"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2016

Jurisprudência constitucional (89)


Sinistro de trabalho; pensão;
revisão; preclusão


 --TC 13/7/2016 (433/2016), DR 89/2016, Série II de 2016-09-30

Julga inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma contida nos n.os 1 e 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, quando interpretada no sentido de estabelecer um prazo preclusivo de dez anos, contados da fixação original da pensão, para a revisão da pensão devida a sinistrado por acidente de trabalho, com fundamento superveniente de lesões sofridas, nos casos em que, desde a fixação da pensão e o termo desse prazo de dez anos, apesar de mantida a incapacidade, a entidade responsável fique judicialmente obrigada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado.
 
 
 

Jurisprudência uniformizada (24)


Aquisição da nacionalidade; oposição;
ónus da prova


-- Ac. STA 4/2016, de 30/9:

Na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos artigos 9.º, alínea a), e 10.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro [Lei da Nacionalidade] na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional.


Jurisprudência (438)



Procedimento especial de despejo; oposição;
prestação de caução; apoio judiciário



1. O sumário de RL 26/4/2016 (4024/15.5YLPRT.L1-7) é o seguinte:

O requerido que beneficie de apoio judiciário está, para o efeito de deduzir oposição ao procedimento especial de despejo, dispensado de prestar a caução a que se refere o nº 3 do art. 15º-F do NRAU. 

2. Da fundamentação do acórdão retira-se a seguinte passagem: 

"Dispõe o nº 1 do art. 1083º do CC que “1- Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte”.

E o nº 3 do mesmo normativo estipula que “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que ocorram por conta do arrendatário …, sem prejuízo do disposto nos nº 3 e 5 do artigo seguinte”, estatuindo o nº 2 do art. 1084º que a resolução pelo senhorio com este fundamento opera por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.

Foi com base neste normativo que a apelada resolveu o contrato de arrendamento celebrado com a apelante, tendo recorrido à presente acção para obter o despejo do arrendado, alegando a recusa da arrendatária em desocupá-lo.

A requerida opôs-se à pretensão de despejo, deduzindo oposição nos termos do nº 1 do art. 15º-F da L. nº 6/2006, de 27.02 (NRAU), com as alterações introduzidas pela L. 31/2012, de 14.08.

Dispõe o nº 3 do referido artigo que “Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos nºs 3 e 4 do artigo 1083º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor da rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”, estatuindo o nº 4 que “não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida”.

A Portaria nº 9/2013, de 10.01, veio regulamentar, para além do mais, as “formas de apresentação da oposição, e o modo de pagamento da caução devida com a oposição” (art. 1º, nº 1, al. b)), estabelecendo no art. 10º que “1 – O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do nº 3 do artigo 15ºF da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, é efectuada através dos meios electrónicos de pagamento previstos no artigo 17º da Portaria nº 419-A/2009, de 17 de Abril, após a emissão do respectivo documento único de cobrança. 2 – O documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário”.

Resulta, para nós, evidente que existe manifesta contradição entre o estipulado no nº 3 do art. 15ºF do NRAU e o estipulado no nº 2 do art. 10º da Portaria nº 9/2013, de 10.01.

No NRAU, o legislador pretendeu isentar o beneficiário de apoio judiciário do pagamento da caução nas situações apontadas [...], em termos a regulamentar, a Portaria não isenta o arrendatário da prestação da caução prevista no nº 3 do art. 15º-F.

O tribunal recorrido entendeu que não existia a referida contradição, antes tendo o nº 2 do art. 10º da Portaria vindo “clarificar” o disposto no nº 3 do art. 15º-F do NRAU, na esteira, aliás, do Ac. da RE. de 25.9.2014, P. 1091/14.2YLPRT-A.E1, rel. Desemb. Canelas Brás, consultável em www.dgsi.pt, a que se refere.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não sufragamos tal entendimento - nem sufragamos a leitura que se faz do nº 3 do art. 15º-F do NRAU, nem o entendimento que a respectiva interpretação passa pela análise do instituto de apoio judiciário.

Como supra referido, afigura-se-nos claro que entre as referidas normas existe manifesta contradição.

Como se escreveu no Ac. desta Relação, de 28.4.2015, P. 1945/14.6YLPRT-A.L1, em que foi relatora a, ora 2ª adjunta, Desemb. Rosa Maria Ribeiro Coelho, consultável em www.dgsi.pt, “A interpretação do nº 3 do dito art. 15º-F do NRAU, com recurso aos elementos gramatical – ou letra da lei – e lógico - espírito da lei –, leva-nos a concluir que, com ele, o legislador isentou o beneficiário de apoio judiciário da prestação de caução, em moldes a regulamentar por ulterior Portaria. [...]

Ora, a expressão verbal do preceito “Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos nºs. 3 e 4 do artigo 1083.° do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento (…)”, - sublinhado nosso -, não consente outro sentido que não seja o desígnio de isentar o arrendatário que beneficia de apoio judiciário do pagamento da caução no valor descrito, tanto mais que a inexigibilidade do pagamento da taxa de justiça resulta já da Lei do apoio judiciário – cfr., entre outros, o art. 16º, nº 1, alínea a), da Lei nº 34/2004, de 29.07. Por outro lado, também o elemento teleológico ou racional – o que terá sido o fim visado pelo legislador - aponta no mesmo sentido. Disse-se na Proposta de Lei nº 38/XII, Exposição de Motivos, além do mais, o seguinte “(…) Por sua vez a transferência para o arrendatário do ónus de impugnação do despejo, de prestação de caução e de pagamento de taxa de justiça no âmbito do procedimento especial visa dissuadir o uso deste procedimento apenas como meio dilatório para a efectivação do despejo.” Isto mostra que, no intuito de evitar que a oposição seja usada apenas como meio dilatório da efectivação do despejo, o legislador fez impender sobre o arrendatário o ónus de pagar, tanto a taxa de justiça, como a caução em valor que especifica. Ciente, porém, de que sujeitar a admissibilidade da oposição à prestação de caução pode equivaler a coarctar ou anular o direito de defesa de arrendatário que se encontre em precária situação económica, bem se entende que, concomitantemente, tenha querido assegurar o exercício desse direito fundamental aos arrendatários mais carenciados, isentando-os de prestar a caução, em termos a definir por portaria”.

Existindo conflito de normas, de hierarquias diversas [...] a resolução do problema passa “pela prevalência da fonte de maior hierarquia”, como se escreveu no Ac. da RL de 19.2.2015, P. 4118/14.4TCLRS, rel. Desemb. Ezaguy Martins, in www.dgsi.pt, e para que remete o supra referido Ac. da RL de 28.4.2015."


[MTS]

 

29/09/2016

Bibliografia (407)


-- Hendry, J./King, C., Expediency, Legitimacy, and the Rule of Law: A Systems Perspective on Civil/Criminal Procedural Hybrids, Crim Law Philos (2016)

Abstract: In recent years an increasing quantity of UK legislation has introduced blended or ‘hybridised’ procedures that blur the previously clear demarcation between civil and criminal legal processes, typically on the grounds of normatively-motivated political expediency. This paper provides a critical perspective on instances of procedural hybridisation in order to illustrate that, first, the reliance upon civil law measures to remedy criminal law infractions can raise human rights issues and, second, that such instrumental criminal justice strategies deliberately circumvent the enhanced procedural protections of the criminal law. By conceptualising the rule of law as a structural coupling between the political and legal systems, and due process rights as necessary and self-imposed limitations upon systemic operations, this paper employs a systems-theoretical approach to critique this balancing act between expediency and principle, and queries the circumstances under which legislation contravening the rule of law can be said to lack legitimacy. 
 
 
 
 

Jurisprudência (437)


Providência cautelar; apreensão de viatura;
caducidade


1. O sumário de RL 26/4/2016 (934/14.5TVLSB-A.L1-7) é o seguinte:

I–Não existe fundamento na lei para aplicar à providência cautelar não especificada o regime exclusivo da providência cautelar especificada de arresto e mormente o disposto no artigo 395º do Código de Processo Civil.
 
II–Nos termos do artigo 373º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, o que determina a caducidade do procedimento cautelar respectivo é a improcedência da acção principal e não a sua procedência.
 
III-Não faz sentido obrigar a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efectivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento, sendo certo que não ocorreu qualquer das causas de extinção por caducidade da providência cautelar consignadas no artigo 373º do Código de Processo Civil.
 

2. Segundo o seu relatório, o acórdão apreciou a seguinte situação:

"Intentou WZX Renting (Portugal), Lda. providência cautelar não especificada contra M.-Energias Solares, Unipessoal, Lda.

Essencialmente alegou:

Celebrou com a requerida um contrato de aluguer operacional que teve por objecto a viatura automóvel marca WZX X1 E84 20d, com a matrícula 56-..-16.

A requerida deixou de pagar os respectivos alugueres desde Dezembro de 2013 e não procedeu à devolução da viatura que se mantém em seu poder.

Conclui pedindo a imediata apreensão do veículo automóvel identificado.

Produzida prova, foi a providência julgada procedente e ordenada a imediata apreensão da viatura, por decisão datada de 16 de Junho de 2014.

Foram desenvolvidas diversas e aturadas diligências com vista à apreensão do veículo a qual, até ao momento, não se concretizou.

Nos autos principais, de que a providência é dependente, foi proferida sentença, datada de 30 de Outubro de 2015, julgando procedente o pedido formulado pelo A.

Em 24 de Fevereiro de 2016, enquanto continuavam a decorrer diligências com vista à apreensão do veículo identificado, foi proferido o seguinte despacho: 

[...] Extinção da providência cautelar (por efeito da procedência da acção principal)
 
Mas, se com as providências cautelares se visa salvaguardar a eficácia da futura decisão - supostamente - favorável ao requerente, então, sendo a acção definitiva julgada procedente, «a providência mantém-se ou transforma-se por força da decisão proferida na acção principal», cessando os seus efeitos para dar lugar aos da decisão definitiva (Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 1983, 3ª edição, 639).

Por outras palavras, em tal hipótese, cessam normalmente os efeitos da providência, porque ficam substituídos pelos do julgamento definitivo, desaparecendo a necessidade da medida que visava acautelar o direito a fazer valer, ou a evitar os prejuízos da demora dessa decisão. A uma mera probabilidade da existência do direito, sucede-se a certeza da sua existência. 

Compreende-se assim que, nos caso de restituição provisória de posse e de embargo de obra nova, a sentença confira carácter definitivo à situação provisoriamente regulada na providência, justificando que se declare esta finda (Acs. do RP, de 07.05.99, Leonel Serôdio, e de 17.11.2005, José Ferraz, acessíveis emwww.dgsi.pt/jtrp ; e Ac. da RC, de 09.07.2002, Hélder Roque, acessível em www.dgsi.pt/jtrc). 

Contudo, existem situações em que a lei é expressa quanto à ultra-vigência da providência, lendo-se nomeadamente no art. 395º do C.P.C. (antes, 410º) que «o arresto fica sem efeito (…) no caso de, obtida na acção de cumprimento sentença com trânsito em julgado, o credor insatisfeito não promover execução dentro dos dois meses subsequentes». [...]

Compreende-se, por isso, que «sempre que a tutela cautelar vise afastar o risco de atraso da decisão principal, a emissão desta faz caducar,
ipso iure, a providência cautelar emitida, porquanto é neste momento que esta perde a sua razão de ser. Os respectivos efeitos passam agora a ser produzidos por força da sentença condenatória do réu» ([Rita Lynce de Faria, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003,] p.138).

Já «sempre que a providência cautelar realize a função instrumental, através da garantia de exequibilidade da futura sentença, a caducidade daquela depende da verificação de um facto complexo de produção sucessiva: a emissão da sentença favorável ao autor, associada à prática do acto de execução que aquela providência visou assegurar. Só esta interpretação respeita a instrumentalidade das medidas cautelares não especificadas» (op. cit., p. 140). 

Ora, constituindo o arresto o paradigma deste segundo tipo de providência cautelar de índole essencialmente executiva, e encontrando-se esta matéria regulada art. 395º do C.P.C. (antes, art. 410º), deverá a solução aí consagrada aplicar-se, por analogia, a todas as outras do mesmo cariz, não havendo razões de tutela do requerido que permitam solução diferente (op. cit., p. 142). 

Por outras palavras, «o preceito do art. 410º, na sua dupla vertente (prazo para a propositura da execução; diligência a observar no decurso desta), deve ser analogicamente aplicado a outras providências cautelares que antecipem um acto executivo de apreensão (…), como o arrolamento ou a apreensão e o depósito de bem devido. A analogia impõe-se, tendo designadamente em conta o disposto na alínea b) [do nº1 do art. 389º do C.P.C.]» (Lebre de Freitas e Outros, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., p. 53). 

Secunda-se aqui esta interpretação, não só por melhor respeitar o carácter instrumental do procedimento cautelar, como ainda por respeitar o regime legal do arresto (que indubitavelmente constitui o paradigma da providência de índole essencialmente executiva). 

Concretizando, a aqui Requerente, WZX Renting (Portugal), Limitada, intentou esta providência cautelar peticionando a apreensão de um veículo automóvel. 

Está, por isso, em causa uma providência de índole essencialmente executiva. 

Produzida a prova arrolada, a providência foi decretada consoante requerido. 

Todavia, ainda não se logrou efectivar a apreensão do dito veículo automóvel. 

A aqui Requerente intentou, entretanto, uma acção declarativa de condenação, contra a aqui Requerida, onde impetrou a restituição pela mesma da viatura em causa nestes autos de procedimento cautelar.

Na dita acção principal foi proferida sentença, julgando procedente a pretensão da ali Autora, sentença que já transitou em julgado há mais de sessenta dias. 

Logo, das duas uma: ou a Requerente já intentou uma acção executiva para entrega de coisa certa (em que, não sendo encontrada a viatura a restituir-lhe, poderão aqueles autos ser convertidos, por sua iniciativa, em execução para pagamento do valor respectivo, nos termos do artigo 931º do C.P.C.); ou não o fez, devendo tê-lo feito no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da decisão proferida na acção principal (art. 395º do C.P.C., aqui aplicável por analogia, conforme se expôs supra). 

Em qualquer destas hipóteses, terá sempre sido praticado acto, ou verificada omissão, que importa que a presente providência cautelar tenha ficado sem efeito. [...]

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, declaro extinta a providência cautelar decretada nestes autos. [...].


3. Na fundamentação do acórdão lê-se o seguinte: 

"Nos termos do artigo 373º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, o que determina a caducidade do procedimento cautelar respectivo é a improcedência da acção principal e não a sua procedência.

O interesse primordial dos presentes autos cautelares – a apreensão do veículo automóvel, cujas sucessivas tentativas têm-se revelado infrutíferas – subsiste incólume e deverá ser empenhadamente prosseguido, com celeridade e eficácia, sob pena de irreversível frustração do direito substantivo gravemente em risco.

Assim, o que está aqui em causa é a efectivação do direito do requerente, que urge, sem delongas, acautelar, e que por circunstâncias que lhe são absolutamente alheias, ainda não foi assegurado pelo ordenamento jurídico ao qual se dirigiu e que acolheu inteiramente a sua pretensão.

Afigura-se-nos, por isso, incompreensível e ilógico que se obrigue a requerente (que anda há anos a pugnar denodadamente pela efectivação da diligência de apreensão do veículo automóvel) a encetar nova via sacra, dando à execução a sentença declarativa de teor essencialmente coincidente com a pretensão formulada em termos cautelares, com o inerente acréscimo de dispêndios de tempo e custos e inutilização do trabalho já realizado no plano deste procedimento.

Isto para impulsionar exactamente a mesmíssima actividade processual que estava em curso há longo tempo.

No fundo, refazer o que já estava a ser feito, inútil e cansativamente."

4. O acórdão decidiu com um indispensável bom senso, podendo talvez acrescentar-se que uma providência cautelar de apreensão de um veículo nunca pode caducar enquanto estiver em execução essa apreensão (ou a tentativa de a realizar). Não é, aliás, outra a posição que se retira da transcrição de Lebre de Freitas et al. constante do despacho da 1.ª instância, dado que a analogia com a caducidade do arresto só se pode verificar quando o requerente da providência não instaure, dentro de certo prazo, a execução (da sentença proferida na acção principal ou -- se for o caso -- da própria providência). Ora, não era isso que sucedia no caso em análise, dado que a execução da providência ainda estava em curso no momento do proferimento da decisão condenatória.
 
Assim, em vez de se falar de caducidade da providência em virtude do proferimento da decisão condenatória, do que se deveria falar era de consolidação dessa mesma providência e da respectiva execução (em curso) por essa decisão.

MTS

 

28/09/2016

Bibliografia (406)


-- Dirmeier, S., Der Konzern in der Insolvenz / Aktuelle Rechtslage und Reformüberlegungen auf nationaler und europäischer Ebene (Peter Lang: 2016)

-- Gorius, H., Kollektive Kartelldeliktsrechtsdurchsetzung in den USA, Frankreich und Deutschland (Peter Lang: 2016)





Jurisprudência (436)




Recurso de apelação;
impugnação da matéria de facto

 

O sumário de STJ 28/4/2016 (1006/12.2TBPRD.P1.S1) é o seguinte:

1. Deve considera-se satisfeito o ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou.

2. Na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

3. A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.

4. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC.
 
 II.  Da fundamentação do acórdão extrai-se o seguinte trecho:
 
"Ao invés do que foi decidido pela Relação, não pode ser feita qualquer associação entre a admissibilidade formal da impugnação da decisão da matéria de facto e a tempestividade do recurso de apelação. Não se compreende que, nas circunstâncias que foram reportadas, tivessem sido extraídas pela Relação as consequências radicais que se traduziram na rejeição do recurso de apelação também na parte referente à qualificação jurídica dos factos.

Com efeito, como o revelam os segmentos das alegações que foram reproduzidos, não há qualquer dúvida de que os recorrentes impugnaram a decisão que foi dada ao ponto 49º da base instrutória e que, para sustentação da sua pretensão de modificação da decisão da matéria de facto, invocaram um depoimento testemunhal que, em seu entender, deveria determinar um resultado diverso.

Cumpriram, como se disse anteriormente, o ónus de alegação. Mas ainda que houvesse alguma objecção relativamente a essa parte do recurso de apelação, tal não prejudicaria a aplicabilidade do acréscimo de 10 dias que lhes foi concedido e de que beneficiaram para apresentação das alegações, nos termos do nº 7 do art. 638º do CPC, nas quais integraram uma pretensão assente, em parte, na prova que tinha sido oralmente prestada.

Por isso, ainda que porventura tivesse sido confirmado o acórdão na parte em que rejeitou a apelação referente à impugnação da decisão da matéria de facto, nem assim haveria motivo para que a Relação se abstivesse de apreciar o recurso de apelação na parte restante, uma vez que iniludivelmente o recorrente sustentou a impugnação da decisão da matéria de facto em depoimento que foi oralmente prestado e gravado."
 
[MTS]
 
 

27/09/2016

Bibliografia (405)


-- Münchener Kommentar zur Zivilprozessordnung: ZPO, 5.ª ed. (C. H. Beck: München 2016)




Bibliografia (404)


-- Cagnasso O./Panzani, L., Crisi d'impresa e procedure concorsuali I, II e III (UTET GIURIDICA 2016)

 -- Terranova, G, L'autonomia del diritto concorsuale (G. GIAPPICHELLI EDITORE: Torino 2016)

 


Bibliografia (403)


-- Haack, S., Mind the Analytical Gap!: Tracing a Fault Line in Daubert,  Wayne L. Rev. 61 (2016), 653

Nota: para algumas informações sobre S. Haack cliclar em Wikipedia. A sua obra Filosofia das Lógicas pode ser descarregada aqui




Jurisprudência (435)


Processo de trabalho; 
reconvenção

1. O sumário de RC 12/5/2016 (1056/15.7T8CLD-A.C1) é o seguinte: 

I – Nos termos conjugados dos artºs 30º, nº 1 do CPT e 126º, al. o) da Lei nº 62/2013, de 26/08, é admissível, em processo laboral, a dedução de pedido reconvencional, não apenas quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação, mas ainda quando o mesmo tenha com o facto jurídico que serve de fundamento à ação uma relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência, salvo no caso de compensação, em que a conexão é dispensada.

II – O sentido da expressão ‘facto jurídico que serve de fundamento à ação’ empregue no primeiro segmento do artº 30º, nº 1 do CPT, pelo seu exacto teor literal e pela sua inserção sistemática em capítulo intitulado ‘instância’, em que é regulada a cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir (artº 28º), só pode ser entendido como referindo-se à causa de pedir, ao facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão.

III – As relações de conexão, para que operem, devem estabelecer-se entre as questões reconvencionais e a ação, ou seja quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.
 

2. a) Do relatório do acórdão consta o seguinte:
 
"[A Ré] Deduziu reconvenção, alegando para tanto que o autor era responsável pelo desenvolvimento de todos os programas de software, software que, unicamente, detinha e tem na sua posse, um computador portátil com toda a informação inclusa, dois discos rígidos, contendo a informação da empresa relativa aos anos anteriores e um telemóvel contendo uma base de contactos de importância fundamental para a empresa. Para além disso alegou que o autor tem todos os acessos e passwords de registos efectuados em sites que servem a ré através de aplicações ou complemento dos mesmos e é possuidor de documentação em suporte informático, relativo a conversas mantidas com clientes e histórico de dúvidas e explicações fornecidas a clientes, bem como mensagens/e-mails de fornecedores com manuais técnicos e especificações de vários equipamentos e e-mails de teor explicativo, dado por técnicos/fornecedores e conversas mantidas com os mesmos, pertença da ré, detendo ainda na sua posse, documentação técnica e desenvolvimentos, bem como e-mail’s de suporte, que se comprometeu entregar/devolver à ré. Alega que no acordo de cessação do contrato o autor transmitiu que apenas libertaria o que detinha, mediante o pagamento da compensação devida e por tal a ré procedeu à transferência de uma quantia para que o autor libertasse, pelo menos, um software essencial para a conclusão de um negócio encetado, negócio que proporcionaria o pagamento da quantia total acordada com o autor. E que perante o pagamento, o autor entregou o software solicitado, comprometendo-se, ainda a proceder à entrega de todos os demais programas informáticos e restante material que se encontravam na sua posse, mas não o fez, sendo que com a conduta referida causou prejuízos avultados à ré. Por isso, invocando o disposto no art. 483.º n.º 1 do Código Civil, reclamou indemnização dos danos que contabilizou em € 7.800,00. No pedido reconvencional pediu a condenação do autor na devolução dos bens referidos e ainda a pagar-lhe o valor de € 7.800,00."

Na fundamentação do seu acórdão, a RC disse o seguinte:

"A ré fundamentou os pedidos reconvencionais de restituição e de indemnização em factos relativos ao incumprimento contratual do autor que, nem ao de leve, foram mencionados na petição inicial. O pedido reconvencional nada tem a ver com o fundamento da acção. Apesar de ambos os pedidos - da acção e da reconvenção - terem um ponto comum, o contrato de trabalho e a prestação de trabalho, qualquer relação de conexão seria apenas indirecta, porque derivam ambas da existência de um contrato de trabalho."

b) Pode aceitar-se que a reconvenção não seja admissível quanto ao pedido de indemnização formulado pela Ré, mas é discutível que a mesma não deve ser considerada admissível quanto à devolução do computador e do telemóvel que -- segundo se deduz -- o Autor tem na sua posse em cumprimento do contrato de trabalho que celebrou com a Ré e que entretanto cessou. Se assim é, então é possível concluir que, de acordo com a responsabilidade post factum finitum (ou com a pós-eficácia das obrigações), o Autor tem a obrigação de, ainda em cumprimento do contrato de trabalho, restituir aqueles bens. 

Nesta óptica, o que fundamenta tanto vários dos pedidos formulados pelo Autor, como o pedido reconvencional deduzido pela Ré é o contrato de trabalho que existiu entre ambos e as obrigações que dele resultam para ambas as partes..Assim, dado que o art. 30.º, n.º 1, CPT estabelece que a reconvenção é admissível quando se baseie no facto que serve de fundamento à acção (que, no caso concreto, era, pelo menos em parte, o contrato de trabalho), é possível concluir que o pedido reconvencional deduzido pela Ré -- que também se baseia nas obrigações decorrentes daquele contrato --  devia ter sido considerado admissível.

MTS


26/09/2016

Jurisprudência (434)


Processo de insolvência; verificação e graduação de créditos; 
comunhão conjugal; venda em caso de comunhão ou compropriedade


1. O sumário de RC 17/5/2016 (836/14.5T8ACB-C.C1) é o seguinte:

I – Nos termos do artº 634º do nCPC, o recurso interposto por uma das partes aproveita aos seus compartes no caso de litisconsórcio necessário (vide n.º 1). Fora do caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto aproveita ainda aos outros “se estes, na parte em que o interesse seja comum, derem a sua adesão ao recorrente”.

II - Dispõe o nº 3 do art.º 130º do CIRE, disposição legal que se ocupa da “impugnação da lista de credores reconhecidos”, que não havendo impugnações “é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.

III - Não se discute que a letra da lei parece atribuir efeito cominatório à falta de impugnações, salvo o caso de erro manifesto. Todavia, cedo foi notada a inadequação da solução, quando entendida como redutora do papel do juiz a uma mera formalidade, competindo-lhe apenas apor a chancela à lista elaborada pelo Sr. AI, e isto desde logo face à constatação de que, tratando-se de matéria de enorme relevo e idêntica complexidade jurídica, a ausência de impugnações não dá quaisquer garantias de que a lista se encontre correctamente elaborada.

IV – No nº 3 do artº 130º do CIRE deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode e deve solicitar ao administrador os elementos de que necessite, fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades”.

V - A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva, dando origem a um único direito encabeçado pelos dois cônjuges: não se trata, portanto, de cada cônjuge ter direito a metade de cada bem concreto dos que integram o património comum do casal, mas antes do direito ao valor de metade deste património. “O direito a metade é (…) um direito ao valor de metade” (cf. art.º 1730.º, n.º 1 do CC).

VI - É de admitir a realização da venda dos bens que compunham o património comum de um ex-casal de insolventes, com partilha do produto da venda por ambas as massas insolventes, a despeito de estas serem compostas, num e outro processo, pelo direito à meação nos bens comuns de cada um dos ex-cônjuges.

VII - Recusando embora a atribuição da natureza exclusivamente executiva ao processo insolvencial, atendendo aos “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência”, e concluindo portanto pela sua natureza mista, é isento de dúvida que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva”.

VIII - Inexiste assim obstáculo à aplicação do disposto no art.º 743º do CPC, nomeadamente da solução consagrada no seu n.º 2, aos processos de insolvência nos quais foi arrolado o “direito à meação” de cada um dos ex-cônjuges (cf. art.º 17º do CIRE).

IX - Tal solução não contraria as disposições do CIRE, que acolhe regime idêntico quando está em causa uma situação de insolvência envolvendo os dois cônjuges, prevendo a liquidação dos bens comuns - e não do direito de cada um à meação - ainda que separada da liquidação dos bens próprios de um e outro cônjuges, caso existam, sendo inegável a identidade entre esta situação e aquela outra em que o divórcio foi decretado antes da declaração de insolvência que atingiu ambos os membros do dissolvido casal, sendo comuns os credores e o património comum não tenha sido partilhado.

X - Efectuada a venda dos bens comuns por escritura na qual intervieram ambos os administradores, deverá a mesma manter-se, e tendo o produto revertido a favor das massas insolventes na proporção de metade para cada uma, será sobre ele que será feita a graduação, mantendo a credora recorrente a garantia hipotecária nos termos do n.º 3 do artigo 823.º do CC e, consequentemente, o direito a ser paga com a preferência que a lei lhe atribui (cf. art.º 686º do mesmo diploma legal).
 

2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte: 

"O art.º 1.º do CIRE afirma ser o processo de insolvência um processo de execução universal, tendo como finalidade a satisfação dos credores “pela forma prevista num plano de insolvência, baseada, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor e repartição do produto obtido pelos credores”. 

Não obstante a definição legal, não tem sido aceite sem reserva a atribuição da natureza executiva ao processo insolvencial. Na consideração de que tais concepções “menosprezam a fase declarativa do processo de insolvência”, e fazendo relevar os “importantes efeitos substantivos da declaração de insolvência”, vem sendo entendido que tais traços são quanto basta para que lhe seja atribuída a natureza mista de acção declarativa e executiva. Todavia, é, em qualquer caso, isento de dúvida que os “actos do processo relativos ao activo da massa insolvente têm natureza prevalentemente executiva” [Prof. Lebre de Freitas, “Apreensão, Separação, Restituição e Venda”, cit. [acessível em http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/6397/jurismat5_15-25.pdf?sequence=1.]]. 

Nos termos do disposto no art.º 743.º do CPC, que se ocupa da penhora em caso de comunhão ou compropriedade, ressalvado o disposto no n.º 4 do art.º 781.º [...] “(…) na execução movida apenas contra alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso” (n.º 1). Todavia, logo se prevê no n.º 2 que “Quando, em execuções diversas, sejam penhorados todos os quinhões no património autónomo ou todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efectuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido”. 

Embora o n.º 1 do preceito se afigure hoje destituído de interesse prático no âmbito dos processos executivos no que se refere à comunhão conjugal, dada a possibilidade conferida ao credor pelo artigo 740.º do CPC (e, antes deste, pelo art.º 825.º do CPC cessante) de, na execução movida contra apenas um dos cônjuges, e na insuficiência de bens próprios do devedor, nomear à penhora bens comuns do casal - caso em que se procederá à citação do outro cônjuge para, em 20 dias, requerer a separação de bens ou fazer prova de a já ter requerido - nada obsta, em nosso entender, à sua aplicação, designadamente da solução consagrada no n.º 2, ao processo de insolvência no qual se procedeu à apreensão do “direito à meação” (cf. art.º 17.º do CIRE). Trata-se de solução que não contraria as disposições deste diploma, que acolhe regime idêntico quando está em causa uma situação de insolvência envolvendo os dois cônjuges, prevendo a liquidação dos bens comuns (e não do direito de cada um à meação), ainda que separada da liquidação dos bens próprios de um e outro cônjuges, caso existam. E é inegável a identidade de situações, ainda que nos presentes autos o divórcio tenha sido decretado antes da declaração de insolvência que atingiu ambos os membros do dissolvido casal. 

Resulta do exposto que a venda realizada deverá manter-se [...] e, tendo o produto revertido a favor das massas insolventes na proporção de metade para cada uma, será sobre ele que será feita a graduação, mantendo a credora recorrente a garantia hipotecária nos termos do n.º 3 do artigo 823.º do CC e, consequentemente, o direito a ser paga com a preferência que a lei lhe atribui (cf. art.º 686.º do mesmo diploma legal)." 

3. Apenas um apontamento. É verdade que o art. 634.º, n.º 1, CPC (à semelhança do que já se dispunha no art. 683.º CPC/1939) estabelece que, no caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto por um dos litisconsortes aproveita aos demais. No entanto, o critério para aferir se o recurso aproveita a um não recorrente não pode ser o de o litisconsórcio ser necessário, mas antes o de ele ser unitário: o que é relevante é saber se tem de haver uma mesma e única decisão para todos os litisconsortes. Isto é muito fácil de demonstrar em dois exemplos:

-- Se um comproprietário propuser uma acção de divisão da coisa comum contra os dois outros comproprietários, este litisconsórcio passivo é necessário (e natural: art. 33.º, n.º 2, CPC); no entanto, é evidente que o recurso interposto por um destes litisconsortes não aproveita ao outro litisconsorte; pelo contrário: pode suceder que o que o recorrente venha a obter a mais no recuso interposto da decisão de divisão seja precisamente à custa do seu litisconsorte;

-- Se vários sócios propuserem uma acção de anulação de uma deliberação social, o litisconsórcio é voluntário; apesar disto, é claro que a decisão proferida em recurso sobre a validade da deliberação social vale igualmente para os litisconsortes não recorrentes (bem como, aliás, para todos os sócios, mesmo não litigantes).

MTS


Paper (231)


-- Caponi, R., Rigidità e flessibilità del processo di cognizione (09.2016) (via academia.edu)

 

23/09/2016

Jurisprudência (433)


Sonegação de bens; ónus da prova; 
"não prova de que"; consequências


I. O sumário de STJ 28/4/2016 (155/11.9TBPVZ.P1.S1) é o seguinte:

1. À Relação é legítimo integrar oficiosamente na decisão factos que se encontram plenamente provados, o que, no entanto, não envolve a conclusão inscrita num relatório pericial grafológico acerca da autenticidade da assinatura aposta num documento que foi examinado pelo perito.

2. As conclusões do relatório subscrito pelo perito, no âmbito da prova pericial, não constituem factos que possam ser autonomamente considerados, sendo apenas o resultado de um meio de prova que o Tribunal deve valorar no processo de formação da convicção sobre a matéria de facto controvertida.

3. A resposta “não provado” dada relativamente a um facto controvertido não permite afirmar a prova do facto contrário.

4. A sonegação de bens prevista no art. 2096º do CC pressupõe a prova de actos de ocultação dolosa de bens da herança por parte do herdeiro a quem é imputada.

5. O facto de não se provar a doação de dinheiro depositado em contas bancárias que foi alegada pelo herdeiro a quem é imputada a sonegação de bens da herança é insuficiente para o fazer incorrer na sanção civil prevista no art. 2096º do CC, ou seja, da perda a favor dos demais co-herdeiros do direito sobre tal numerário. 

II. a) Apesar da qualidade a que os subscritores do acórdão nos habituaram, é duvidoso que o STJ tenha decidido bem a questão respeitante à não prova da doação alegada por um dos Réus.

O que, no essencial, estava em causa era o seguinte: uma herdeira propôs uma acção em que pediu, contra outros herdeiros, o reconhecimento de que certos bens pertenciam a uma determinada herança; um dos herdeiros demandados invocou que uma certa quantia depositada numa conta de que era titular lhe pertencia, porque a de cujus lhe tinha doado essa quantia.

No resumo efectuado pelo STJ:

"Na presente acção a controvérsia está centrada no facto de a mãe da A. e do R. Isaac ter outorgado ou não uma “doação” a este de determinadas quantias depositadas. Enquanto o R. EE alegou ser beneficiário dessa doação, a A. negou a sua existência, divergência que foi explicitada nos articulados e que acabou espelhada no ponto 65º da base instrutória [...].

Submetido esse ponto controvertido a instrução, o Tribunal de 1ª instância concluiu que resultara “não provado” [...], com indicação dos motivos assentes em factos circunstanciais e na ponderação de depoimentos testemunhais e da perícia grafológica que incidiu sobre a autoria da assinatura aposta no documento que titularia tal “doação”. Tal decisão não foi questionada por nenhuma das partes." 



b) A propósito da não prova da doação, afirmou o STJ o seguinte:

"Malgrado a junção ao autos de um documento titulando uma “doação” e do qual constava uma assinatura imputada à alegada doadora, as instâncias consideraram “não provada” a sua existência [...].

Porém, da falta de prova desse facto não é legítimo inferir a prova do facto inverso, ou seja, a falta de prova da doação não permite afirmar que a mesma não ocorreu e que o R., alegado donatário, pretendeu apropriar-se, por essa via, de um bem que deveria entrar no acervo hereditário."

Com o devido respeito pelo Relator e restantes subscritores do acórdão, não se pode acompanhar esta conclusão. Se um facto é dado como não provado pelo tribunal (por exemplo, se a celebração de um contrato é considerada não provada), isso só pode ser entendido como significando que, para efeitos do processo em que o facto tenha sido alegado, esse facto não pode ser considerado verdadeiro (ou seja, não pode ser considerado que o contrato tenha sido celebrado). Disto decorre naturalmente que a regra a cuja previsão é subsumível o facto não provado não pode ser aplicada no caso concreto.

Perante a produção de prova de um facto, é de admitir que, em termos de decisões negativas, o tribunal aprecie essa prova concluindo o seguinte:

-- O facto não está provado, isto é, "não está provado que"; por exemplo: o tribunal decide que o pagamento alegado pelo réu não está provado (decisão negativa "negativa");

-- Está provado que o facto não é verdadeiro, ou seja, "está provado que não"; por exemplo: o tribunal considera que está provado que não houve nenhum pagamento pelo réu (decisão negativa "positiva");.embora mais raro -- também porque mais difícil -- do que o "não provado que", o "está provado que não" verifica-se sempre que esteja provado um facto (por exemplo, estadia em Lisboa numa certa data) incompatível com o facto a provar (estadia no Porto na mesma data).

No entanto, para efeitos de decisão da causa a "não prova de que" não pode deixar de ser equivalente à "prova de que não". Por exemplo: o autor alega que emprestou uma certa quantia ao réu; a "não prova de que" tenha havido empréstimo tem de ser equivalente, para efeitos de pronúncia do tribunal, à "prova de que não" houve empréstimo. Dito de outra forma: para efeitos de pronúncia do tribunal sobre o mérito da causa, a decisão negativa "negativa" não pode deixar de produzir as mesmas consequências da decisão negativa "positiva".

A não se entender assim, então haveria que concluir que o tribunal só poderia tomar como base da sua apreciação da causa a não verdade de um facto se estivesse provado que o facto não é verdadeiro, ou seja, se estivesse "provado que não". Ora é claro que, para que o tribunal decida com base na não verdade do facto, é suficiente que o facto não esteja provado ("não prova de que"). Embora correspondam a enunciados linguísticos (bem) distintos, a "não prova de que" e a "prova de que não" valem o mesmo para efeitos da inadmissibilidade da utilização do facto probando como fundamento da apreciação da causa.

Basta atentar no regime do non liquet para se perceber que tem de ser assim. O argumento é o seguinte:

-- Se o tribunal tiver dúvidas sobre se o facto a provar é verdadeiro, esse tribunal ultrapassa o non liquet considerando (ou ficcionando) verdadeiro o facto contrário (cf. art. 414.º CPC), assim, se o tribunal, depois da produção da prova, tiver dúvidas sobre o facto x (isto é, não formar nenhuma convicção nem sobre a verdade, nem sobre a falsidade do facto x), o tribunal decide com base no facto não x (ou como se o facto não x fosse verdadeiro);

-- Logo, se o tribunal dá como não provado um facto (ou seja, forma a convicção de que o facto não está provado e, por isso, não é verdadeiro), isso só pode significar que o tribunal tem de decidir a causa como se o facto contrário fosse verdadeiro; ou seja, se o tribunal considera não provado o facto y, o tribunal tem de decidir a acção com base no facto não y (ou como se o facto não y fosse verdadeiro).

Se assim não se entendesse, chegar-se-ia à conclusão de que, se o tribunal tem dúvidas sobre o facto x, tem de decidir com base no facto não x, mas se o facto x não ficar provado, o tribunal não tem de decidir com base no facto não x. Não pode ser assim: a dúvida sobre a verdade de um facto (x) não pode ter uma consequência mais forte (não x) do que a decisão de não prova de um facto (x). Dito de outra forma: a convicção do tribunal sobre a não prova de um facto -- isto é, a decisão de não prova de um facto -- não pode produzir uma consequência menos forte do que a dúvida do tribunal sobre a verdade desse facto -- ou seja, do que a ausência de decisão sobre a prova desse facto. A convicção de que o facto não é verdadeiro nunca pode produzir um efeito menos forte do que dúvidas sobre a verdade ou não verdade desse mesmo facto. 

Sendo assim, há que concluir que, se o STJ entende que a doação alegada pelo Réu não está provada, só pode decidir a causa como se essa doação não se tivesse verificado. Em concreto, perante a não prova da doação, o tribunal não pode admitir que a doação afinal pode ter ocorrido e que tenha sido com base nela que se procedeu à transferência de uma certa quantia para uma conta bancária do Réu..

III. a) Na parte final do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] constituindo pressuposto essencial da sonegação de bens a sua ocultação dolosa por parte do herdeiro, a actuação que os factos revelam não permite tal qualificação.

O que ressalta da matéria de facto é apenas uma situação de dúvida emergente do confronto de duas posições antagónicas, com afirmações de cada uma das partes que não ultrapassaram o plano da verosimilhança mas que não foram suficientes para a prevalência de qualquer das teses.

Assim, constituindo a sonegação o pressuposto do reconhecimento do direito reclamado pela A., a dúvida quanto à verificação dos factos integrantes (ocultação de bens e actuação dolosa) deve ser resolvida contra a parte que invoca o direito."

Se o que acima se afirmou está correcto, então não se pode dizer que, quanto à doação alegada pelo Réu, haja uma qualquer "verosimilhança": o que se deve concluir é que, perante a não prova da doação, esta doação não ocorreu. Assim, não tendo sido demonstrada a doação que, na perspectiva do Réu, justifica o depósito da quantia na sua conta, havia fundamento suficiente, pelo menos nesta base, para concluir pela sonegação dessa quantia. Afinal, não estando provada a doação, não está provado nenhum título de aquisição dessa quantia.

b) Note-se que isto não quer dizer que, apesar de se dever ter considerado que a doação alegada pelo Réu não ocorreu, não fosse de manter a decisão de improcedência proferida pelo STJ. Esta decisão sempre seria de proferir se o STJ considerasse -- como parece que efectivamente considerou -- que os factos alegados e provados pela Autora não eram suficientes para assegurar a procedência da acção. 

Se esta era efectivamente a posição do STJ, então talvez tivesse sido melhor ter seguido uma outra metodologia na elaboração do acórdão. Em vez de ter começado por analisar a matéria da doação e depois concluir que, afinal, os factos alegados e provados pela Autora não eram suficientes para o proferimento de uma decisão de procedência, talvez tivesse sido melhor começar por analisar a suficiência destes factos para a procedência da causa. A conclusão de que esta suficiência não se verificava teria prejudicado a necessidade de analisar a problemática da prova da doação alegada pelo Réu, pelo menos com o pormenor que consta do acórdão.

MTS