"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/10/2016

Jurisprudência (458)



Declaração de insolvência; acções pendentes; 
efeitos; litisconsórcio necessário


I. O sumário de RE 19/5/2016 (22/10.3TBALR-C.E1) é o seguinte:


1. Declarada a insolvência de alguns dos réus na pendência da ação declarativa, na qual a autora formulou pedidos de declaração de nulidade/anulação de vários negócios e de anulação dos respetivos registos, tal circunstância determina a extinção da instância, quanto aos réus insolventes, por inutilidade superveniente da lide.

2. Tendo a autora demandado vários réus no quadro de um litisconsórcio necessário natural por si estabelecido, não faz qualquer sentido prosseguir a ação contra apenas alguns dos demandados intervenientes naqueles negócios e sem que a respetiva nulidade ou anulação pudesse depois ser oposta aos demandados insolventes.
 


II. Na fundamentação do acórdão consta o seguinte: 
 
"[...] o tribunal de 1ª instância fez terminar o presente processo com uma decisão que declarou a extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do artº 277º, al. e), do NCPC, tendo como fundamento a declaração de insolvência de alguns dos RR. e a aplicação da doutrina constante do citado AUJ-STJ nº 1/2014. E é a verificação da ocorrência das circunstâncias de aplicação dessa doutrina que importa aqui considerar.

Recorde-se o teor daquela doutrina e o essencial da argumentação que a sustentou. 
 
[...] declarou-se naquele aresto a seguinte solução: «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287º do C.P.C.». 

E justificou-se deste modo tal solução (respigando nós os trechos mais relevantes do ponto de vista da questão em apreço neste recurso): 

«(…) [O] direito [de acesso e tutela jurisdicional efectiva] mais não é, no essencial, do que o direito a uma solução jurisdicional dos conflitos, em prazo razoável, e com garantias de imparcialidade e independência, como está pacificamente firmado há muito na Jurisprudência do Tribunal Constitucional. [O exercício desse direito requer naturalmente a existência (…e constância), dentre outros pressupostos, do chamado interesse processual (interesse em agir, na linguagem dos autores italianos), que consiste – na definição usada por Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora – na necessidade de usar do processo, de instaurar e fazer prosseguir a acção.
 
(…) a inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio (…). 
 
Por outro lado, a finalidade do processo de insolvência, enquanto execução de vocação universal – art. 1º/1 do CIRE – postula a observância do princípio ‘par conditio creditorum‘, que visa, como é consabido, a salvaguarda da igualdade (de oportunidade) de todos os credores perante a insuficiência do património do devedor (…).
 
No actual CIRE (…) [dispõe] o art. 85º quanto aos efeitos processuais da declaração de insolvência sobre as acções (declarativas) pendentes [que] (…) “declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor (…) são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo” – nº 1 do art. 85º. 
 
A apensação continua, pois, por regra, a reportar-se às acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor (…ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa) (…). 
 
O efeito da declaração de insolvência sobre os créditos que se pretendam fazer pagar pelas forças da massa insolvente vem categoricamente proclamado no art. 90º: “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”. (…)
 
“O carácter universal e pleno da reclamação de créditos determina uma verdadeira extensão da competência material do tribunal da insolvência, absorvendo as competências materiais dos Tribunais onde os processos pendentes corriam termos, já que o Juiz da insolvência passa a ter competência material superveniente para poder decidir os litígios emergentes desses processos na medida em que, impugnados os créditos, é necessário verificar a sua natureza e proveniência, os montantes, os respectivos juros, etc.”. (…)
 
Ante o exposto, importa então saber se, após a declaração da insolvência da R. – decretada na pendência da presente acção, por sentença transitada em julgado, e em cujo processo (de insolvência) a recorrente reclamou os créditos que aqui peticiona/va – subsiste alguma utilidade ou fundada razão, juridicamente consistente, que justifique a prossecução de acção, maxime até ao posterior momento da sentença de verificação de créditos (…).
 
(…) mesmo que [a recorrente] obtivesse atempadamente o reconhecimento judicial do seu pedido na acção pendente, a respectiva sentença, valendo apenas inter partes, mais não constituiria do que um documento para instruir o requerimento da reclamação/verificação de créditos (art. 128º/1), não dispensando a recorrente de reclamar o seu crédito no processo de insolvência, nem a isentando da probabilidade de o ver impugnado e de ter de aí fazer toda a prova relativa à sua existência e conteúdo. (…)
 
Certo é que, não dispondo a A., ao tempo da declaração de insolvência da R., de sentença proferida na acção pendente, a mesma, enquanto credora da insolvente, apenas poderá exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código e durante a pendência deste processo, como prescreve o seu art. 90º.
 
Por fim, considera a recorrente que a interpretação, assim feita, do art. 287º, e), do C.P.C. viola os arts. 13º e 20º, nºs 1 e 5, da C.R.P. Ainda aqui, por tudo quanto se expendeu atrás (…), não acompanhamos os seus argumentos. A interpretação feita do art. 287º, e), do CPC, nesta dilucidada perspectiva, não afronta, por óbvias e consabidas razões, contrariamente ao invocado, o princípio programático da igualdade, plasmado no art. 13º, nº 2, da C.R.P..
 
Como não cerceia, pelo que se deixou explicitado acima, por qualquer modo atendível, o acesso ao direito e aos Tribunais, salvaguardado no art. 20.º, n.ºs 1 e 5, da Lei Fundamental. (…)»

Perante a doutrina e fundamentos deste aresto importa, antes de mais, ter presente que, eliminado que foi o instituto dos «assentos», enquanto jurisprudência que continha doutrina com força obrigatória geral (cfr. o revogado artº 2º do C.Civil), os acórdãos de uniformização (conceito que se estendeu aos anteriores «assentos», por força do disposto no artº 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12/12) não têm hoje carácter vinculativo, apesar de revestirem um valor argumentativo reforçado, por efeito da sua natureza uniformizadora com intervenção do pleno das respectivas secções no STJ, que impõe aos outros tribunais um especial dever de fundamentação em caso de divergência (com consagração expressa em matéria processual penal, no artº 445º, nº 3, do CPP, e implícita em processo civil, face à plena recorribilidade de todas as decisões contrárias a jurisprudência uniformizada do STJ, nos termos do artº 678º, nº 2, al. c), do anterior CPC e do artº 629º, nº 2, al. c), do NCPC). Contudo, afigura-se-nos integralmente válido o sentido da citada jurisprudência uniformizada, sem que vislumbremos qualquer razão para divergência, pelo que a ela damos a nossa plena adesão.

A transcrição que vimos de fazer da motivação do AUJ-STJ nº 1/2014 é, segundo cremos, e pela sua eloquência, bem reveladora das razões que justificam a declaração de inutilidade superveniente da lide das acções declarativas pendentes à data da declaração de insolvência de devedor demandado nessas acções, sendo que o critério definidor do objecto das acções em que aquela declaração deve ter lugar é fornecido pelo próprio artº 85º, supracitado, do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3): trata-se de «acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa».

Tendo presentes as considerações ínsitas no transcrito aresto e o mencionado critério definidor do objecto das acções suceptíveis de se enquadrar na aplicação daquela jurisprudência uniformizada, afigura-se-nos ser evidente que a presente acção se apresenta como elegível para aplicação daquela orientação. Estamos, com efeito, perante uma acção em que se discute questão relativa a bens que, em caso de procedência da acção, com a pretendida declaração de nulidade dos contratos invocados e de que aqueles são objecto, se irão inscrever no património de sociedade declarada falida e que passarão a integrar a respectiva massa insolvente (a aqui R. «CC – Sociedade Unipessoal, Lda.»). E mesmo que nos confinemos ao conceito de reconhecimento de créditos usado na parte dispositiva do AUJ-STJ nº 1/2014 (e só aparentemente mais restritivo que o de questões relativas a bens), não podemos deixar de reconhecer assistir razão ao tribunal a quo quando afirma que a presente acção tem um fim exclusivamente pecuniário, na medida em que os pedidos de nulidade têm como escopo final uma valorização patrimonial de que a A. pretende beneficiar – e isso traduzir-se-á, em caso de procedência da acção, e de forma indirecta, no reconhecimento de um direito de natureza creditícia da A.. 

Posto isto, cremos que a solução decorrente da aplicação do AUJ-STJ nº 1/2014 apenas deixará de ter lugar (ao menos, na sua plenitude) se for entendido como relevante o argumento da apelante de que a declaração de insolvência não abrange a totalidade dos RR. da presente acção – o que poderia determinar o prosseguimento desta, pelo menos em relação aos RR. não insolventes. 

E, em princípio, esta solução pareceria a mais adequada, por o próprio regime do CIRE estabelecer essa conexão entre a declaração de insolvência e determinadas consequências para as acções pendentes em que o insolvente seja demandado e por referência a este enquanto devedor insolvente, sendo concebível que possam prosseguir essas acções apenas quanto a co-demandados não-insolventes – como sucederá, v.g., quando esteja em causa uma obrigação solidária, em que faz sentido ser declarada a extinção da instância quanto ao co-obrigado declarado insolvente e prosseguir a acção contra os demais co-obrigados solidários, até pela totalidade da dívida (cfr., sobre tal hipótese, e com essa solução, Ac. RP de 29/2/2016, Proc. 204654/09.1YIPRT-A.P1, idem).

Porém, não se pode olvidar que o próprio artº 85º, supracitado, do CIRE se refere a «acções intentadas (…) mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa», tendo por isso em mente acções que tenham necessariamente de ser intentadas contra outras pessoas que não apenas o devedor insolvente – como acontecerá nos casos de litisconsórcio necessário (cfr. artº 33º do NCPC), sendo que aí não poderá a solução AUJ-STJ nº 1/2014 deixar de abranger subjectivamente toda a acção.

Ora, entre as hipóteses de litisconsórcio necessário avultam as situações em que seja necessária a intervenção dos «vários interessados na relação controvertida» (na fórmula do nº 1 do citado artº 33º), nas seguintes condições: «quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal» (cfr. nº 2 do artº 33º do NCPC). E é sabido que, na doutrina sobre o tema, um dos casos paradigmáticos de aplicação desse conceito legal (o designado «litisconsórcio necessário natural») é precisamente o das acções de anulação, em que não oferece dúvida que tais acções, para que as respectivas decisões produzam caso julgado em relação a todos os intervenientes (assim produzindo o seu efeito útil normal), têm de ser propostas contra todos aqueles (neste sentido, e por todos, v. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil II, ed. AAFDL, Lisboa, 1980, pp. 227-228).

No caso presente, evidencia-se que a A. configurou a acção em termos de pretender demandar todos aqueles que, de um ou outro modo, tiveram intervenção nos contratos (ou colaboraram na sua celebração) cuja declaração de nulidade ou anulação pretende obter. Ou seja: foi a própria A. que demandou os vários RR. no quadro de um litisconsórcio necessário natural por si estabelecido, sendo óbvio que não faz qualquer sentido prosseguir a presente acção contra apenas alguns dos demandados intervenientes naqueles contratos e sem que a respectiva nulidade ou anulação pudesse depois ser oposta aos demandados insolventes (neste caso, e desde logo, os próprios putativos responsáveis principais pelas simulações invocadas: o R. BB e a sociedade R. «CC – Sociedade Unipessoal, Lda.»).

Afigura-se-nos, pois, assistir plena razão ao tribunal a quo na sua decisão de declarar, com integral abrangência subjectiva (por se estar perante uma situação de litisconsórcio necessário, nos termos do artº 33º, nº 2, do NCPC), a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do artº 277º, al. e), do NCPC, com fundamento na declaração de insolvência de alguns dos RR., e em aplicação da doutrina constante do AUJ-STJ nº 1/2014."


[MTS]