"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/07/2016

Jurisprudência (398)


PER; âmbito de aplicação pessoal


1. O sumário de STJ 5/4/2016 (979/15.8T8STR.E1.S1) é o seguinte: 

I - A lei apenas admite ao processo especial de revitalização o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, e não já todo e qualquer devedor pessoa singular.

II - Não padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade as normas legais atinentes do processo especial de revitalização assim interpretadas.
 
2. Tem interesse conhecer a exaustiva fundamentação do acórdão:

"A questão de saber ser a utilização do PER é legalmente admitida no caso em que o devedor é pessoa singular cujo substrato patrimonial revitalizando não é inserível ao conceito de “tecido económico ou empresarial” é controversa no plano doutrinário e jurisprudencial.


Não está em causa, por certo, a exclusão pura e simples do PER das pessoas singulares, pois que não pode haver dúvidas que estas também são elegíveis para o PER. O que se discute é simplesmente se essa admissão é permitida em quaisquer circunstâncias (admissão incondicionada) ou se a admissibilidade é restrita ao caso da pessoa singular visar a reabilitação de um qualquer substrato económico ou empresarial de que seja titular (trata-se aqui, por assim dizer, de uma atividade económica autónoma e por conta própria).

Segundo alguns autores, baseados essencialmente na letra da lei (maxime nº 2 do art. 17º-A do CIRE), o PER poderia ser atuado por qualquer devedor pessoa singular, independentemente pois de estar em questão a reabilitação de qualquer substrato económico empresarial. Neste sentido, se pronunciam Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 280, e O Processo Especial de Revitalização, pp. 15 e 16; Luís Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Vol. I, 2ª ed., p. 15; Catarina Serra, Processo especial de Revitalização – Contributos para uma “rectificação” – Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Abril/Setembro 2012, p. 716, nota 2; Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, pp. 20 e 21; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 296; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, p. 461, nota 5; Isabel Alexandre, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, pp. 235 e 236;

Já outros autores têm uma visão diferente do tema.

Assim, Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e das Recuperação de Empresas, Anotado, p. 140), aduzem o seguinte:

Perante o teor literal do preceito [art. 17º-A do CIRE], dir-se-ia que ele abrange qualquer devedor, independentemente das respetivas natureza ou qualidade.

Cremos, todavia, existir um bom par de razões para um entendimento distinto.

Com efeito, a ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário (…).
 

Por outro lado, a principal motivação da criação do processo de revitalização (…) foi, como confessado na Exposição de Motivos que fundamentou a apresentação pelo Governo à Assembleia da República da Proposta de Lei nº 39/XII, a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial» (…), acrescentando-se (…) que «a presente situação económica obriga (…) a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».

Manifestamente, pois, a realidade que preenche o pensamento legislativo é o tecido empresarial, no seu conjunto, e de uma forma muito lata, facilitada, de resto, pelo conceito geral de empresa que, para os efeitos do Código (…) se acolhe no art. 5º”.

Acode, também, uma outra razão (…). É que, embora já num enquadramento insolvencial, a lei contempla um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos art.s 251º e seguintes, por força do qual não se particular utilidade em cumular a possibilidade de recurso, por eles, ao processo de revitalização (…).
 

Temos, pois, por adequada a conclusão de que o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a correspondente restrição ao significado literal do texto”.

E Paulo Olavo Cunha (Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades, II Congresso de Direito da Insolvência, pp. 220 e 221) sustenta que:

O PER é exclusivamente aplicável a empresas, só para estas fazendo sentido. Com efeito, apesar de os art.s. 17º-A e seguintes serem omissos sobre eventuais restrições à aplicação do procedimento a pessoas singulares que não sejam titulares de empresas, a recuperação a empreender com este procedimento visa essencialmente salvaguardar e viabilizar uma empresa, sendo suficiente aplicar o plano de insolvência ao devedor que seja pessoa singular, visto que a sua situação patrimonial é, por definição, estática relativamente à de uma empresa, em que as variações patrimoniais são constantes. Consideramos, pois, o PER aplicável às empresas, incluindo as de titularidade individual, e diferenciando, assim, as empresas (singulares e coletivas) das pessoas singulares que não são titulares de empresas no acesso a este procedimento de revitalização”.

Na jurisprudência das Relações (publicada em www.dgsi.pt) prevalece este último entendimento. Assim se decidiu, entre outros, nos acórdãos da RE de 10-09-2015 (proferido no processo nº 531/15.8T8STR.E1, relator Sílvio Sousa) e de 09-07-2015 (proferido no processo nº 718/15.3TBSTR.E1, relator Silva Rato), da RL de 24-11-2015 (proferido no processo nº 22219/15.0T8SNT-1, relator Afonso Henrique) e da RP de 12-10-2015 (proferido no processo nº 1304/15.3T8STS.P1, relatora Isabel Soeiro).

Este Supremo Tribunal de Justiça teve oportunidade de se pronunciar muito recentemente sobre o assunto. Assim, no acórdão de 10 de dezembro de 2015 (Processo nº 1430/15.9T8STR.E1.S1, relator Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt) entendeu-se o seguinte:

«Como se concluiu no Acórdão da Relação do Porto de 23.02.2015, o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmas, qualquer atividade económica.

Propende-se para esta solução (…), afigurando-se-nos que as normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma atividade económica por conta própria.

Não devendo a interpretação cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (art. 9º, nº 1, do CC), crê-se que (…) a razão de ser da lei, o fim visado pelo legislador e as circunstâncias político-económicas que motivaram a lei (elemento racional ou teleológico) e o elemento histórico (trabalhos preparatórios) concorrem, parece-nos, para que se deva adotar aquele sentido interpretativo.

Só essa solução, com efeito, parece compatível com o objetivo anunciado pelo legislador, de promover a revitalização ou recuperação do tecido empresarial e, assim, dos agentes económicos que nele se integrem, privilegiando a manutenção dessa atividade económica, em detrimento da liquidação do seu património.

Neste sentido, será difícil conceber a recuperabilidade de pessoa singular que não exerça essa atividade, pessoa a que é inerente, como se disse, uma “situação patrimonial estática”. É o que sucede, no caso, com os devedores, que são trabalhadores por conta de outrem: o PER não poderia visar a manutenção de uma atividade que estes não exercem e promover uma recuperação, que não passaria, necessariamente, de simples exoneração do passivo.


Por outro lado, como tem sido observado, existe no âmbito da insolvência um procedimento particularmente adequado – o plano de pagamentos (arts. 249º e segs. do CIRE) – de que essas pessoas singulares podem beneficiar, permitindo que estas “sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc.), evitem, quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa” (Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/3). 

Procedimento de que decorre, como sublinha ANA FILIPA CONCEIÇÃO [Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no CIRE, em I Congresso de Direito da Insolvência, 32], “menor duração do processo, menores custos e inexistência dos efeitos da declaração de insolvência sobre o devedor, comportando menor desgaste psicológico e patrimonial e evitando o estigma social da declaração de insolvência, uma vez que a declaração de insolvência não é publicitada (art. 259º, nº 2)”.

Não se vê, assim, utilidade em os referidos devedores, pessoas singulares, poderem recorrer também ao processo especial de revitalização, não se justificando, por isso, a duplicação de recursos que tal implicaria.»

Esta é, quanto a nós, a boa interpretação da lei.

Efetivamente, e como adequada e pertinentemente se aduz no supra referido acórdão da RE de 10-09-2015:

«- Na interpretação da lei o intérprete não pode esquecer “os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar, e que constituem a sua razão de ser” ou, noutras palavras, “o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar”; além disso, a lei a interpretar tem de ser vista no âmbito da “disciplina jurídica em que ela está inserida”, e não isoladamente, uma vez que “a relevância de um interesse é sempre medida e condicionada pela relevância reconhecida a outros interesses”; ao intérprete é, finalmente, exigido que “atenda, por um lado às circunstâncias em que foi elaborada, e por outro às condições específicas do tempo em que é aplicada, isto é, que a interpretação seja coerente com o sistema de valores que a comunidade aceita como fundamento da própria convivência” [Artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil e Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 39];

- Sempre que a vontade real do legislador não seja clara e inequívoca, importa ter em consideração “critérios de carácter objetivo”, como sejam o da presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e da rejeição de um sentido decisivo da lei, se no texto desta “não se encontrar um mínimo de correspondência verbal” [Artigo 9.º, nºs 1 e 2, do Código Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, págs. 58 e 59].»

Ora, percorrendo a Proposta de Lei nº 39/XII, que originou a Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que, por seu turno, consagrou o processo especial de revitalização, encontramos o seguinte:

«(…) O principal objetivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.” (…) Na mesma linha, é criado o processo especial de revitalização (artigos 17.º-A a 17.º-I), lançando-se a primeira pedra deste processo logo no n.º 2 do artigo 1.º, explicitando-se, em traços muito largos, quais os devedores que ao mesmo podem recorrer. O processo visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente que sem pôr em causa as respetivas obrigações legais, designadamente para regularização de dívidas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social.

O processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas. Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários (…)».

Por sua vez, esta Proposta de Lei deve (tem que) ser compaginada com os ditames do chamado “Programa de Assistência Financeira” estabelecido entre a Comissão Europeia, o Banco central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a República Portuguesa, nos termos do qual o Estado Português acedeu a criar legislação com vista a alterar o CIRE, com a finalidade de “facilitar o resgate efetivo de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis”.

Do que fica dito resulta, com clareza (a nosso ver), que o propósito do legislador, ao criar o PER, foi o de permitir a revitalização da atividade económica do devedor que funcione como “agente económico empresarial”, e não de quaisquer outros devedores, nomeadamente pessoas singulares trabalhadores por conta de outrem. Sendo esta, como é, a mens legislatoris, o elemento racional (ou teleológico) da interpretação e o elemento histórico impõem tal conclusão."

III. Sobre a matéria cf. Jurisprudência (394).

MTS