"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/10/2016

Jurisprudência (455)


Processo de insolvência; efeitos da insolvência; massa insolvente;
acção executiva posterior


1. O sumário de RP 19/5/2016 (2060/14.8YYPRT.P1) é o seguinte:
 
I - Por efeito da declaração de insolvência, o insolvente é privado da posse material e dos poderes de administração e de disposição, quer em relação aos bens possuídos à data da declaração de insolvência, quer dos bens e rendimentos que futuramente obtenha. 
 
II - Tal privação não abrange, todavia, os bens excluídos da massa insolvência, pelo que o insolvente não está impedido da prática de actos de carácter patrimonial, apenas lhe sendo vedada essa prática se os actos se reflectirem sobre a massa insolvente.
 
III - Resultando dívidas dos actos do insolvente, cuja prática, nos termos referidos, não lhe está vedada, por elas respondem exclusivamente os bens próprios, que não integrem a massa insolvente.
 
IV - De acordo com o artigo 88º do CIRE, a declaração de insolvência apenas determina a suspensão – não a impossibilidade, nem a inutilidade, pelo menos de forma definitiva, da lide - das execuções pendentes que afectem os bens da massa insolvente.
 
2. Na fundamentação do acórdão diz-se o seguinte:
 
"De acordo com o artigo 88º do CIRE, a declaração de insolvência apenas determina a suspensão – não a impossibilidade, nem a inutilidade, pelo menos de forma definitiva, da lide - das execuções pendentes que afectem os bens da massa insolvente.
 
Como flui do quadro circunstancial descrito nos autos, o exequente veio instaurar contra os executados acção executiva em momento posterior à declaração de insolvência dos mesmos – por sentença transitada em julgado, achando-se pendente o respectivo processo de insolvência -, visando a satisfação de crédito sobre os mesmos, constituído após proferida sentença que decretou a insolvência.
 
Como vimos, a execução foi instaurada depois de proferida sentença declaratória de insolvência – muitos anos depois -, destinando-se à cobrança de dívida alegadamente constituída/garantida pelos insolventes muitos anos decorridos sobre a sentença que os declarou insolventes, sendo eles os executados na referida acção executiva.
 
Da declaração de insolvência resultam diversos efeitos, os quais se reflectem quer na situação jurídica do insolvente, e que se traduzem em várias limitações à sua capacidade, quer no seu património.
 
Assim, como resulta dos nºs 1 e 2 do artigo 81º CIRE, por efeito da declaração de insolvência, fica o insolvente imediatamente privado, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo, prevendo o nº 6 do mesmo normativo que são ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação dessas regras, respondendo a massa insolvente pela restituição do que lhe tiver sido prestado apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa, salvo se esses actos, cumulativamente, forem celebrados a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência e não forem de algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º, sempre havendo que notar que “as limitações impostas ao agir jurídico do insolvente, não têm, porém, o carácter absoluto de que revestiam no CPEREF, que só em casos muito particulares (nº 2 do seu art.º 148º) admitia o afastamento da sua inibição para o exercício do comércio ou de qualquer cargo de titular de cargos de certas pessoas colectivas” [Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, ed. Quid Juris, pág. 183].

Segundo os mesmos autores [“Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, reimpressão, ed. Quid Juris, pág. 339], “o efeito primordial da declaração de insolvência, quanto ao devedor, é de natureza patrimonial e reflecte-se nos seus poderes de actuação nesse domínio da sua esfera jurídica.

Na verdade, por força do nº 1 da norma em anotação [artigo 81º], quanto aos bens compreendidos na massa insolvente, tal como a define o art.º 46º, o devedor fica privado dos poderes de administração e de disposição. No sentido de a tornar plenamente eficaz, esta limitação respeita tanto ao devedor como aos seus administradores, no sentido do art.º 6º.

A contrario sensu, quanto aos bens patrimoniais não incluídos na massa insolvente, o devedor mantém os seus poderes de administração e de disposição.

Esta afirmação tem, porém, que ser testada por referência ao disposto no n.º 2, que interdita ao devedor certos actos relativos a bens futuros susceptíveis de penhora, mesmo se obtidos ou adquiridos após o encerramento do processo”.

Deste modo, por efeito da declaração de insolvência, o insolvente é privado da posse material e dos poderes de administração e de disposição, quer em relação aos bens possuídos à data da declaração de insolvência, quer dos bens e rendimentos que futuramente obtenha, conforme ressalta do artigo 46º do CIRE [Luís Manuel Teles de Menezes de Leitão, “Direito da Insolvência”, 2ª ed., pág. 154].

Tal privação não abrange os bens excluídos da massa insolvente, em relação aos quais o insolvente conserva poderes de administração e de disposição. Significa tal que o insolvente, pessoa singular, não está impedido da prática de actos de carácter patrimonial, apenas lhe sendo vedada essa prática se os actos se reflectirem sobre a massa insolvente. Como se afirma no acórdão da Relação do Porto de 05.02.2013 [Processo nº 1433/08.0TBMCN-A.P1, www.dgsi.pt], “Em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária, mas apenas os que forem penhoráveis e não excluídos por disposição especial, acrescidos dos que, não sendo penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a sua impenhorabilidade não seja absoluta. Igualmente os bens advenientes ao devedor no decurso do processo, seja a que título for, integrarão a massa insolvente se penhoráveis ou se decorrerem da sua oferta voluntária. Claro que se o devedor insolvente apresentar voluntariamente os bens relativamente impenhoráveis, eles passarão a integrar a massa definitivamente e não mais poderão ser desafectados enquanto decorrer o processo [...]. 

Considerações que facultam a conclusão de que o devedor, não obstante a sua declaração de insolvência, pode administrar e dispor dos seus bens desde que não integrem a massa insolvente, o que equivale a afirmar que o devedor insolvente não sofre quaisquer limitações aos poderes de administração e até de disposição de bens não compreendidos na massa insolvente e que, em princípio, esses actos são válidos e eficazes[...]”.

Resultando dívidas dos actos do insolvente, cuja prática, nos termos referidos, não lhe está vedada, por elas respondem exclusivamente os bens próprios, que não integrem a massa insolvente.

A generalidade dos efeitos da insolvência são instrumentais em relação ao próprio processo de insolvência. Como explica Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[6], “a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece.

Consequentemente, durante a pendência do processo, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência (art. 90.º), deixando [...] de poder instaurar acções independentes ou continuar a prosseguir outros processos à margem do processo de insolvência. Assim se garante a intangibilidade do património do devedor, já que a massa insolvente deixa de poder ser utilizada como garantia geral de outros créditos que não aqueles que sejam exercidos no processo de insolvência”.

A dívida exequenda – resultante do aceite e do aval pelos executados de uma letra que o exequente deu à execução – foi constituída após a declaração de insolvência daqueles, tendo, consequentemente reflexos sobre o poder de actuação dos devedores no domínio das suas esferas patrimoniais, não tendo necessariamente de afectar a massa insolvente.

Accionados os devedores por via do aceite e do aval da letra exequenda, respondem os mesmos, com o seu património, pelo cumprimento da obrigação cambiária, que constitui dívida própria dos executados. Como resulta do artigo 81º, nº 8, a) do CIRE, estando em causa actos praticados pelo insolvente após a declaração de insolvência que não contrariem o disposto no n.º 1, “pelas dívidas do insolvente respondem apenas os seus bens não integrantes na massa insolvente”. 

Não tendo os actos praticados pelos insolventes – aceite e aval da letra exequenda após a declaração de insolvência - necessariamente que se reflectir sobre a massa insolvente [de resto, a decisão recorrida nem sequer questiona a eficácia desses actos], respondendo os executados pela dívida [própria] exequenda [exclusivamente] com os seus patrimónios, nenhum obstáculo legal se coloca quanto à admissibilidade da execução nos termos em que foi instaurada, não se configurando a excepção dilatória que ditou a rejeição da execução.

Se a exequente conseguirá ou não obter a satisfação do seu crédito através do património próprio dos executados, sem afectação da massa insolvente, como se exige, é questão que se há-de colocar no decurso da acção executiva, enquanto não ocorrer o encerramento do processo de insolvência [...], mas que não interfere com a admissibilidade da instauração dessa execução."
 
[MTS]