"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/09/2016

Jurisprudência (417)



Competência material; sigilo bancário;levantamento


1. O sumário de RL 10/3/2016 (178/15.9T8AMR.G1) é o seguinte:
 
I - Em rigor, o pedido da administração tributária de lhe ser conferido o acesso à informação de contribuinte protegida pelo sigilo bancário, não configura e traduz por si só um litígio emergente de relação jurídica tributária, não se justificando portanto subsumir de imediato tal matéria à previsão do art.º 4º, nº 1, alínea a), do ETAF;
 
II - Além do referido em I, acresce ainda que, com pertinência com tal matéria, é o artº 63º, nº 6, da Lei Geral Tributária, expresso em atribuir, em caso de oposição do contribuinte, ao tribunal da comarca competente a competência para autorizar à administração tributária o acesso à informação de contribuinte protegida pelo sigilo bancário.
 
III - Perante o referido em I e II, são assim, manifestamente, os tribunais judiciais os competentes para apreciar e decidir a acção especial de suprimento de consentimento proposta pela administração tributária contra contribuinte.
 
2. Da fundamentação do acórdão extrai-se a seguinte parte:

"Como é consabido, a competência dos tribunais, na ordem jurídica interna, reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, e fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (cfr. artºs 37º e 38º, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – e artº 60º, do Cód. de Processo Civil).

Por outro lado, como é entendimento uniforme da melhor doutrina
[...] e jurisprudência, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos (causa petendi) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição (quid disputatum ou quid dedidendum), que cabe determinar/aferir da competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer, sendo para tanto irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão. [...] 
 
Depois, nos termos do artigo 40º, nº1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, mister é outrossim não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual (os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional), sendo que ela - a competência - fixa-se, como vimos já, no momento em que a acção se propõe.
[...]
 
Ou seja, e em sede de síntese conclusiva
[...], sendo em atenção à matéria da lide, ao acto jurídico ou facto jurídico de que a acção emerge, que importará aferir se deve a acção correr termos pelo tribunal comum ou judicial [...], ou, antes, por um tribunal especial, e sendo o primeiro o tribunal regra [porque goza de competência não discriminada, incumbindo-lhe apreciar e decidir todas as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial, ou outra ordem jurisdicional], então a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes [não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência de algum tribunal especial, cai ela inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial].
 
Isto dito, e importando in casu aferir da competência material dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal (em razão do sentido da decisão apelada), recorda-se que, do artº 212º, nº 3, da CRP, e do artº 1º, nº1, do ETAF
[...], este último já com a redacção introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02/10, resulta, respectivamente, que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” , e que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto“.
 
Por outra banda, e agora no respectivo artº 4º, identifica o ETAF, em diversas alíneas, diversos tipos de litígios cuja apreciação, em razão do respectivo objecto, incumbe/compete forçosamente aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, sendo que, de entre eles, salientam-se aqueles [porque referidas pelo tribunal a quo na decisão apelada] que se prendem, v.g. com:
 
- questões relativas à “Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais“ (nº1, alínea a), do artº 4º).
 
Finalmente, com pertinência outrossim para a resolução do thema decidendum recorda-se que, a Lei Geral Tributária (LGT)
[...], no seu artº 63º, sob a epígrafe de Inspecção, reza que:

1 - Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente: (…)
 
d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas; (…)
 
2 - O acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável. (Redacção da Lei n.º 37/2010, de 2 de Setembro)

3 - Sem prejuízo do número anterior, o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário e pelo sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro faz-se nos termos previstos nos artigos 63.º-A, 63.º-B e 63.º-C. (Redacção do artigo 220.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro) (…)

5 - A falta de cooperação na realização das diligências previstas no n.º 1 só será legítima quando as mesmas impliquem: (…)
 
b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever de sigilo legalmente regulado, com excepção do segredo bancário e do sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro, realizada nos termos do n.º 3; (Redacção do artigo 220.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro) (…)
 
6 - Em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária. (Redacção da Lei n.º 37/2010, de 2 de Setembro - Anterior n.º 5) (…).”
 
Apetrechados das considerações e contribuições normativas acabadas de aduzir/indicar, temos assim que, para que a presente acção – em sede de apreciação/decisão - devesse necessariamente incumbir à jurisdição administrativa e fiscal, forçoso é que, à partida, em causa e em apreciação na presente acção estivesse uma questão emergente de uma relação jurídica fiscal, que não apenas, como prima facie o considera o tribunal a quo, uma relação de cariz tributário.
 
Ora, neste conspecto, recorda-se que uma relação jurídica fiscal, no essencial, corresponde e estrutura-se nos mesmos moldes de um vínculo obrigacional – a obrigação fiscal – , por força do qual um contribuinte fica sujeito ao dever de efectuar uma prestação pecuniária do Estado, prestação que esta última entidade (como credor) tem o direito de exigir, ou seja, de um lado, temos um direito de crédito do Estado, e , do outro, uma obrigação do contribuinte/devedor.
[Cfr. José Manuel M. Cardoso da Costa, in “Curso de Direito Fiscal”, Coimbra, 1970, página 240]
 
Porém, para Cardoso da Costa, a posição jurídica do sujeito passivo da obrigação tributária não se esgota na sua sujeição ao cumprimento da mesma, antes confere-lhe o direito a que “o exercício dos poderes fiscais decorra de acordo com as normas jurídicas que o disciplinam, ou seja, lícito é exigir que os órgãos da Administração actuem conformemente à lei, conferindo-lhes a alei e para o efeito “adequados meios da defesa da legalidade, quer de carácter contencioso, quer de carácter gracioso“
[Cfr. José Manuel M. Cardoso da Costa, ibidem.]
 
Em rigor, a obrigação fiscal é, tal como a obrigação civil, um vínculo jurídico através do qual alguém fica adstrito a entregar a outrem uma prestação, mas vínculo cujo regime jurídico apresenta porém certos caracteres que o diferenciam dos vigentes no direito civil, e isto porque, se as obrigações civis estão juridicamente inseridas num quadro dominado pelos interesses privados, já a obrigação fiscal tem a sua origem e conteúdo definidos na lei, qual “norma geral por que, através do Estado, que a representa, a vontade colectiva se manifesta”, e tendo por fonte a conjugação da incidência de imposto estabelecida na previsão legal com a realidade factual nela prevista
[Cfr. António Braz Teixeira, in “A Relação Jurídica Fiscal”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Centro de Estudos Fiscais da DGCI, nº 4, 1962, págs. 29 e segs.].
 
Ademais, se a obrigação civil tem a natureza de obrigação de direito privado – “inter partes” -, a “obrigação fiscal é uma obrigação de carácter misto, tendo uma origem predominante no Direito Público do Estado enquanto impõe o condicionalismo tributário e sujeita a acção para a sua exigência concreta ao domínio do Direito Administrativo“ [
Cfr. Vítor António Duarte Faveiro, in “Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, I Volume, Coimbra Editora, 1984, pág. 375/376].

Configurada a relação jurídico fiscal nos termos acabados de efectuar, temos para nós que, prima facie, difícil não é considerar que a presente acção, recorda-se, de suprimento de consentimento, não emerge ou entronca de todo numa qualquer relação jurídica, e muito menos de natureza fiscal, porque para todos os efeitos não existe a mesma, ainda.
 
Na verdade, como bem se chama à atenção em douto Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa
[Cfr. Ac. de 21/9/2006, proc. nº 11186/2005-8, sendo Relator SALAZAR CASANOVA, e in www.dgsi.pt]
“o facto de a administração fiscal estar interessada no levantamento do sigilo bancário para aceder às contas bancárias do recorrido tendo em vista averiguar a sua situação tributária não envolve nenhum litígio, que não existe, emergente de relação tributária do recorrente face à administração fiscal“.

Existindo, é certo, diz-se no citado Ac., um litígio entre a administração fiscal e o recorrido, porque a uma pretensão da primeira opõe o segundo uma resistência/oposição, não tem porém tal litígio nada que ver com as obrigações fiscais do recorrente emergentes da sua relação tributária com o Estado, mas sim com o direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário que é, em regra, oponível a todas as entidades.

No essencial, o que está em causa na presente acção, é, tão só, um trabalho cognitivo de natureza jurisdicional, é certo, mas que não diverge em muito – praticamente nada – daquele que é amiúde exigido aos tribunais judiciais em razão v.g. do disposto no artºs. 417º, nº4, do CPC, e no artº 135º, nº 3, do CPP, procedendo as instâncias (ainda que tribunais superiores) à ponderação dos interesses em confronto, e decidindo-se, então, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante - nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida e a necessidade de protecção de concretos bens jurídicos -, ou seja, se no caso em apreço mais importante do que a salvaguarda do sigilo é um outro, superior e que justifica a sua derrogação.

Ora, sabendo-se que a ratio da competência em razão da matéria reside no princípio da especialização pelas reconhecidas vantagens de determinados sectores do Direito serem acometidos a órgãos jurisdicionais ajustados à especificidade das matérias e das normas, porque em sede da actividade cognitiva jurisdicional não é exigida ao tribunal no qual pende a acção quaisquer conhecimentos especiais decorrentes e aplicáveis a uma relação jurídica fiscal [o procedimento conducente à quebra ou compressão do segredo bancário não se situa no âmbito da relação jurídico-fiscal, respeitando antes aos direitos de personalidade do visado, ou direitos, liberdades e garantias
[Como o considera, v. g. o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 490/2011, de 24/10/2011, Processo n.º 784/09, 1.ª Secção, sendo Relator o Exmº Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira, no qual se refere, v.g., que o “suprimento de consentimento para levantamento do sigilo bancário não constitui verdadeiramente um litígio fiscal. Uma coisa é a relação jurídica tributária que o recorrente tem com o Estado; outra o pedido de autorização judicial formulado para aceder à sua situação bancária”], injustificada e dispensável se mostra a necessidade de a acção dever correr termos nos tribunais administrativos e fiscais.

Para além do exposto, ou seja, do facto de o thema decidendum da presente acção não integrar o Tatbestand do artº 4º, nº1, alínea a) do ETAF [o que por si só, e dado que a competência material dos tribunais judiciais é de natureza residual, sendo determinada de forma negativa, ou seja, uma causa é da competência dos tribunais judiciais se não for da competência de outra ordem jurisdicional, obrigava a decidir de forma diversa da do tribunal a quo – Cfr. artº 64º do CPC], in casu acresce ainda que, da Lei Geral Tributária (artº 63º, nº6) consta norma expressa que, expressis verbis, atribui ao tribunal da comarca competente a competência para decidir da autorização pretendida pela Ad.Fiscal.
 
Tal disposição legal, além de já por diversas vezes julgada constitucional pelo Tribunal Constitucional
[Cfr. v. g. o Ac. do Tribunal Constitucional nº 490/2011, de 24/10/2011, Processo n.º 784/09], desde logo porque integrar “uma dimensão puramente adjectiva, visando apenas regular a forma processual idónea para a Administração Fiscal obter o acesso aos dados cobertos pelo sigilo em caso de recusa de consentimento por parte do contribuinte”, e porque, não obstante poder interferir com o direito à reserva da vida privada, protegido pelo artigo 26.º da CRP, ainda assim deve considerar-se existir justificação bastante para a limitação do referido direito em nome dos interesses públicos prosseguidos, tais como a distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e o dever fundamental de pagar impostos.

E, convenhamos, tal disposição legal, porque precisa, peremptória e constitucional, concorde-se ou não com a mesma, forçoso é que deva ser cumprida (cfr. artº 8º, nº 2, do Código Civil), para tal não se justificando enveredar por entendimentos que, além de não disporem de fundamento legal irrefutável, são ao invés prima facie e SODR contra legem."
 
[MTS]