"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/10/2016

Jurisprudência (446)




Culpa do lesado; conhecimento oficioso;
condenação intra petitum


1. O sumário de RP 16/5/2016 (3053/14.0TBVNG.P1) é o seguinte:
 

I - Em virtude da culpa do lesado constituir matéria de conhecimento oficioso, não constitui nulidade de sentença por condenação além do pedido, a circunstância do tribunal concluir pela culpa exclusiva do lesante, não obstante os sucessores do lesado hajam afirmado na petição inicial que o seu antecessor teve um contributo de 30% para a eclosão do sinistro, desde que a condenação proferida na decisão final se contenha dentro do pedido global formulado pelos autores.

II - A maioridade de um descendente de beneficiário da segurança social, só por si, não obsta a que lhe seja paga pensão de sobrevivência pela Segurança Social.

III - A culpa do lesado não é um dos fatores que deva ser relevado na fixação da compensação pela perda do direito à vida nos termos conjugados do nº 4 do artigo 496º do Código Civil com o artigo 494º, do mesmo diploma legal, mas sim a culpa do agente.

IV - A sede própria de valoração da conduta do lesado é no quadro do disposto no nº 1, do artigo 570º do Código Civil, operando depois de fixada a compensação devida.

V - Sempre que a indemnização é fixada através da equidade, como sucede na fixação da compensação por danos não patrimoniais, não havendo constrangimentos na sua fixação decorrentes do montante global dos pedidos formulados, deve considerar-se que tal valor é actualizado. 

2. Da fundamentação do acórdão consta a seguinte passagem:

"Nos termos do disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 615 do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Esta previsão visa assegurar uma conformidade quantitativa e qualitativa entre aquilo que é pedido pelas partes e aquilo que é decidido pelo tribunal. É uma decorrência necessária do princípio do pedido (artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil), bem como do princípio do dispositivo, na vertente da conformação da sentença (artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Embora no domínio da responsabilidade por facto ilícito, ressalvados os casos de culpa presumida, incumba ao lesado a prova da culpa do autor da lesão (artigo 487º, nº 1, do Código Civil), “[q]uando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída” (artigo 570º, nº 1, do Código Civil). Por outro lado, “[à]quele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada” (artigo 572º do Código Civil).

As previsões legais que se acabam de citar permitem-nos concluir que a questão da culpa do lesado é matéria de conhecimento oficioso do tribunal [...] e, assim sendo, o juízo que o próprio lesado ou os seus sucessores façam sobre a medida da sua contribuição para a eclosão do sinistro, não vincula o tribunal. Por isso, não obstante a afirmação dos autores de que o seu falecido progenitor contribuiu para a eclosão do sinistro numa proporção de 30%, isso não vincula o tribunal, pelo que a decisão que afasta toda e qualquer contribuição do falecido para a ocorrência do acidente não constitui qualquer violação às regras da conformação do objeto do processo, desde que a condenação final se contenha dentro do pedido global deduzido pelos lesados, como sucede no caso dos autos."

3. O caso decidido pela RP é muito interessante: a RP (assim como a 1.ª instância) considerou que o condutor do veiculo era o único culpado no acidente, contrariando, assim, a alegação dos autores segundo a qual o próprio peão acidentado também tinha tido culpa no atropelamento. Isto é: a RP fundamentou a sua decisão numa situação mais favorável para os autores do que aquela que estes próprios alegaram na petição inicial.

A RP invoca, como justificação da sua decisão, o conhecimento oficioso da culpa do lesado (art. 570.º, n.º 1, CC), mostrando que esse conhecimento ex officio vale tanto na hipótese em que as partes não alegam essa culpa e o tribunal entende que ela se verificou (e em que, por isso, a decisão é "culpa do lesado"), como na situação em que as partes invocam aquela culpa e o tribunal considera que ela não ocorreu (e em que, por conseguinte, a decisão é "não culpa do lesado")

Não há nada a objectar a esta orientação da RP. O conhecimento oficioso pode funcionar tanto contra partem, como pro partem. Por exemplo: se a caducidade for de conhecimento oficioso (cf. art. 333.º, n.º 1, CC), o tribunal pode ir além da caducidade parcial invocada pelo réu e considerar a acção totalmente improcedente.

Interessante é verificar que o conhecimento oficioso pro partem funciona, em termos quantitativos, de forma diferente para o autor e para o réu:

-- Para o autor, o conhecimento oficioso está limitado pelo pedido formulado por essa parte; foi o que sucedeu no caso decidido pela RP, dado que o conhecimento oficioso da (não) culpa do lesado  não conduziu a uma condenação ultra petitum, mas antes a uma condenação intra petitum, embora com fundamentos diferentes daqueles que foram invocados pelos autores; quer dizer, para o autor, o conhecimento oficioso pode valer pro partem, mas intra petitum;

-- Para o réu, o conhecimento oficioso não está limitado pelo pedido (de defesa) formulado por essa parte; por exemplo: o réu alegou a nulidade parcial do contrato invocado pelo réu e pediu a sua absolvição parcial; dado que a nulidade é de conhecimento oficioso (cf. art. 286.º CC), nada impede que o tribunal, considerando que o contrato é totalmente nulo, absolva o réu da totalidade do pedido formulado pelo autor; isto é, para o réu, o conhecimento oficioso pode valer não só pro partem, mas também ultra petitum.

O problema enquadra-se no tema mais vasto das situações de desigualdade das partes em processo civil (pense-se, por exemplo, no ónus de concentração da defesa que vale para o réu e que não vale simetricamente para o ónus de alegação do autor). Certamente, um bom tema para uma investigação aprofundada.
    
MTS