"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/10/2016

Valor da causa e admissibilidade do recurso


1. Do sumário de STJ 1/9/2016 (2653/13.0TTLSB.L1.S1) consta o seguinte:

Traduzindo-se a coligação voluntária ativa na cumulação de várias ações conexas, que não perdem a respetiva individualidade, para aferição dos requisitos de recorribilidade, há que atender ao valor de cada um dos pedidos e não à sua soma. 

Quer dizer: o STJ entendeu que não é admissível o recurso interposto por um dos autores coligados com fundamento na circunstância de o valor do pedido sobre o qual é solicitada a pronúncia do STJ ser inferior ao valor da alçada da Relação. O STJ decidiu bem, como se vai procurar explicar.

Antes disso, convém lembrar que o valor da causa corresponde à "utilidade económica imediata do pedido" (art. 296.º, n.º 1, CPC). Na hipótese de serem cumulados vários pedidos (como sucede na cumulação objectiva e na coligação), o valor da acção é o correspondente à soma dos valores de todos os pedidos (art. 297, n.º 2, CPC).

2. Contra a orientação defendida no acórdão poder-se-ia invocar impossibilidade de o STJ (bem como de qualquer outro tribunal que aprecie a acção) alterar o despacho que tenha fixado o valor da causa, sob pena de violação do caso julgado deste despacho. O argumento é susceptível de ser rebatido.

É indiscutível que o despacho que fixa o valor da causa, depois de transitar em julgado, adquire valor de caso julgado. No entanto, como, aliás, sucede quanto a qualquer caso julgado, o mesmo só vale rebus sic stantibus

A partir do momento em que, na acção pendente, ocorre uma modificação que justifica uma alteração do seu valor (como, por exemplo, a desistência ou a confissão parcial do pedido, a desistência ou a confissão de um dos pedidos cumulados ou o trânsito em julgado da decisão sobre um dos pedidos cumulados), aquele caso julgado não pode manter-se, precisamente porque o valor da causa não pode manter-se inalterado depois de qualquer daqueles factos. Concretizando num exemplo: o autor formula dois pedidos, um no valor de € 35.000 e outro no valor de € 2.500; o valor da causa é de € 37.500; o réu confessa o pedido no valor de € 35.000 e o tribunal homologa esta confissão; a acção continua quanto ao pedido de valor de € 2.500; o valor da causa tem de passar a ser de € 2.500, porque é este o valor correspondente à utilidade económica da acção depois da homologação da confissão

O que, por qualquer motivo, vai ficando de "fora" da acção deixa de ser pedido nessa mesma acção e, por isso, não pode ser contabilizado para a determinação do seu valor: a utilidade económica de um pedido que deixou de ser solicitado na acção não pode continuar a ser considerado para o valor da acção. Nomeadamente, o que já está decidido definitivamente numa acção não pode ser contabilizado para a determinação do seu valor, designadamente para efeitos de recurso quanto a pedidos que ainda não estão definitivamente apreciados. A não se entender assim, ter-se-ia de concluir que o que já está decidido com força de caso julgado e que já não pode voltar a ser apreciado pelo tribunal ainda contaria para efeitos da admissibilidade do recurso quanto a outras questões.

O valor da causa pode mudar ao longo do processo, em função de vários factores. Se é indiscutível que o valor pode variar para mais (como sucede nos casos de intervenção de terceiros ou de reconvenção: cf. art. 299.º, n.º 1, CPC), também tem de se admitir que o valor possa variar para menos (em função, por exemplo, de desistência, de confissão ou de caso julgado parcial). 

O valor da causa não é algo que permaneça imuvel durante toda a pendência dessa causa. Exactamente porque esse valor deve corresponder à "utilidade económica imediata do pedido" formulado nessa causa, o que que deixa de ser pedido na acção tem de se repercutir numa diminuição do valor da causa.  Esta variação do valor da causa não pode deixar de ser relevante para aferir a admissibilidade do recurso quanto aos pedidos que ainda subsistem na acção..

3. O que se acaba de dizer é ainda mais relevante no caso de uma cumulação simples de pedidos ou de uma coligação de autores (como sucedia no caso apreciado pelo STJ) ou de réus. É verdade que, nestas situações, o valor da causa corresponde à soma dos pedidos cumulados, mas, exactamente por isso, não pode deixar de se "descontar" no valor da causa aqueles pedidos que nela já se encontram decididos. À medida que cada um dos vários pedidos formulados vai sendo decidido com trânsito em julgado, a "utilidade económica" da acção vai diminuindo.

Seja como for,  mesmo que assim não se entenda, há certamente que aceitar que o valor de um pedido de valor superior à alçada da Relação não pode justificar a interposilção de um recurso para o STJ quanto a outro pedido cujo valor é inferior a essa alçada. O valor de um pedido não se transfere para efeitos da admissibilidade de um recurso quanto a um outro pedido.
 
Toda a coligação contém uma cumulação de pedidos: por exemplo, numa coligação activa uma parte formula um pedido contra um réu e outra parte formula um outro pedido contra o mesmo réu. Assim, tal como sucede num caso de cumulação simples, o recurso para o STJ em função do valor tem de ser aferido separadamente em relação a cada um dos pedidos cumulados (e formulados por ou contra partes coligadas). 

Se esta solução se impõe para qualquer cumulação simples de pedidos, ela impõe-se, ainda por maioria de razão, numa coligação. Se não se entendesse que a admissibilidade do recurso tem de ser aferida separadamente para cada um dos pedidos formulados por ou contra as partes coligadas, então haveria que concluir que poderia ser o pedido formulado por ou contra uma parte coligada a assegurar a admissibilidade do recurso quanto a um outro pedido deduzido por ou contra uma outra parte. 

Supõe-se que não é preciso muito para demonstrar a inadmissibilidade desta conclusão. Por exemplo: numa acção, é formulado pela parte A um pedido no valor de € 35.000 e pela parte B um outro pedido no valor de 10.000 (o que dá, como valor da acção, € 45.000); querendo apenas B recorrer da decisão de improcedência proferida quanto ao seu pedido para o STJ (isto é, tendo a decisão sobre o pedido de A transitado em julgado), não é pensável que B possa ir "buscar" o valor do pedido formulado por A e já decido para justificar o seu próprio recurso para o STJ. 

4. No caso concreto, o valor da causa, resultante da soma dos pedidos dos autores coligados, era de € 30.000,01. O STJ defendeu que, se esse era o montante correspondente à soma dos dois pedidos formulados por aqueles autores, então o valor do pedido sobre o qual o recorrente pretendia obter a pronúncia do STJ não podia, pela natureza das coisas, ter um valor superior  à alçada da Relação (o valor de um único dos pedidos cumulados nunca pode ser superior ao valor resultante da soma de  todos os pedidos cumulados). 

Em conclusão: o STJ decidiu bem ao não admitir a revista.

MTS