"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/01/2017

Jurisprudência (542)



Cláusulas contratuais gerais; acção inibitória;
interesse processual; inutilidade superveniente da lide



1. O sumário de STJ 6/10/2016 (1946/09.6TJLSB.L1.S1) é o seguinte:
 

I - A LCCG – DL n.º 446/85, de 25-10 – é um diploma que está imbuído do intuito de atenuar as desigualdades nos contratos de adesão celebrados entre as partes, nomeadamente quando uma delas, geralmente a proponente, difere da outra, a aderente, pela sua capacidade económica geradora de apoios logísticos e mobilizadores que aquela não possui.

II - A acção inibitória insere-se numa das plúrimas facetas do intervencionismo estatal constituindo de certa forma um precipitado do princípio da publicização do direito privado. A tal se reportam desde logo os artigos 25.º ss. do diploma supracitado podendo ler-se no primeiro normativo que “As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15.º, 16.º, l8.º, 19.º, 21.º e 22.º podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”.

III - No instrumento onde a ora ré celebrou o contrato com os particulares, mútuo com hipoteca, operava-se uma remissão para as cláusulas constantes do documento complementar elaborado pela ré, contendo, como pode ver-se dos factos provados, cláusulas que regem o contrato celebrado entre a ora ré e os mutuários que estão identificados na escritura. Trata-se pois de um contrato impresso e elaborado pela Ré onde, para além de normas específicas, figuravam outras, não negociadas, emergentes de uma proposta de adesão, que se integrava no todo contratual.

IV - O interesse em agir consiste “na necessidade de usar do processo de instaurar ou fazer seguir a acção; O interesse do autor em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual (e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela)”.

V - “A questão da utilidade das acções inibitórias não pode ser dissociada, de modo algum, da efectiva utilização dos clausulados contratuais gerais, que eventualmente violem a LCCG, por parte do predisponente, sendo certo que demonstrada a cessação daquela aplicação, e a sua substituição por novos clausulados, poderá ficar comprometida a respectiva apreciação judicial”.

VI - Estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006, de 22-12 – no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e como tal devidamente sancionado através de uma coima.

VII - A instância extinguir-se-á por falta de interesse em agir sendo a ré absolvida da instância.
 

2. Na fundamentação do acórdão pode encontrar-se o seguinte:

"A acção inibitória visa proibir cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura, e não impedir, antes da verificação da situação concreta nelas prevista, que alguém as possa imaginar ou perspectivar.

Nesta conformidade tem entendido a Jurisprudência maioritária deste STJ que se “verifica a inutilidade superveniente da lide, numa acção inibitória, quando a Ré, no decurso da acção, retire dos contratos a celebrar as referidas cláusulas[5]. Por outro lado e, como já vimos, estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006 de 22 de Dezembro e - no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o Tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e devidamente sancionado através de uma coima.

Mas quanto à abrangência dos contratos já celebrados, nomeadamente aquele a que se faz referência na petição inicial, diremos que a cláusula do arredondamento se mostra inserta no contrato; no momento em que o mesmo foi celebrado já vigorava o DL 446/85; poderia pensar-se haver possibilidade de sancionar por esta via o seu emprego de harmonia com o disposto nos artigos 15.º ss tomando em linha de conta que a cláusula em causa acaba por impor um benefício à mutuante, o que lesará o princípio da boa-fé. Só que não é esse o escopo das acções inibitórias a que alude o artigo 25.º, o qual se reporta exclusivamente à utilização de cláusulas para utilização futura não abrangendo os contratos celebrados antes da propositura da acção inibitória. Que é assim decorre igualmente da regulamentação da legitimidade activa a que se reporta o artigo 26.º da LCCG onde se vê, pela respectiva redacção, que mau grado actuem em nome próprio as entidades com legitimidade activa para intentar a acção inibitória fazem contudo valer um direito alheio, pertencente em conjunto aos consumidores susceptíveis de virem a ser atingidos pelas cláusulas cuja proibição é solicitada – n.º 2 do artigo imediatamente supracitado. [...].

A acção inibitória não visa pois eliminar as cláusulas viciadas já insertas num determinado contrato, mas antes, apontando para o futuro, proibir a sua utilização em contratos ulteriores.

Muito embora não haja interesse para que o MP se ocupe do contrato já celebrado, poder-se-ia eventualmente defender que aquele subsistiria quanto à possibilidade de fazer seguir a acção para acautelar contratos futuros. Só que a introdução de cláusulas do teor da questionada está já prevista e vedada à luz dos dois Diplomas referidos. Sendo assim perde o Autor Ministério Público interesse em agir. Com efeito há que atentar que a legislação surgida, nomeadamente os DLs citados, concretizam por via legislativa e específica a nulidade de cláusulas como que se encontra inserta no contrato sob o n.º 7 e regem para futuro; o interesse em agir só cessa no que toca à inserção da cláusula do arredondamento nos contrato futuros uma vez que existe já lei específica que o contempla."

3. [Comentário] O acórdão detectou correctamente a falta superveniente de interesse em agir, embora tenha fornecido para a mesma uma solução técnicamente inadequada.

Recorde-se o que sucedeu: por força da publicação de uma alteração legislativa durante a pendência da acção inibitória, a cláusula, cuja utilização o autor (Ministério Público) pretendia inibir, tornou-se ilegal; sendo assim, a acção inibitória se tornou inútil, dado que o autor deixou de ter interesse na tutela que solicitava.

Conforme se refere no acórdão com total acerto, a acção inibitória tornou-se supervenientemente inútil. O que parece ter faltado foi estabelecer a ligação entre essa inutilidade superveniente e a falta de interesse processual. Essa relação é muito fácil: a inutilidade superveniente da lide ocorre precisamente pela falta superveniente de interesse processual.

Sendo assim, o STJ devia ter decretado a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (art. 277.º, al. e), CPC), que é uma causa de extinção diferente da absolvição da instância (art. 277.º, al. a), e 278.º CPC).

MTS