"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/10/2016

Acções de jactância: acabaram-se!



1. De acordo com o recente Ac. STA 4/2016, de 30/9, "na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos artigos 9.º, alínea a), e 10.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro [Lei da Nacionalidade] na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional.". Isto é: segundo a orientação definida no acórdão de uniformização, cabe ao autor da acção -- que é o Ministério Público -- a prova da inexistência da ligação do requerente da nacionalidade portuguesa com a comunidade nacional.

O enquadramento legal é o seguinte:

-- O art. 9.º, n.º 1, LN estabelece que constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a não comprovação, pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional;


-- O art. 10.º, n.º 1, LN dispõe que a oposição deve ser deduzida pelo Ministério Público. 

2. A importância prática e dogmática do acórdão uniformizador reside em que, através dele, se ultrapassa na ordem jurídica portuguesa a admissibilidade das acções de jactância, isto é, das acções em que alguém era provocado a provar em juízo a não verdade de uma afirmação realizada por outro sujeito. Estas acções já eram conhecidas no direito romano através da provocatio ex lege dimararii e da provocatio ex lege si contendat (o que se discute é se estas situações eram apenas excepcionais) e generalizaram-se durante a época do processo comum (Provocationsprozesse)).

O acórdão torna claro que, apesar de o Ministério Público propor uma acção de apreciação negativa (destinada a demonstrar a inexistência de uma ligação efectiva à comunidade nacional pelo requerente da nacionalidade portuguesa), é a esse demandante que incumbe a prova deste facto negativo. Em concreto: é ao Ministério Público que incumbe provar factos que demonstrem que o requerente da nacionalidade portuguesa não têm uma ligação efectiva à comunidade nacional, não cabendo a este requerente, perante a afirmação pelo Ministério Público de que o mesmo não tem essa ligação, a prova de que essa ligação realmente existe. Portanto, é ao Ministério Público que incumbe a prova do facto negativo (inexistência de ligação), e não ao requerente agora demandado que cabe a prova do facto positivo (existência de ligação).

A orientação perfilhada no acórdão de uniformização do STA também mostra a insustentabilidade da doutrina e da jurisprudência que extraem do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC a desnecessidade da prova pelo autor de uma acção de apreciação negativa do facto do qual se retira que uma situação jurídica não existe (ou já não existe). O que o art. 343.º, n.º 1, CC estabelece é que, se, numa acção de apreciação negativa, o réu invocar um facto constitutivo (isto é, se não se limitar a contestar o facto negativo invocado pelo autor), então cabe-lhe a prova deste facto.  

A doutrina do acórdão demonstra que do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC não se pode retirar a inexistência de um ónus da prova a cargo do autor da acção de apreciação negativa. Aliás, se assim não se entendesse, nem se perceberia muito bem qual o motivo pelo qual o autor tem o ónus de invocar, como causa de pedir, o facto negativo. Para se ser completamente coerente com a dispensa da prova do facto negativo pelo autor da acção de apreciação negativa, teria que se dispensar o ónus de alegação desse facto e voltar ao regime das acções de jactância medievais.

3. Em suma: o STA passou uma certidão de óbito às velhas acções de jactância. Que descansem em paz e que não haja tentativas de as ressuscitar é o que se pode desejar.

MTS