"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/10/2016

Jurisprudência (448)


Responsabilidade civil do Estado; revogação prévia da decisão;
desconsideração da personalidade jurídica


1. O sumário de STJ 10/5/2016 (136/14.0TBNZR.C1.S1) é o seguinte:

I - Em Portugal, anteriormente à vigência da actual Lei Fundamental, a responsabilidade civil extracontratual do Estado era regulada pelo DL n.º 48 051, de 21-11-1967; o alargamento das funções do Estado, no campo social, económico e cultural tornou premente o enquadramento legal da responsabilidade civil extracontratual do Estado e outras entidades públicas. Rege, actualmente, a Lei n.º 67/2007, de 31-12, que aprovou, em anexo, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEE), diploma alterado pela Lei n.º 31/2008, de 17-07.

II - A Lei n.º 67/2007, de 31-12, inovou, conferindo aos lesados o direito a serem ressarcidos dos prejuízos causados no exercício da função jurisdicional, por acções ou omissões, regulando normativamente os casos, diríamos mais comuns, de erro judiciário e de prisão preventiva ilegal ou injustificada e de atraso na prolação de decisões judiciais.

III - A previsão legal não impõe a ressarcibilidade de qualquer erro cometido pelo julgador, seja por violação da lei, seja por errónea apreciação dos factos, antes exige um erro qualificado, “grosseiro”, indesculpável, ostensivo, causal de julgamento que evidencia uma solução jurídica manifestamente inconstitucional, ou ilegal ou injustificada, a todas as luzes indefensável, ilógica na apreciação dos factos, ou na subsunção jurídica, insustentável com base numa criteriosa avaliação exigível ao julgador.

IV - Para proclamar a existência de erro grosseiro não basta que um tribunal de recurso tenha revogado uma decisão para se considerar que tal decisão está errada, que o julgador da decisão recorrida cometeu um erro indesculpável, se, por exemplo, acolheu esta e não aqueloutra corrente doutrinária ou jurisprudencial não sufragada pelo Tribunal ad quem: Se assim fosse, os tribunais estariam pejados de pedidos de indemnização com base em alegados erros grosseiros.

V - O STJ tem, repetidamente, qualificado como erro grosseiro o erro indesculpável, aquele em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação, conhecimento e competência.

VI - Para lá do requisito erro grosseiro, de facto ou de direito, envolvendo este a decisão manifestamente inconstitucional, a Lei n.º 61/2007, exige no n.º 2 do art. 13.º, a prévia revogação pelo órgão jurisdicional competente da decisão que se considera danosa e que despoleta a ulterior acção de responsabilidade civil do Estado-juiz por actos da função jurisdicional: trata-se de um requisito que se prende com a jurisdictio da sentença e o instituto do caso julgado, como factores de estabilidade e segurança das decisões judiciais: por via de regra, essa estabilidade é assegurada pelo esgotamento das vias do recurso.

VII - No caso em apreço, peculiar nos seus contornos, a decisão da 1ª instância foi proferida em procedimento cautelar de arresto, decretado sem prévia audição dos requeridos, entre eles a ora autora, sendo que os requeridos, quiçá por razões de estratégia processual, não deduziram, em sede de oposição, o contraditório, como possibilita o art. 388.º, nº 1, b) do CPC, antes tendo apelado da decisão que a todos foi desfavorável.

VIII - A desconsideração da personalidade jurídica da ora autora e o arresto que sobre os seus bens foi decretado, não podem ser dissociados da apreciação perfunctória dos factos, sem contraditório, no contexto do procedimento cautelar e da sua especificidade.

IX - A desconsideração da personalidade jurídica, também designada por levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais, “disregard of legal entity”, tem, na sua base, o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, o instituto deve ser usado, se e quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios, dolosamente, utilizarem a autonomia societária para exercerem direitos de forma que violam os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída em conformidade com o princípio da especialidade, assim almejando um resultado contrário a uma recta actuação.

X - Nos casos de deliberada confusão patrimonial, bem como naqueles em que a sociedade e a sua autonomia jurídica são usadas/abusadas, com o propósito de camuflar actos lesivos dos sócios, o levantamento da personalidade jurídica societária conduz à imputação de tais actos aos sócios por eles responsáveis.

XI - A desconsideração da personalidade jurídica da aqui recorrente, decretada na 1ª instância, mas revogada na Relação, não constituiu evidência de erro grosseiro do ponto em que, estando em causa a interpretação e aplicação do instituto da desconsideração, tendo havido voluntária e dolosa confusão patrimonial dos negócios celebrados pelos 1.ºs. requeridos no procedimento cautelar e as sociedades que eles dominavam através de um “testa de ferro”, se alcançou fruto da tessitura que urdiram: um resultado lesivo dos requerentes cautelares, que apenas foi possível com a intervenção conluiada das sociedades, geridas de factopelo 1.º requerido, pai do responsável único das sociedades “Arqbuilding”, ora Autora, e “Buildprime”.

XII - No quadro factual indiciário que o juiz de 1.ª instância teve que apreciar no procedimento cautelar de arresto, sem que tivesse havido oposição dos requeridos, não constitui erro grosseiro o ter-se proferido a decisão contestada, não obstante a parcial divergência evidenciada no acórdão da elação, que sentenciou, revogando a desconsideração da personalidade jurídica da recorrente.

2. A exigência constante do art. 13.º, n.º 2, RRCE é muito discutível, dado que nem sempre é possível, por motivos atinentes à hierarquia ou à alçada do tribunal que proferiu a decisão, interpor recurso de uma decisão susceptível de originar responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função jurisdicional. Recorde-se também que o TJ já considerou que a exigência dessa revogação prévia não pode valer no âmbito do direito europeu (sobre a questão ver Responsabilidade civil do Estado por erro judiciário; consequências de TJ 9/9/2015 (C‑160/14)), o que obriga a repensar o regime da revogação prévia da decisão alegadamente causadora de responsabilidade civil do Estado.

A única coisa que eventualmente se pode exigir é que, antes da propositura da acção de responsabilidade civil contra o Estado, estejam esgotados todos os recursos ordinários que caibam da decisão. O que não se pode fazer é, como parece verificar-se no acórdão, justificar a necessidade de revogação prévia da decisão com a necessidade de esgotar os recursos ordinários, dado que tem de se garantir a possibilidade de invocar a responsabilidade civil do Estado decorrente de uma decisão da qual não é possível interpor mais nenhum recurso. 

MTS