"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/10/2016

Jurisprudência constitucional (91)



Dever de colaboração do tribunal; 
violação do dever de advertência


1. TC 14/7/2016 (462/2016), DR 197/2016, II, de 2016-10-13 decidiu o seguinte:


Não julga inconstitucional a interpretação conjugada dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, no sentido de que tendo uma questão de inconstitucionalidade sido submetida à consideração do Tribunal da Relação apenas nas conclusões da alegação do recurso, mas não tendo sido explanada no corpo da alegação, deve uma tal questão ser desconsiderada pelo referido tribunal, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal omissão.

2. Na fundamentação do acórdão diz-se o seguinte: 

"No que respeita ao regime dos recursos do direito processual civil, o Tribunal Constitucional nunca foi confrontado com um interpretação normativa semelhante à dos autos, em que está em causa uma omissão ou insuficiência relativa às alegações propriamente ditas e não às conclusões. 

No entanto, foi já chamado a pronunciar -se, no Acórdão n.º 536/11, sobre o artigo 685.º -C, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil (na redação introduzida pelo Decreto -Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, e a que corresponde atualmente o artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), o qual determinava que a falta de alegações ou de conclusões constituía fundamento de rejeição de recurso. 

Nos autos em questão, o tribunal a quo havia indeferido liminarmente um recurso, por a respetiva alegação de recurso não conter as “conclusões”, em violação do disposto no artigo 685.º -C, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, na redação então vigente. O recorrente manifestou a sua discordância em relação à interpretação dada a tal norma, sustentando que, apesar da revogação do artigo 690.º do CPC, o legislador havia salvaguardado no novo artigo 685.º -A, n.º 3, introduzido na reforma dos recursos em processo cível operada em 2007, o dever de o juiz convidar o recorrente a completar, esclarecer ou aclarar as conclusões deficientes, obscuras ou complexas. Sustentou, por isso, que mesmo a considerar -se que a Recorrente não cumpriu o ónus de formular as conclusões na minuta de recurso, esse facto não poderia acarretar o não conhecimento do recurso, já que essa consequência configuraria uma sanção desproporcionada à irregularidade cometida, pelo que colidiria com o princípio constitucional do acesso ao direito consignado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. 

Com efeito, com a reforma do regime dos recursos em processo civil levada a cabo pelo Decreto -Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, foi revogado o artigo 690.º do CPC (cujo n.º 4 previa o convite ao aperfeiçoamento no caso de falta de conclusões ou quando estas fossem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que aludia o n.º 2), tendo sido aprovado o artigo 685.º -C, n.º 2, alínea b), onde se considera que a falta de alegações ou de conclusões constitui fundamento de rejeição de recurso. Daí que, onde anteriormente se previa a possibilidade de convite ao recorrente para suprimento da falta de conclusões, passou a admitir -se tal convite apenas quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou quando nelas se não tenha procedido às especificações previstas no n.º 2 do artigo 685.º -A. 

O Tribunal Constitucional começou por salientar que a situação é diversa da que se verifica em processo penal e contraordenacional, área em que existe variada jurisprudência (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 66/2000, 265/2001, 320/2002, 140/2004 e 459/2010), onde foi sempre entendido, com fundamento na consideração de que o direito a um duplo grau de jurisdição se identifica como verdadeira garantia de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), que enfermava de inconstitucionalidade uma interpretação normativa que, na falta de conclusões na motivação do recurso ou na presença de qualquer deficiência ou obscuridade, conduzisse à imediata rejeição do recurso sem convite ao recorrente. 

Salientou ainda o Tribunal, fazendo referência à sua jurisprudência anterior (cf., a este respeito, entre outros, os acórdãos n.os 403/2000, 122/2002 e 259/2002), que não existe, no âmbito do processo civil, um genérico direito ao aperfeiçoamento e que, ao analisar os vários preceitos legais que consagram ónus processuais, tem o Tribunal Constitucional procurado averiguar se, por um lado, a consagração desses ónus se reveste de alguma utilidade, não redundando em mero formalismo, e se, por outro lado, o cumprimento de tais ónus se não reveste de excessiva dificuldade para as partes. Estando verificadas as duas condições, não resultaria violado o direito de acesso aos tribunais ou o princípio da proporcionalidade  

Assim, considerando que, no caso, se mostravam preenchidas duas condições — utilidade do ónus imposto e cumprimento não excessivamente oneroso para as partes — para que se possa concluir não estar violado nem o direito de acesso aos tribunais nem o princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 685.º -C, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, quando “interpretado no sentido de que a falta de conclusões implica a não apreciação do recurso sem previamente o Juiz Relator proceder em conformidade com o disposto no artigo 650.º -A, n.º 3”, tendo concluído que tal interpretação normativa não se mostrava violadora do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. 

Por outro lado, não obstante a assinalada diferença nesta matéria entre o direito processual penal e contraordenacional face ao processo civil, importa também salientar que, mesmo no âmbito processual penal e contraordenacional o tribunal tem entendido não haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afetem a motivação do recurso (e não apenas as conclusões). 

Com efeito, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, quer a relativa aos recursos de natureza penal (ou contraordenacional), quer a relativa aos recursos de natureza não penal, o Tribunal tem distinguido as situações em que as insuficiências e omissões detetadas no requerimento de recurso dizem apenas às conclusões do recurso, daquelas situações em que tais insuficiências e omissões dizem respeito também à respetiva motivação. 

A esse respeito, o Tribunal tem reiteradamente afirmado que da sua jurisprudência não pode retirar -se «uma exigência constitucional geral de convite para aperfeiçoamento, sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjetivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado» (cf., Acórdão n.º 140/2004). 

Daí que, mesmo no domínio processual penal e contraordenacional, o Tribunal Constitucional distinga dois tipos de situações. 

Nos casos em que as omissões, insuficiências ou deficiências em causa ocorrem não apenas nas conclusões do requerimento recurso, mas também na respetiva motivação, o Tribunal Constitucional tem formulado juízos negativos de inconstitucionalidade em relação a interpretações normativas no sentido de que, em tais circunstâncias, não deverá ser conhecida a matéria em questão, improcedendo o recurso, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tais deficiências. É o caso, por exemplo, dos Acórdãos n.os 259/2002, 140/2004 e 660/2014, em que o Tribunal não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, das menções aí exigidas, tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tais deficiências. 

Já nos casos em que também as omissões, insuficiências ou deficiências em causa se verifiquem apenas nas conclusões — e não na motivação -, o entendimento do Tribunal tem sido no sentido de se pronunciar pela inconstitucionalidade das interpretações normativas no sentido da rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento. Assim, entre outros, nos acórdãos n.os 192/2002, 529/2003, 322/2004, 405/2004, 357/2006 e 485/2008 o Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade da referida norma do artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, interpretado no sentido de que a falta, apenas nas conclusões da motivação do recurso — e não na motivação — das menções aí contidas determina a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento. 

Tendo em conta a citada jurisprudência deste Tribunal e, particularmente, a relativa aos recursos não penais, não pode considerar -se que a interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido estabeleça um ónus desprovido de qualquer utilidade, na medida em que ele está funcionalmente dirigido às funções já assinaladas das alegações. Acresce ainda que, sendo a questão em causa uma questão de constitucionalidade, a sua suscitação não se basta, como vimos, com a sua mera enunciação nas conclusões."

3. Um dos princípios que orienta o processo civil plasmado no Código de Processo Civil de 2013 é o princípio da colaboração do juiz com as partes (cf. art. 7.º, n.º 1, CPC). Uma das manifestações deste princípio da colaboração é o dever de o juiz advertir as partes para qualquer vício de natureza formal que possa fazer perigar a análise das suas pretensões e que seja susceptível de ser sanado (cf. art. 7.º, n.º 2, CPC).

O TC -- que, aliás, nunca cita o art. 7.º CPC -- entende que o não cumprimento do dever de colaboração do tribunal não merece tutela constitucional. É uma orientação que não se pode acompanhar, dado que, para além de tudo o mais, a mesma favorece uma apreciação formal em detrimento da desejada apreciação substancial das questões suscitadas pelas partes.

Sem discutir o mérito da vasta jurisprudência constitucional que é citada no acórdão, importa não esquecer que o paradigma do processo civil se alterou entretanto, pelo que, o que poderia ser aceitável num outro ambiente legislativo, é hoje inaceitável. Não é certamente de esperar que a jurisprudência constitucional, em vez de zelar pelo espírito do novo processo civil, se converta em entrave à sua concretização.

MTS