particularmente indesejável seria que a competência internacional desse tribunal se baseasse numa competência exorbitante decorrente do direito interno de um Estado-Membro.

O que é referido quanto ao art. 2.º CBrux deve ser dito quanto ao correspondente art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, pelo que a circunstância de a acção ter conexão com um Estado terceiro (Moçambique) não é suficiente nem para afastar a aplicação do Reg. 1215/2012, nem para excluir a competência internacional dos tribunais do Estado do domicílio do demandado que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, Reg. 121572012 (na doutrina, cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht. 9.º ed. (2011), vor Art. 2 EuGVO 8; Schlosser/Hess, EuZPR, 4.ª ed. (2015), Vor Art. 4-35 EuGVVO 5). Noutros termos: a circunstância de a opção ser entre a competência internacional dos tribunais portugueses ou a competência internacional dos tribunais moçambicanos não é suficiente para excluir a aplicação do Reg. 1215/2012, pelo que teria bastado a aplicação do disposto no art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 para justificar a competência internacional dos tribunais portugueses.

Dado o primado do direito europeu sobre o direito nacional, a aplicabilidade do Reg. 1215/2012 à determinação da competência internacional dos tribunais portugueses afasta a aplicação de qualquer regime interno.

MTS


 

Jurisprudência (413)


PER; âmbito de aplicação pessoal


1. O sumário de RP 21/4/2016 (356/16.3T8STS.P1) é o seguinte:

I - O prazo referido no art.º 27º, nº 1, do CIRE para apreciação liminar do pedido de declaração de insolvência, para além de ser um prazo disciplinador, de ordenação, não perentório, não é aplicável no âmbito de funcionamento do art.º 17º, nº 3, al. a), do CIRE, relativo ao PER.

II - As normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma atividade económica por conta própria.

III - Assim, não podem recorrer ao PER os devedores (casal) que, sendo reformados, vivem exclusivamente das suas pensões, sem atividade económica por conta própria.
 
2. Sobre a matéria, cf. Jurisprudência (398)

[MTS]
 
 

Jurisprudência (412)


Prova; livre apreciação


O sumário de RL 28/4/2016 (11197/13.0T2SNT.L1-2) é o seguinte:
 
1. No nosso ordenamento jurídico predomina o princípio da livre apreciação das provas, consagrado no artigo 607º, nº 5, 1ª parte, do Código de Processo Civil: o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
 
2. Cientes de que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
 
3. A convicção probatória é um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, o que implica a valoração por este tribunal de recurso de todo o acervo probatório a que tribunal recorrido teve acesso, resultando, de acordo com a sua convicção, a confirmação, ou não, da proferida decisão de facto.
 
4. O contrato de prestação de serviços é livremente revogável por qualquer das partes, independentemente da existência de justa causa.
 
5. Estando em causa um contrato oneroso que tem como objecto a prestação de determinados serviços, a sua revogação unilateral por parte do contraente a quem se destinam os serviços implica, em princípio, a obrigação de indemnizar a outra parte pelos prejuízos decorrentes da cessação antecipada do contrato. 
 
6. Não haverá, porém, lugar a qualquer indemnização quando exista justa causa para a revogação do contrato e desde que essa justa causa se reconduza a circunstâncias imputáveis à contraparte.
 
 

Jurisprudência (411)


Factos supervenientes;
alteração da causa de pedir


1. O sumário de RC 26/04/2016 (2933/12.2TBCLD.C1) é o seguinte:

I - Pela via do articulado superveniente é permitido ao autor proceder à alteração ou ampliação da causa de pedir fora do condicionalismo dos artigos 264.º e 265.º CPC;

II - Um aumento do capital social que, por si só, determine a alteração da titularidade das posições sociais em mais de 50% integra a previsão da alínea b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU (actual al. b) do n.º 3 do art.º 28 do mesmo diploma, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto), por interpretação extensiva da norma, podendo o senhorio denunciar o contrato mediante o cumprimento do pré-aviso ali previsto;

III - No caso de ocorrer transmissão inter vivos de posição ou posições sociais após aumento de capital, este não deverá ser considerado no apuramento da percentagem que as posições transmitidas representavam no capital social.

2. Importa conhecer esta parte da fundamentação do acórdão: 

"[...] resultou apurado que os AA senhorios denunciaram o contrato mediante comunicação efectuada à Ré em Outubro de 2007, invocando a alteração da titularidade do capital social em mais de 50%, previsão normativa da citada al. b) do n.º 6 do art.º 26.º.

Todavia, o fundamento de facto da alegada alteração, conforme resulta claramente dos termos da petição inicial, foi o aumento de capital que, tendo sido inteiramente subscrito por um novo sócio, determinou que este passasse a ter o domínio da sociedade, com uma participação superior a 66%.

Nada foi dito, até porque o facto era então desconhecido, quanto a eventuais cedências das quotas dos primitivos sócios em favor de um terceiro (cfr. artigos 7.º a 14.º da petição inicial).

Por outras palavras, a causa de pedir invocada na presente acção como fundamento do direito de denúncia previsto na al. b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU foi o referido aumento do capital e sua subscrição por terceiro nas apontadas circunstâncias.

Posteriormente, e por via da legítima apresentação do articulado superveniente, foram pelos AA. trazidos aos autos novos factos, traduzindo a cessão da totalidade das participações da sociedade ré a um terceiro - na circunstância, o seu sócio-gerente -, os quais, tendo ficado documentalmente demonstrados, ingressaram na sentença, correspondendo aos pontos 15. a 18. da matéria de facto assente. E foi precisamente com fundamento nesta nova factualidade, que integrou na previsão da disposição legal em referência, que a Mm.ª juíza julgou validamente cessado por denúncia o contrato de arrendamento aqui ajuizado.

Parece oportuno referir, a propósito, que a causa de pedir, tal como resulta do preceituado no n.º 4 do art.º 581º do CPC, é o facto jurídico concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido. Assim, quando a lei faz recair sobre o autor o ónus da alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.ºs 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, al. d), este desincumbe-se de tal ónus fazendo a indicação do facto jurídico concreto em que baseia o seu direito, ou seja, por referência ainda à teoria da substanciação, e isto porque “o tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos, quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir. (…) a causa petendi não é norma de lei que a parte invoca em juízo; é o facto que se alega como capaz de converter em concreto a vontade abstracta da lei" [...][...].

Ora, in casu, ao alegar em sede de articulado superveniente que a Ré viu o pacto social alterado por força da transmissão das quotas por negócio “inter vivos” que representavam a totalidade do capital social, procederam os AA a relevante alteração da causa de pedir, a qual veio a ser fundante da decisão [...].

Cremos, porém, que sem infracção das regras processuais atinentes. Vejamos:

O art.º 588.º permite a alegação posterior “de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito”. Trata-se de factos essenciais que a lei permite sejam tardiamente introduzidos em juízo, uma vez que ocorreram depois de terminados os prazos para apresentação dos articulados - superveniência objectiva - ou porque, tendo embora ocorrido em data anterior, só posteriormente foram conhecidos pela parte a quem aproveitam -superveniência subjectiva.

Parece não suscitar dúvida, à luz do que dispõe o n.º 2 do art.º 573.º, que factos supervenientes que integrem novas excepções peremptórias são, ainda aqui, admitidos, sem que tal colida com o princípio da concentração da defesa na contestação, uma vez que à data da apresentação deste articulado não era possível à parte deles fazer-se valer (ou porque não tinham ainda ocorrido, ou porque deles não tinha conhecimento).

Maiores dúvidas tem suscitado a questão de saber se ao autor é lícito, por esta via, proceder à alteração da causa de pedir, designadamente substituindo os factos inicialmente alegados por outros que formam outra causa de pedir, ou proceder à sua ampliação, acrescentando àqueles factos outros que, por si, são capazes de desencadear o efeito jurídico pretendido, hipótese em que se insere a situação dos autos.

Suscitada nestes termos, a questão não tem merecido resposta uniforme, afigurando-se todavia que será de reconhecer também ao autor tal possibilidade. Com efeito, e tal como conclui Nuno Pissarra [Nuno Andrade Pissarra, “O conhecimento de factos supervenientes relativos ao mérito da causa pelo Tribunal de Recurso em Processo Civil”, acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B351b450a-50b9-4b7d-9f5e-94e815424f9f%7D.pdf, págs. 11-12 [...]], “Os termos do art. 506.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não são incompatíveis com tal possibilidade e a ressalva do art. 663.º, n.º 1, do mesmo Código, reportada às normas que determinam as condições em que pode ser alterada a causa de pedir, tanto abrange o art. 273.º como o art. 506.º. Reduzir a função dos factos constitutivos invocáveis em articulado superveniente ao preenchimento de causas de pedir incompletas, como fazia o Prof. Castro Mendes, parece ser excessivamente redutor. A razão do articulado superveniente reside na superveniência e não pode ser equiparada à do articulado para correcção de deficiências previsto no art. 508.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código de Processo Civil. Acresce que, sendo a alternativa da modificação da causa de pedir o início de uma nova instância, a economia processual aconselha à solução ora propugnada, sem que o dever de respeito por uma disciplina processual seja prejudicado, porque se está perante um facto sobre o qual, por virtude da superveniência, a disciplina não pode actuar. Enfim, dificilmente se compreenderia que a lei processual civil admitisse, como admite (no referido art. 489.º, n.º 2), a alegação, por articulado superveniente, de factos supervenientes integrantes de novas excepções e não fizesse o mesmo quanto aos factos constitutivos que alterassem ou ampliassem a causa de pedir. Em suma, fora dos casos do art. 273.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a causa de pedir pode ainda ser unilateralmente alterada ou ampliada mediante a articulação de factos supervenientes. [No mesmo sentido, Prof. Lebre de Freitas, “A acção declarativa comum à luz do Código revisto”, 2.ª edição, págs. 138-139, para quem “O princípio da economia processual e a consideração de que o alcance do preceito (…) seria quase nulo se a sua previsão fosse reduzida, quanto ao autor, aos factos que complementem a causa de pedir já invocada, atendendo a que a alegabilidade desses factos já está prevista em outras disposições, leva a perfilhar a solução de não o limitar pelo disposto nos art.ºs 272.º e 273.º”].
 
A situação em causa nestes autos evidencia, parece-nos, o acerto da posição vinda de expor, pois a desconsideração da nova causa de pedir emergente dos factos supervenientes, para mais reconduzível à mesma fattispecie normativa, obrigando à propositura de uma nova acção no caso de improcedência da causa de pedir inicialmente invocada, resultaria num injustificado desperdício de tempo e de meios."
 
3. Sobre a admissibilidade da alteração da causa de pedir com base em factos supervenientes, sem a sujeição aos pressupostos dos (actuais) art. 264.º e 265.º CPC, cf. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa (1995), 189 s.
 
MTS
 

28/07/2016

Bibliografia (387)


-- Ebneter, S., Der Prozessbetrug im Zivilprozess (Schulthess Verlag: Zürich 2016)

Apresentação da obra: "Die vorliegende Arbeit setzt sich mit dem Phänomen des Prozessbetrugs auseinander. Bei der Analyse der Rechtslage de lege lata steht der allgemeine Betrugstatbestand im Vordergrund, in die Betrachtung werden aber auch andere Straftatbestände sowie die sich aus dem Zivilprozessrecht und dem Aufsichtsrecht ergebenden Instrumente einbezogen. Der Verfasser zeigt auf, dass zwar - entgegen einer weitverbreiteten Meinung - der allgemeine Betrugstatbestand Fälle des Prozessbetrugs nicht zu erfassen vermag, dass aber durchaus andere strafrechtliche und nicht strafrechtliche Sanktionsinstrumente zur Verfügung stehen. Aufbauend auf dieser Erkenntnis spricht sich der Verfasser gegen die Einführung eines speziellen Straftatbestands zur Erfassung des Prozessbetrugs aus".


-- Huber, M. J., Die Anfechtung vertraglich vereinbarter Aufrechnungen innerhalb und außerhalb der Insolvenz (Peter Lang: 2016)

Apresentação da obra: "Vertraglich vereinbarte Aufrechnungen gehören zu den wichtigsten zivilrechtlichen Erfüllungssurrogaten. Zugleich stellen sie bei drohender Insolvenz oder Zwangsvollstreckung relativ einfache Gestaltungsoptionen zur Verkürzung des schuldnerischen Vermögens dar, da sie es einem Gläubiger ermöglichen, eine Forderung des Schuldners ohne reale Leistungserbringung zum ErlErlöschen zu bringen. Diese Arbeit untersucht für die verschiedenen Varianten vertraglich vereinbarter Aufrechnungen, unter welchen Voraussetzungen diese zugunsten der Insolvenz- bzw. Zwangsvollstreckungsgläubiger im Wege der Anfechtung rückgängig gemacht werden können. Insbesondere wird der Frage nachgegangen, ob und inwieweit dabei Differenzierungen zwischen der Insolvenzanfechtung und der Gläubigeranfechtung geboten sind."

Jurisprudência constitucional (87)



Processo de inventário; apoio judiciário; honorários notariais

 
Não julga inconstitucional a norma extraída do artigo 26.º, n.º 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, interpretada no sentido de que, até à constituição do Fundo nela previsto, o processo de inventário deve prosseguir sem o pagamento, pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP, dos honorários notariais e despesas previstos nos seus artigos 15.º, 18.º e 21.º, nos casos em que o requerente é beneficiário de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo.

Nota: o Acórdão já tinha sido publicitado em Jurisprudência constitucional (63).




Revista excepcional; recurso para uniformização de jurisprudência

-- TC 22/6/2016 (414/2016), DR 144/2016, II, de 2016-07-28, decidiu o seguinte:  

Não julga inconstitucional a interpretação normativa retirada do n.º 4 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, com o sentido "de que está vedado ao cidadão interpor Recurso de uniformização de Jurisprudência da decisão proferida em Recurso de Revista Excecional"




Legislação (53)


-- Res. AR 48/2016, de 28/7: Avaliação do Processo Especial de Revitalização (PER) das empresas e dos particulares



Bibliografia (Índices de revistas) (4)


AcP

-- AcP 216 (2016 1-2)



Papers (220)


-- Kaye, D. H., The Interpretation of DNA Evidence: A Case Study in Probabilities (06.2016)

-- Ng, J., When the Arbitrator Creates the Conflict: Understanding Arbitrator Ethics through the IBA Guidelines on Conflict of Interest and Published Challenges (07.2016)



Jurisprudência (410)


Competência material; divórcio;
prestação de contas


1. O sumário de RL 14/4/2016 (522-14.6T8CSC.L1-8) é o seguinte:

Os tribunais judiciais são materialmente competentes para a acção de prestação de contas, subsequente ao divórcio, fundada na detenção por um dos ex-cônjuges de bens comuns do casal.


2. Para se compreender o que foi decidido pela RL é indispensável conhecer esta parte da fundamentação do acórdão: 

"A definição abstrata da competência material encontra-se plasmada na Lei, designadamente na que procede ao enquadramento e organização do sistema judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ). 

[...] a decisão recorrida fundamentou-se, essencialmente, na consideração de que, pretendendo-se com a ação a partilha de bens comuns do dissolvido casal, a competência material caberia ao Cartório Notarial, face ao disposto na Lei n.º 23/2013, de 5 de Março.

A determinação da competência material do Tribunal é feita, desde logo, em função do efeito jurídico pretendido com a ação, nomeadamente o pedido formulado. Em certas situações, porém, pode ser necessário atender ainda ao facto jurídico que fundamenta a pretensão jurídica, isto é, à causa de pedir, para se apurar o âmbito material da ação. Por isso, interessa considerar o pedido e, em caso de insuficiência, também a causa de pedir da ação, para se averiguar a quem, em função da matéria, compete o julgamento da ação.

Na situação sub iudicio, a Apelante pretende, com a ação instaurada, ao pedido de partilha de bens comuns do ex-casal, nomeadamente contas bancárias e produtos financeiros, de que F... ficou em seu poder. Ora: - desde logo, o pedido especificamente formulado não se identifica com sendo de partilha de bens comuns, nomeadamente do dissolvido casal, sendo certo que começa pelo pedido a aferição da competência material do Tribunal.

Dito isto.

O fim da ação de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas de modo a obter-se a definição de um saldo e de determinar a situação do Réu -- de devedor, ou de credor -- perante o titular dos interesses geridos. Com o julgamento das contas apresentadas por uma ou por outra parte, visa-se apurar o montante em dívida e quem é o devedor (Alberto dos Reis, RLJ 74º/pp. 46).

Como refere Alberto dos Reis (“Processos Especiais”, II, pp.303) a obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a Lei faz corresponder a fonte dessa obrigação.

A obrigação de prestação de contas só pode ser assumida por quem administre bens ou interesses alheios, e a referida prestação pode ser espontânea ou provocada. Trata-se de uma obrigação de natureza material ou substantiva, pelo que o artigo 1014º do C. P. Civil pressupõe a existência de norma legal ou de contrato que imponha a prestação de contas.

De acordo com o nº 1 do art. 1681º do C. Civil, o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge não é obrigado a prestar contas, respondendo, contudo, pelos factos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. Se a administração por um dos cônjuges dos bens comuns ou próprios do outro se fundar em mandato, são aplicáveis as regras deste contrato. Contudo, salvo acordo em contrário, o cônjuge administrador apenas tem de prestar contas e entregar o respetivo saldo, se o houver, relativamente a atos praticados durante os últimos cinco anos.
Assim, diferentemente do que ocorre com a generalidade dos administradores de bens alheios, o cônjuge não está obrigado a prestar contas.

A situação é diferente após a dissolução do casamento:

Tendo as partes se divorciado, como é o caso, e ficado um dos ex-cônjuges a deter a posse de bens comuns deles retirando os frutos e utilidades, deve prestar ao outro contas desde a data da propositura da ação de divórcio (nº 1 do art. 1789º do C. Civil), ou da data em que foi declarada cessada a coabitação, no caso previsto no nº 2 do art. 1789º do C. Civil (Cf. neste sentido: - Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 29.10.92, proferido no Processo 9130093, e de 29 de Outubro de1992, proferido no Processo 9130093, disponíveis em www.dgsi.pt.)."

[MTS]

 

27/07/2016

Informações (142)


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MTS


Jurisprudência (409)


Causa de pedir; poderes do tribunal
 convolação

I. O sumário de STJ 7/4/2016 (842/10.9TBPNF.P2.S1) é o seguinte: 


1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídicoque ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica,convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.

2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.

3. Tendo o A. optado por formular um pedido de reconhecimento de um direito relativamente à contitularidade em determinado património imobiliário, na óptica fundamental de um contrato de associação em participação, decorrente de actividade exercida conjuntamente com o R., não é possível, como decorrência da subsunção da relação material controvertida no âmbito da figura normativa das sociedades irregulares, atribuir-lhe antes o direito a uma determinada participação ou quota na dita sociedade, tendo como fim e objecto a actividade de rentabilização do património imobiliário entretanto adquirido pelos interessados.

4. Na verdade, neste caso verifica-se uma perfeita heterogeneidade – quer jurídica, quer pático-económica – entre o pedido efectivamente formulado pelo A., situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa.

5. Perante a especialidade do procedimento de liquidação das sociedades, regulado no CSC, não é admissível que se proceda incidentalmente, no âmbito de uma qualquer acção, processada na forma comum e que corra termos entre os sócios, culminando no decretamento oficioso de nulidade do contrato de sociedade, às operações de liquidação do ente social extinto, definindo logo qual era a parcela dos bens sociais que caberia a cada um deles.
 


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. O objecto da presente revista mostra-se [...] circunscrito à questão da admissibilidade processual da convolação que, em sede do pedido formulado, a sentença realizou – entendendo a Relação que não era, no caso, admissível convolar ou converter um pedido deduzido em sede de contitularidade de direitos reais sobre determinados imóveis para a titularidade de uma determinada participação na sociedade irregular que – conforme qualificação da relação contratual existente entre as partes – considerou existir.

Invoca, em primeiro lugar, o recorrente a violação de caso julgado, que considera resultante de o primeiro acórdão proferido pela Relação – que determinou a audição das partes acerca da admissibilidade da convolação operada na sentença inicialmente proferida, reconhecendo a nulidade processual decorrente da violação da regra do contraditório – já ter considerado admissível tal reconfiguração normativa do pedido formulado.

Tal argumento é, porém, manifestamente improcedente, já que, como é óbvio, o acórdão proferido primeiramente pela Relação, reconhecendo apenas o cometimento da dita nulidade processual e mandando dar às partes oportunidade para se pronunciarem sobre a possibilidade de tal convolação ser feita, não se pronunciou, nem tinha que se pronunciar, sobre a regularidade procedimental da convolação a que o juiz a quo havia procedido na sentença primeiramente emitida: como é evidente, esta matéria dependia naturalmente do prévio cumprimento da regra do contraditório, permitindo-se às partes a pronúncia sobre a – surpreendente – convolação do objecto do pedido, alegadamente realizada naquela sentença, só podendo e devendo o Tribunal pronunciar-se sobre tal questão depois de as partes terem tido plena oportunidade para exporem as suas razões, sustentando a admissibilidade ou inadmissibilidade da dita convolação – só nesse momento cumprindo naturalmente ao Tribunal emitir pronúncia sobre tal tema, depois de ponderadas as razões apresentadas pelas partes.

Em suma: não pode considerar-se ínsito na decisão que – reconhecendo a existência de determinada nulidade processual, por violação do princípio de proibição de decisões surpresa, manda ouvir as partes sobre a matéria em questão – qualquer juízo antecipatório ou pré juízo acerca da matéria ou questão essencialmente controvertida – a possibilidade de convolação do pedido formulado na petição inicial - a qual só pode e deve ser solucionada pelo tribunal após se haver facultado adequadamente o contraditório aos litigantes.

Sustenta, em segundo lugar, o recorrente que a dita convolação do objecto do pedido, operada em 1ª instância, se deveria ter por suportada na matéria de facto alegada na petição inicial, já que da mesma emergiria em termos suficientes que teria sido vontade das partes constituir uma sociedade comercial, financiá-la e através dela prosseguir uma finalidade económica comum: ou seja, tendo o A. configurado, em termos minimamente consistentes, matéria de facto que poderia efectivamente integrar a existência de um contrato de sociedade, não extravasaria da matéria litigiosa a sentença que lhe atribuísse uma determinada participação nessa sociedade.

Note-se que, na situação dos autos, ninguém questiona a possibilidade de o tribunal qualificar livremente a matéria de facto apurada, em termos de ter por preenchida determinada realidade contratual : na verdade, o que, para tal, releva é naturalmente a factualidade alegada e provada, considerada em si mesma, independentemente da qualificação jurídica que os litigantes lhe deram, a qual não vincula o juiz, que não está sujeito à qualificação jurídica que as partes realizaram da realidade factual em litígio.

Daqui decorre naturalmente que a qualificação jurídica, operada quanto à causa petendi invocada, configurando normativamente a respectiva factualidade complexa como integrando uma sociedade irregular, pressuponha obviamente que tinham sido invocados, efectiva e oportunamente, pelas partes factos essenciais configuradores da existência de um contrato de sociedade…

Ora, como é evidente, perante tal possível qualificação jurídica dos factos essenciais que integravam a causa de pedir – que o A. vem agora dizer que ele próprio admitia – cabia-lhe ter tomado as devidas cautelas no momento da formulação do – ou dos – pedidos,adequando-os minimamente à eventual prevalência da tese que considerasse existir uma sociedade irregular: ou seja, numa estratégia processual adequada cabia ao A. ter formulado pretensão – pelo menos, a título subsidiário - cujo conteúdo e natureza se adequasse minimamente à possível prevalência do entendimento que visse nos factos alegados o preenchimento da figura da sociedade irregular. Ora, tal não ocorreu manifestamente no caso dos autos, já que a pretensão formulada, assente num direito à contitularidade de determinado património imobiliário, se não coaduna minimamente com a configuração da relação material controvertida como implicando a existência de uma sociedade entre os litigantes…

7. Resta, assim, determinar se era ou não processualmente admissível a convolação operada na sentença apelada, em termos de – tendo o A. optado por formular um pedido de reconhecimento de um direito relativamente à contitularidade em determinado património imobiliário, decorrente de actividade exercida conjuntamente com o R. – será possível, como decorrência da subsunção da relação material controvertida no âmbito da figura normativa das sociedades irregulares, atribuir-lhe antes o direito a uma determinada participação ou quota na dita sociedade, tendo como fim e objecto a actividade de rentabilização do património imobiliário entretanto adquirido pelos interessados.

Como é sabido, o processo civil é há muito regido pelo princípio dispositivo (sendo manifesto e incontroverso que, apesar de o novo CPC o não enunciar explicitamente nas disposições introdutórias, ele continua a estar subjacente aos regimes estabelecidos em sede de iniciativa e de delimitação do objecto do processo pelas partes, não sendo postergado pelos regimes de maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes): é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem – e continuam inquestionavelmente a incumbir - às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido , ou seja , indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida .

Daqui decorre naturalmente um princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte, devendo o decidido pelo juiz adequar-se às pretensões formuladas, ser com elas harmónico ou congruente, sob pena de se verificar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

Não estando obviamente em causa que o pedido formulado constituirá normalmente o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir, importa, porém, aprofundar esta matéria, de modo a verificar quais as exactas balizas à actuação nesta sede do juiz

Deverá, nomeadamente, valer em sede de pedido um regime paralelo ao que sempre vigorou pacificamente quanto à causa de pedir, distinguindo-se a materialidade desta - expressa no conjunto de factos que a integram – da respectiva qualificação jurídica – para se concluir que tal qualificação jurídica, sem alteração da realidade ou materialidade dos factos, é – como sempre foi - facultada ao juiz ? Ou seja: poderá também em sede de pedido – pretensão material ou processual – operar-se uma cisão entre a materialidade da pretensão formulada e a coloração ou qualificação jurídica desta?

Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respectivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correcção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efectivamente adequado à situação litigiosa ( vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3/2001).

Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, pags. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da acção inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a acção correcta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal acção sero bjectivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspectivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora, sendo actualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efectiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma acção reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exactamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…

Como exemplos paradigmáticos da prevalência na jurisprudência desta visão substancialista e mais flexível das coisas, podem referir-se, desde logo, o Assento do STJ de 28/3/95 e o Acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001.

No primeiro daqueles arestos, entendeu-se (de forma, aliás, unânime) que Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº1 do art. 289º do CC.

O que estava em causa na controvérsia jurisprudencial dirimida pelo citado assento era a questão da admissibilidade de convolação pelo tribunal da configuração jurídico - normativa que o A. dava à causa de pedir em que fundava a respectiva pretensão, passando a sustentá-la, não no cumprimento de certa relação contratual, mas antes nas consequências legais da declaração oficiosa da nulidade do negócio jurídico invocado como base da pretensão do demandante – envolvendo ainda tal reconfiguração jurídica da «causa petendi» uma alteração na configuração jurídica do próprio pedido, da pretensão material deduzida, que deixava de assentar na obtenção de uma prestação por via do contrato, para passar a incidir sobre a obtenção de determinado bem ou quantia pecuniária como mera decorrência da declaração oficiosa de nulidade dessa relação contratual.

Subjacente ao assento está, pois, não apenas o reconhecimento de que é lícito ao Tribunal convolar para uma qualificação jurídica da causa de pedir diferente da formulada pelo A. – no caso, como decorrência da inquestionável possibilidade de conhecimento oficioso das nulidades da acto jurídico - mas também a admissibilidade de uma inovatória qualificação da pretensão material deduzida, cuja identificação não se faz apenas em função das normas e do instituto jurídico invocado pelo A., mas essencialmente através do efeito prático-jurídico que este pretende alcançar ( só assim se explicando que o tribunal possa atribuir o bem, valor ou montante pecuniário pedido, não em consequência ou a título de cumprimento do contrato em que se consubstanciava a causa de pedir, mas através da figura do dever de restituir tudo aquilo que se obteve em consequência de um negócio oficiosamente tido por nulo).

Esta mesma ideia é realçada – ainda com maior nitidez – no Ac. 3/2001, em que se uniformizou a jurisprudência no sentido de que,tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº1 do art. 616º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar a ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC.

Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal , alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.

Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.

O Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1, ilustra, de forma clara, as balizas em que é lícita esta actividade dereconfiguração ou reconstrução normativa pelo juiz da pretensão efectivamente formulada pela parte. Assim, entendeu-se que:

- nada obstava a que se pudesse convolar do pedido de anulação de certo negócio jurídico de doação, realizada mediante intervenção de procurador, cuja legitimação assentava em procuração que havia sido anulada por se ter verificado erro dolosamente provocado, para a declaração de ineficácia do negócio jurídico em relação ao doador, decorrente da representação sem poderes, nos termos do art. 268º do CC; porém:

- tendo-se o autor limitado a formular um pedido constitutivo de anulação do negócio jurídico de doação, já não seria, porém, lícito ao tribunal proferir sentença em que, para além do decretamento de certo valor negativo do acto ( independentemente de este se configurar como invalidade ou ineficácia) se condenasse ainda oficiosamente a parte a restituir o que obteve em consequência do negócio destruído, já que, nesse caso, a decisão acabaria por incidir sobre um objecto material – a restituição de certos bens – claramente diferenciado e destacável do objecto da pretensão formulada, situada apenas no plano da aniquilação dos efeitos do negócio.

Deste modo, tendo-se o autor limitado a formular um pedido de anulação de certo negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença de condenação na restituição ou entrega dos bens, consequente ao decretamento da invalidade - ou da ineficácia do negócio - por tal implicar violação do princípio de que o juiz não pode condenar em objecto diverso do pedido.

Ou seja: é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.

O grupo de situações em que se pode admitir – e em que vem sendo mais frequentemente admitida - a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor situa-se no campo dos valores negativos do acto jurídico: pretendendo o autor, em termos práticos e substanciais, a destruição dos efeitos típicos que se podem imputar ao negócio jurídico celebrado, ocorre uma deficiente perspectivação jurídica desta matéria, configurando a parte o efeito prático-jurídico pretendido – de aniquilação do valor e eficácia do negócio – no plano das nulidades quando, afinal, a lei prevê para essa situação um regime de ineficácia ou inoponibilidade; ou na invocação de um regime de anulabilidade quando o valor negativo do acto se situa no plano da nulidade, ou vice-versa.

Sendo o objectivo prosseguido pela parte a aniquilação ou destruição dos efeitos produzidos pelo acto em causa, não deverá um simples erro de configuração normativa do valor negativo do acto e do particular regime que lhe corresponde ditar a injustificável improcedência da acção, com os custos de celeridade e economia processual a que atrás se aludiu, quando, com toda a certeza, o autor se conformaria inteiramente com a aplicação do regime que decorre da correcta caracterização normativa da pretensão deduzida .


8. Ora, como parece evidente e inquestionável, nada disto se passa no caso dos autos, dada a perfeita heterogeneidade – quer jurídica, quer prático-económica – entre o pedido efectivamente formulado pelo A., situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa .

Na verdade, para além de direitos reais e associativos serem realidades juridicamente bem diferenciadas, é manifesto que – mesmo noplano prático-jurídico - representam posições totalmente diversificadas quanto ao seu conteúdo e efeito prático as de comproprietário num conjunto de imóveis identificados e de sócio numa sociedade irregular que, porventura, detenha – ou haja detido – tais imóveis no património social.

E, nesta medida, nada há censurar ao decidido pela Relação no acórdão recorrido, não se mostrando violadas as disposições legais invocadas pelo recorrido.

Sustenta o recorrente, na respectiva contra alegação, que seria indispensável atentar na circunstância de a sociedade irregular, cuja nulidade foi oficiosamente decretada pelas instâncias, ter necessária e imediatamente entrado em liquidação: e, deste modo, os direitos patrimoniais, reivindicados pelo A. na petição inicial, poderiam ser precisamente decorrência de tal liquidação da sociedade, representando a quantificação da quota detida pelo A. no património da sociedade extinta.

Tal via argumentativa é, porém, manifestamente inviável, já que o procedimento de liquidação de uma sociedade extinta obedece a regras específicas, definidas cabalmente e de modo imperativo pelo C. S. Comerciais, por tal matéria afectar os direitos de terceiros-credores da sociedade em liquidação.

E, por isso, nunca seria admissível que se procedesse incidentalmente, no âmbito de uma qualquer acção, processada na forma comum e que corresse termos entre os sócios, às operações de liquidação do ente social, definindo logo qual era a parcela dos bens sociais que caberia a cada um deles: para além de tal matéria não ter sido minimamente aflorada durante o processo, já que o decretamento oficioso da nulidade que origina a liquidação apenas ocorreu na sentença proferida no termo da presente acção, a partilha dos activos patrimoniais entre os sócios –a definição do produto da liquidação que a cada um deles cabe – só poderá naturalmente ter lugar depois de apurado se existem dívidas sociais, impondo-se ainda a prática das operações preliminares de liquidação que têm necessariamente lugar no âmbito daquele procedimento especial, regulado nos arts. 146º e seguintes do CSC.

Em suma: a liquidação dos direitos dos sócios numa sociedade extinta e em liquidação só pode operar-se no âmbito daquele procedimento especial, nunca podendo ser incidentalmente decretada no termo de uma acção declaratória comum, a correr termos entre os sócios, versando sobre objecto que nada tem a ver com as referidas operações de liquidação do ente social extinto."

[MTS]




26/07/2016

Jurisprudência (408)


Interesses imateriais; valor da acção;
cumulação aparente


O sumário de RL 28/4/2016 (8014/15.0T8LSB-A.L1-2) é o seguinte:
 
I – São ações sobre interesses imateriais aquelas cujo objeto não tem valor pecuniário, visando a declaração ou efetivação de um direito extrapatrimonial.
 
II – Não reporta a interesses imateriais o pedido de que o Condomínio seja condenado a não voltar a incluir as lojas das autoras no leque de condóminos que estão obrigados a contribuir para suportar despesas existentes ou futuras com um determinado sistema de fornecimento de ar/água quentes e frios, quer em termos de manutenção quer de qualquer outro tipo de reparação ou substituição, por não possuírem aquelas lojas tal instalação nem qualquer tipo de pré-instalação para o efeito.
 
III – Tal pedido deve aliás considerar-se formulado em cumulação aparente com o de anulação da deliberação da assembleia de condóminos que incluiu as lojas de que as Autoras são proprietárias, como contribuintes das despesas emergentes do referido sistema e que aprovou uma quota-extraordinária para suportar despesas que se prendem com a substituição de tubagem do predito sistema, “por violação do disposto no artigo 1424º do Código Civil”.