"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/09/2016

Jurisprudência (421)




Competência material;
execução de coima


 
1. O sumário de RE 26/4/2016 (177/14.8TARMR.E1) é o seguinte:

I - A atribuição de competência material do tribunal afere-se pela natureza da matéria em causa.

II - Perante a contextura normativa, os processos de execução por coima transcendem os estritos quadros dos processos de execução de natureza cível, contemplados no art.º 129.º da LOSJ. Com efeito, o regime procedimental não tem a virtualidade de subverter a natureza das questões substantivas subjacentes ao título executivo, e que ainda podem vir a ser suscitadas em sede de execução. É, aliás, a nosso ver, essa a razão nuclear das ressalvas feitas no n.º 2 do artigo 129.º da LOSJ e a que melhor se enquadra numa ideia de coerência do sistema judicial.

III - A atribuição de competência material às secções de competência genérica da instância local respectiva, para as execuções por coima, é o que mais coerente se apresenta com a consagração, no art.º 131.º da LOSJ, da competência das “secções de competência genérica da instância local (…) para executar as decisões por si proferidas relativas a custas, multas ou indemnizações previstas na lei processual aplicável” e com o disposto nos artigos 89.º, n.º1, e 61.º do RGCO.

IV - O Tribunal materialmente competente para a execução de coima aplicada por entidade administrativa é o Tribunal para onde teria cabido competência para a impugnação judicial dessa decisão.
 

2. Da fundamentação do acórdão retira-se o seguinte trecho:

"Uma única questão, em breve síntese, é suscitada no presente recurso, a de saber qual é o tribunal/secção competente para tramitar a execução para cobrança de uma coima aplicada por uma autoridade administrativa (se a secção de competência genérica da instância local, ou se, pelo contrário, a secção de execução). [...]

A questão, ora posta ao conhecimento deste tribunal, já foi suficientemente debatida no âmbito de vários recursos, com o mesmo objeto, aqui julgados, um dos quais subscrito pelo ora relator, enquanto adjunto (Processo 892/07.2TAFAR.E1 – relator António João Latas, acessível in www.dgsi.pt), pelo que não vemos objetivas razões para não secundar o entendimento dominante no sentido de que a competência para tramitar a execução para cobrança de uma coima (e das custas respetivas) cabe, no caso, à secção de competência genérica da instância local de Rio Maior e não às secções de execução. [...]

Como se disse no referido acórdão, embora referindo-se a uma secção criminal, pois aquela instância local de competência genérica estava desdobrada em secções cíveis e secções criminais, que aqui se aplica, mutatis mutandis:

“2.1. Foi objeto de acórdãos recentes deste tribunal da Relação a decisão de questão de competência em razão da matéria em tudo idêntica à que é objeto do presente recurso, os quais têm decidido unanimemente que o tribunal competente para a execução por coima e custas aplicadas por decisão administrativa, é o tribunal de competência especializada em matéria penal e não as Secções de execução de Instância central ou local, contrariamente ao entendimento expresso nas decisões judiciais de 1ª Instância que deram origem a recursos interpostos pelo MP, tal como se verifica no caso presente.

Assim, limitamo-nos a enunciar as principais razões pelas quais sufragamos aquele mesmo entendimento, remetendo para uma análise e fundamentação mais ampla da questão para o Ac RE proferido nesta mesma data no processo com o NUIPC 1255/11.0TAFAR.E1, relator, Alberto Borges.

2.2. Em nosso ver, a competência das secções criminais da Instância local ou central para conhecer da execução por coima aplicada por entidade administrativa resulta essencialmente da remissão do art. 89º nº1 para o art. 61º, do Regime das Contraordenações (RGCO) aprovado pelo Dec-lei 433/82, com as alterações subsequentes, normas estas que não foram consideradas pelo despacho recorrido.

Na verdade, o art. 89º nº1 do RGCO determina que a execução da coima por falta de pagamento será promovida perante o tribunal competente nos termos do art. 61º do RGCO, ou seja, perante o tribunal materialmente competente para conhecer do recurso de impugnação judicial em cuja área territorial se tiver consumado a infração. Ora, mantendo no essencial a opção legislativa anterior, o art. 130º nº1 e) da atual Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) aprovada pela Lei 62/2013 de 26 de agosto, atribui competência material-regra para “Julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação” às secções criminais das instâncias locais, “salvo os recursos expressamente atribuídos a secções de competência especializada de instância central ou a tribunal de competência territorial alargada”, sem prejuízo, ainda, da competência atribuída às secções de pequena criminalidade pela al. b) do nº3 do mesmo art. 130º.

Sendo estes tribunais, com competência em matéria criminal, os competentes para julgar os recursos de contraordenações por disposição expressa e direta da LOSJ em conformidade, aliás, com a natureza da coima, que constitui sanção de direito público sancionatório, são eles igualmente competentes para a execução de coima por remissão expressa do art. 89.º nº1 do RGCO, sem que possa entender-se que a competência atribuída aos tribunais pelas normas especiais ora citadas, foi derrogada pelo artigo 129.º da LOSJ ao dispor genericamente que “Compete às secções de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil”. 


Assim e tendo ainda em conta os demais argumentos corroboratórios expendidos, entre outros, no Ac RE supracitado, a competência para a execução da coima aplicada por decisão administrativa pertence às secções criminais que teriam competência para julgar os respetivos recursos de impugnação judicial, tal como entendimento expresso no recurso do MP.

Deste modo e considerando ainda que nos termos do artigo 38º da LOSJ a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito ocorridas posteriormente (com as ressalvas ali explicitadas), mantem-se a competência da secção criminal da instância local de (…) para prosseguir com a execução pelas custas aplicadas pela autoridade administrativa.

2.3. Por último, sempre se diga, no que respeita aos efeitos da declaração de incompetência material por parte de tribunal criminal, que esta incompetência, integrando a nulidade insanável de conhecimento oficioso prevista na al. e) do art. 119.º do CPP, não teria como efeito a absolvição da instância mas sim a remessa do processo para outro tribunal por disposição expressa do art. 33º CPP, solução já seguida no CPP de 1929, que não obstante incluir a incompetência do juízo entre as exceções processuais como tal catalogadas no art. 138º do CPP, tratava-a como verdadeiro pressuposto processual negativo ao prever no art. 145º a remessa do processo para o tribunal competente como efeito da declaração de incompetência.”


No mesmo sentido, o acórdão desta Relação de 19-11-2015 (processo 2720/09.5TAFAR.E1- relator João Amaro), onde se disse, nomeadamente, o seguinte:

“Analisando estes textos legais, verifica-se que a competência das “secções de execução”, delimitada no transcrito artigo 129º da LOSJ, é reservada, por regra, ao âmbito dos processos de execução de natureza cível (nº 1 do preceito).

O nº 2 do citado artigo 129º vem em reforço dessa mesma ideia, ao tratar das exclusões à aludida “regra”, clarificando, na sua parte final, a exclusão referente às execuções de sentenças proferidas por secção criminal que, nos termos da lei processual penal, não devam correr perante uma secção cível.

Por seu lado, a competência da instância local está definida no artigo 130.º da LOSJ, de uma forma que, obviamente, abrange todas a matérias residuais (competindo-lhe, por conseguinte, tramitar todas as execuções que não corram perante as “secções de execução”).

Perante um quadro legal assim delineado, é patente a relevância, para efeitos de fixar a competência em análise, da natureza a atribuir à execução por coima (se cível ou se criminal).

Ora, a nosso ver, a execução para cobrança de uma coima aplicada por autoridade administrativa não possui, manifestamente, natureza de “execução cível” (não é um meio de cobrança de uma dívida pecuniária, não pode ser vista apenas na sua vertente patrimonial).

Na verdade, a coima é uma sanção (tem caráter punitivo), decorre da prática de uma contraordenação (de uma conduta típica, ilícita e censurável), sendo a execução por coima, no fundo, um meio coercivo de cumprimento de tal sanção.

Veja-se, a propósito, que a coima é passível, desde que a lei o preveja (e pode prever), de ser “total ou parcialmente substituída por dias de trabalho…”, quando o tribunal “concluir que esta forma de cumprimento se adequa à gravidade da contraordenação e às circunstâncias do caso” (artigo 89-A do RGCO).

Atente-se também que, depois de instaurada a execução por coima, podem suscitar-se questões como a amnistia da infração ou a prescrição da coima, questões que, como se nos afigura evidente, possuem natureza contraordenacional, para as quais as secções de execução não estão vocacionadas nem direcionadas.

Em suma: a execução por coima não tem natureza cível, nem faz qualquer sentido, com o devido respeito, equiparar a execução para cobrança coerciva de uma coima a uma execução de natureza cível.

Por outro lado, preceitua o artigo 89º, nºs 1 e 2, do RGCO (norma não derrogada pela LOSJ) que a execução por não pagamento da coima “será promovida perante o tribunal competente, segundo o artigo 61º”, “aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa”.

Ora, o tribunal competente para conhecer da impugnação da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima é o tribunal criminal, pelo que, também por aqui, não sendo paga a coima, a respetiva execução terá de ser promovida perante o tribunal criminal (o tribunal competente para a decisão da impugnação).

E esta é até, perante a natureza da matéria em causa, a única solução harmoniosa, pois que, e repete-se o acima dito, na execução por coima podem, eventualmente, suscitar-se questões relacionadas com a amnistia da infração, ou como a prescrição da coima, etc..

Face a todo o predito, e com o devido respeito por diferente opinião, não faz qualquer sentido, nem tem apoio legal, entender-se que as secções de execução são competentes para a execução para cobrança coerciva de uma coima aplicada por uma autoridade administrativa em processo de contraordenação. (…)”
 


[MTS]