"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/10/2016

Jurisprudência (450)


Dever de cooperação do tribunal; 
violação; consequências


1. O sumário de RE 19/5/2016 (124/14.7T8ABT.E1) é o seguinte:


I - A violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual imposto pelo art.º 6º e 590º nº 2, 3 e 4 do CPC, consistente na omissão de convite ao aperfeiçoamento da PI, findos os articulado com vista esclarecer o verdadeiro sentido do petitório (perante duas formulações possíveis), inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 195º nº 1 do CPC.
 
II - Tratando-se duma nulidade secundária, em regra, deveria ser arguida no prazo geral de 10 dias após o conhecimento, nos termos do disposto no art.º 199º nº 1 do CPC. Acontece que esta nulidade corporiza-se na sentença e só com a notificação desta se manifesta, sendo, por isso, a impugnação daquela, incindível desta. Assim a sua arguição nas alegações do recurso interposto da sentença tem de ser considerada tempestiva.
 
III - A violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual, nas circunstâncias do caso, não constituindo um vício que determine a nulidade da sentença (art.º 615º nº 1 do CPC) sempre implicará a sua anulação por força do disposto no art.º 195º nº 2 do CPC.
 

2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão: 

"Defendem as recorrentes que o tribunal “ a quo” interpretou mal o petitório, porquanto o que se visava com a acção era precisamente o reconhecimento de que as parcelas identificadas no art.º 22º da PI, foram adquiridas por usucapião pelo casal formado pela primeira autora e pelo seu defunto marido – LL - pai das restantes autoras e, consequentemente, que tais parcelas integram a herança indivisa aberta por óbito do referido LL, de que as autoras são únicas e universais herdeiras e não o reconhecimento de que aquelas parcelas são compropriedade das autoras por as terem adquirido por usucapião.

Tal como o tribunal interpretou os termos da PI, a sentença não merece qualquer censura porquanto fez uma correcta e" irrepreensível aplicação do direito.

Acontece que a forma como a lide foi desenhada na PI, designadamente a aparente apresentação das AA. a reclamar o reconhecimento de um direito próprio e não em representação e benefício da herança indivisa do falecido LL, de quem as AA., são únicas e universais herdeiras determina que seja passível de qualquer das interpretações em confronto – a da sentença e a da apelação. Efectivamente a intenção das AA. agora inequivocamente plasmada nas alegações de recurso, não resulta clara nem evidente dos termos da PI, que também comporta a interpretação feita pela Sr.ª juíza, sendo por equívoca. Nestas circunstâncias, perante esta equivocidade, o senso comum aconselhava, o princípio da cooperação consagrado no art.º 7º nº 1 e 2 do CPC exigia e o dever de gestão processual previsto nos art.º 6º e 590º nº 2, 3 e 4 do mesmo diploma impunha, que o Tribunal, findos os articulados, ao invés de proferir sentença, como fez, convidasse as AA., a esclarecer o exacto alcance do petitório, designadamente se o que pretendiam era a condenação dos RR. a reconhecer que as ditas parcelas lhes pertencem em compropriedade, por as terem adquirido por usucapião ou se, pelo contrário, pretendiam que, enquanto únicas e universais herdeiras de LL, fossem aqueles RR., condenados a reconhecer que as ditas parcelas integram a herança indivisa do referido LL, por as ter adquirido por usucapião.

A omissão desta diligência determinou que fosse proferida uma sentença, formalmente correcta, mas substancialmente inútil, porquanto deixou por resolver as questões que levaram as AA. a impetrar a intervenção do Tribunal, em suma deixou de realizar a sua mais lídima função, a de fazer a justiça do caso concreto. 

A violação do princípio da cooperação e do dever convidar as AA. a esclarecer o verdadeiro sentido do petitório (perante duas formulações possíveis), inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 195º nº 1 e nas circunstâncias do caso sub judicio é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, ferindo de nulidade [...] a decisão tomada, face à grave omissão pelo senhor Juiz praticada, ao não convidar as AA, como devia, a esclarecer o sentido e alcance do pedido. Tratando-se duma nulidade secundária, em regra, deveria ser arguida no prazo geral de 10 dias após o conhecimento, nos termos do disposto no art.º 199º nº 1 do CPC. Acontece que esta nulidade corporiza-se na sentença e só com a notificação desta se manifesta, sendo, por isso, a impugnação daquela, incindível de
sta. Assim a sua arguição nas alegações do recurso interposto da sentença tem de ser considerada tempestiva [Ac. da RE de 25/10/2012, proc. nº 381658/10.5YIPRT.E1 e Ac. da RL de 9/10/2014, proc. nº 2164/12.1TVLSB.L1, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/].

A violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual, nas circunstâncias do caso, não constituindo um vício que determine a nulidade da sentença (art.º 615º nº 1 do CPC) sempre implicará a sua anulação por força do disposto no art.º 195º nº 2 do CPC. Assim impõe-se anular a sentença e ordenar a observância da formalidade omitida, ou seja o convite ao aperfeiçoamento da PI, por forma a não restarem dúvidas sobre o pedido e a qualidade em que as AA., intervêm na acção."

3. O acórdão é emblemático do "novo processo civil", devendo ser salientado que, apesar de ainda se verificarem alguns "esquecimentos", as implicações do dever de cooperação do tribunal já são bem percebidas e correctamente aplicadas pela jurisprudência. Como o acórdão demonstra, há efectivamente, ao nívell de aspectos estruturantes, algo de bastante novo no actual CPC. 

Pode discutir-se se a consequência da violação do dever de cooperação do tribunal não deve ser a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que, afinal, antes do proferimento da sentença não é possível saber que o tribunal estava a laborar num equivoco e que deixou de cumprir o dever de esclarecimento. Em todo o caso, também se pode viver com a solução da nulidade do processo (cf. art. 195.º, n.º 1, CPC)... que implica a anulação da decisão por força do estabelecido no art. 195.º, n.º 2, CPC.

MTS