"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/09/2016

Jurisprudência (419)



Bem indiviso, penhora; venda;
direito de remição


1. O sumário de RP 21/4/2016 (1693/12.1T2AVR-D.P1) é o seguinte:

I - Nos termos do art. 743.º/2 do CPC, quando em execuções diversas forem penhorados todos os direitos sobre um bem indiviso, realiza-se uma única venda, sendo o bem vendido por inteiro, como se não fosse indiviso e as diversas execuções tivessem sido apensadas
.
II - Nessa situação, o direito de remição do familiar do executado tem por objecto a totalidade do bem vendido e não apenas o quinhão indiviso do executado no bem.
 
III - Esta solução nada tem de excessivo ou desproporcionado pois não apenas permite incrementar o produto da venda, em benefício de credor e devedor, como permite de imediato afastar a situação de indivisão que punha em risco a conservação do bem na família que o direito de remição visa proporcionar.
 
2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:

"O direito de remição encontra o seu fundamento legal no artigo 842.º do Código de Processo Civil. Segundo esta norma o cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes ou ascendentes do executado têm o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.
 
O direito de remição pode ser definido como o direito legal do familiar do devedor, em caso de venda coerciva de bens daquele, de se substituir ao adquirente dos bens da família que foram objecto dessa venda, pagando pelos bens o valor pelo qual eles haviam sido adjudicados ou vendidos a terceiros.
 
Alberto dos Reis, in Processo de execução, vol. 2.º, reimpressão, págs. 477 e 478, afirmava o seguinte: “O direito de remição é nitidamente um benefício de carácter familiar. Dá-se ao cônjuge do executado e aos descendentes e ascendentes deste o direito de adquirir para si os bens adjudicados ou vendidos, pelo preço da adjudicação ou da venda. Na sua actuação prática o direito de remição funciona como um direito de preferência: tanto por tanto os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários. A família prefere aos estranhos. Porque admitiu a lei esta preferência a favor da família? A razão é clara. Quis-se proteger o património familiar; quis-se evitar que os bens saíssem para fora da família. Quando se afirma que o direito de remição se comporta como um direito de preferência, não se quer significar que o direito de remição se confunda com o direito de preferência (…); direito de remição e direito de referência são noções e conceitos nitidamente diferenciados. O artigo 914.º vinca a distinção, declarando que o direito de remição prevalece sobre o direito de preferência. O efeito prático do exercício do direito de remição é igual ao do exercício do direito de preferência; mas os dois direitos têm natureza diversa, já pela base em que assentam, já pelo fim a que visam. Diversidade de fundamento: ao passo que o direito de preferência tem por base uma relação de carácter patrimonial, direito de remição tem por base uma relação de carácter familiar. No direito de preferência a razão da titularidade é o condomínio (Cód. Civil, art. …), ou o desdobramento da propriedade (Cód. Civil, art. …); no direito de remição a razão da titularidade é o vínculo familiar criado pelo casamento ou pelo parentesco (a qualidade de cônjuge, de descendente ou de ascendente). Diversidade de fim: enquanto o direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou e favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita, o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas”.

A questão que aqui cabe decidir consiste em saber se o familiar pode ser admitido a exercer o direito de remição apenas em relação à fracção de metade indivisa do bem pertencente à devedora sua mãe ou, uma vez que este foi vendido numa única venda em virtude de a outra metade indivisa do mesmo pertencente a terceiro ter sido igualmente objecto de apreensão e venda coerciva, o direito de remir terá de ser exercido sobre a totalidade do bem.

Em princípio, pela satisfação das obrigações do devedor respondem todos os bens que integram o património do devedor mas só os bens deste; os bens de terceiros apenas respondem nos casos excepcionais em que sobre eles incida direito real de garantia do crédito ou em que sobre eles o credor haja obtido a procedência de acção de impugnação pauliana.

Assim, podem ser objecto de penhora ou apreensão para a execução coerciva e posterior venda todos os bens do devedor e só os bens do devedor; se o bem for indiviso e o devedor apenas for titular de uma quota indivisa nesse bem, apenas essa quota pode ser penhorada ou apreendida e depois vendida. Consequentemente, nessa situação, na venda ou adjudicação apenas se transmite para o adquirente a quota indivisa do devedor e por força da remição que venha a ser exercida o familiar apenas adquire, tanto por tanto, a mesma quota.

Quando o artigo 842.º do Código de Processo Civil prevê que o familiar possa remir num bem adjudicado ou vendido pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda, não está a pretender estabelecer que esse direito tem sempre como objecto a totalidade do bem.

O direito de remição não pode exceder a medida do direito do executado que foi objecto da penhora ou apreensão e venda: se o objecto deste direito é a propriedade plena e exclusiva do bem, é essa propriedade que o familiar por obter para si, substituindo-se ao adquirente mediante o pagamento do preço que este pagou; mas se o objecto deste direito é apenas uma fracção indivisa do bem, foi só isso que foi adjudicado e vendido ao terceiro e, como tal, é a fracção indivisa que o familiar pode adquirir para si através do direito de remição.
 Esta situação altera-se em virtude do disposto no artigo 743.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Segundo este preceito legal, quando, em execuções diversas, sejam penhorados todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efectuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido. O que daqui resulta é que se antes da venda do direito sobre um bem indiviso vierem a ser penhorados os demais direitos sobre o bem, de modo a que fique penhorada a totalidade do bem, far-se-á uma única venda em vez de se fazerem tantas vendas quantas as fracções objecto das diversas penhoras.
 
A afirmação normativa que se fará uma única venda não quer dizer apenas que a venda dos diversos direitos sobre o bem indiviso penhorados se fará na mesma ocasião, no mesmo acto, para que os interessados possam logo aí manifestar a sua intenção de adquirirem todos os direitos ou apenas parte deles. Essa afirmação quer antes significar que o bem é vendido por inteiro, em resultado da aglutinação da totalidade dos direitos penhorados para efeitos da sua venda em conjunto, como se o bem não fosse indiviso e os vários processos executivos tivessem sido apensados.
 
Esta solução tem diversas vantagens que constituem o fim social da norma. Desde logo, a vantagem de permitir que em resultado da venda se obtenha o maior produto possível uma vez que, como é razoável que aconteça, o valor económico da totalidade e exclusividade dos direitos sobre o bem supera a mera soma dos valores económicos dos vários direitos sobre o bem, no caso de este ser indiviso, ao eliminar a indisponibilidade parcial que advém da indivisão e da existência de outros contitulares.
 
Esta vantagem constitui um benefício para os credores que conseguem maior produto para satisfação dos seus créditos, mas também para o próprio devedor que vê o seu património mais rentabilizado, necessitando por isso de menos património para satisfazer o direito dos credores, sendo certo que o devedor não tem o direito jurídico a que os credores vejam os seus créditos insatisfeitos, tem antes a obrigação jurídica de cumprir as suas obrigações, embora possa ter o interesse prático em evitar a perda de património.
 
A solução tem ainda a vantagem de eliminar a situação de indivisão e, dessa forma, contribuir para a paz jurídica e social ao impedir ou eliminar os conflitos que são próprios da situação de indivisão e que resultam das normais divergências entre os vários titulares do bem indiviso quanto ao aproveitamento, administração e/ou disposição do bem.
 
Sendo assim, impondo o n.º 2 do artigo 743.º do Código de Processo Civil que no caso de venda de bem indiviso em que estejam penhorados todos os direitos sobre o bem, a venda seja uma única, isto é, que se vendam em simultâneo todos os direitos como se o bem não fosse indiviso, repartindo-se depois o produto da venda pelos diversos processos onde foi feita a penhora na proporção de cada direito penhorado, tem de se entender que o familiar do executado que queira exercer o direito de remição terá de o fazer em relação a todo o bem, à totalidade dos direitos sobre o bem indiviso.
 
Com efeito, independentemente de possuir uma natureza e regime próprios, o direito de remição é um direito de preferência especial ou qualificado, no sentido em que funciona como uma preferência: o seu titular goza do direito potestativo de se fazer substituir ao adquirente do bem, assumindo a posição de adquirente em igualdade de condições e circunstâncias que para aquele resultavam da venda e suportando o mesmo encargo que ele iria ter de suportar para adquirir o bem.
 
O exercício do direito de remissão [sic] não pode importar uma substituição parcial, uma substituição pelo familiar apenas em parte do direito transmitida na venda. Desde logo, porque não foi nesse pressuposto que o comprador se apresentou à venda e se propôs adquirir o bem. A sua intenção era a de adquirir o direito que foi posto à venda e o valor que ofereceu e que foi aceite correspondia ao montante que se dispôs a pagar pela aquisição da totalidade desse direito, nada garantindo que se ele soubesse que afinal iria adquirir apenas parte do direito estivesse sequer interessado na aquisição ou disposto a oferecer um valor proporcional à fracção do direito.
 
A circunstância de o adquirente vir a ser preterido na aquisição do bem em resultado do exercício do direito de remição não representa qualquer prejuízo para o adquirente uma vez que este acaba por não despender o preço da coisa, ficando na mesma situação em que estaria se não se tivesse apresentado à venda. Mas já geraria prejuízo para o adquirente obrigá-lo, à revelia da sua vontade, a ficar apenas titular de parte indivisa do bem e numa situação de compropriedade, sem lhe permitir sequer reponderar o preço do bem que estava disposto a pagar pela totalidade do mesmo.
 
Esta solução é ainda vantajosa para o próprio familiar que exerça o direito de remição, na medida em que conduz à imediata extinção da indivisão por efeito da venda executiva. Se a indivisão subsistisse apesar da remição, o familiar confrontava-se com o outro contitular do bem, o qual podia a qualquer altura instaurar uma acção de divisão de coisa comum, havendo o risco de o familiar, por efeito dessa acção, perder o direito que com a remição pretendeu manter na família ou para evitar essa perda ter de pagar um valor superior ao valor pelo qual tinha remido o direito do familiar executado.
 
É precisamente esta situação que nos conduz a considerar adequada e não desproporcionada a solução do artigo 743.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e o seu reflexo sobre o direito de remição do artigo 842.º do mesmo diploma.
 
Sendo o direito indiviso, existe sempre a possibilidade irrenunciável de qualquer dos contitulares requerer judicialmente a divisão da coisa comum, pondo termo à indivisão e operando ou a concentração do bem num dos seus titulares, recebendo os outros o valor do seu direito, ou a sua transmissão para terceiro, repartindo os titulares indivisos entre si o produto da transmissão. Nessa situação, portanto, o exercício do direito de remição não era suficiente para assegurar que o direito sobre o bem objecto da execução coerciva se manteria na família. Daí que também não se possa afirmar que qualquer agravamento das condições em que o direito de remição pode ser exercido (designadamente ao obrigar à remição sobre mais direitos sobre o bem que os titulados pelo familiar executado) tem o efeito de impedir o fim social do direito de remição, na medida em que nessa situação este já não garantia a obtenção daquele objectivo.
 
Não se descura que ao ter de adquirir mais que aquilo que pertencia ao executado, o seu familiar terá de despender uma quantia superior, o que pode agravar de facto a sua situação. Todavia, esse esforço acrescido é a contrapartida da aquisição de mais direitos, não havendo desproporção entre o que o familiar terá de pagar e aquilo que irá adquirir (com a vantagem de não ter de se submeter à disputa com os demais titulares indivisos), pelo que daí não advém qualquer tratamento desigual ou desproporcionado.
 
Por fim, refira-se que o direito de remição pode ser exercido independentemente da natureza do bem, bastando para o efeito a relação familiar entre o executado e a pessoa que se apresenta a exercer o direito, mesmo que o bem não possua qualquer relevo para o funcionamento da família, para a sua estabilidade ou consistência. Por isso se trata de um direito com consagração legal puramente ordinária que muito embora tenha na génese a preocupação da defesa das ligações das pessoas de uma família ao respectivo património familiar não se confunde nem faz parte da essência dos direitos fundamentais relativo à vida familiar. Tanto é assim que a lei não permite ao familiar remir o bem pelo seu “justo valor” ou pelo seu “valor de mercado”, mas sim pelo “produto da venda”, num sinal claro de que primeiramente se defende o direito dos credores à satisfação do seu crédito e só depois se tutelam, na medida do razoável, os interesses dos familiares do executado.
 
Em suma, no caso concreto, uma vez que o familiar da insolvente não pretende exercer o direito de remição sobre a totalidade do bem indiviso vendido como um todo mas apenas sobre o quinhão indiviso da sua mãe nesse bem, o seu requerimento foi correctamente indeferido, decisão que cumpre manter e que terá como consequência a devolução ao requerente do valor que depositou para exercer o direito indeferido."
 
[MTS]