"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/02/2017

Jurisprudência (546)


Processo executivo; legitimidade processual;
oponibilidade à execução; cessão de créditos
 
 
1. O sumário de RP 17/10/2016 (7733/14.2T8PRT-A.P1) é o seguinte:
 
I - O preceituado no artigo 54.º, n.º 1, do CPCivil, constitui um desvio à regra geral da legitimidade para a acção executiva, podendo esta ser intentada por e contra pessoas que não figuram no título executivo, por, entretanto, ter ocorrido transmissão no direito ou na obrigação, quer inter vivos, quer mortis causa
 
II - Tendo a decisão de habilitação de cessionário transitado em julgado e não tendo a mesma sido objecto de recurso de revisão, a questão da legitimidade para execução ficou definitivamente resolvida.
 
III - A cessão de créditos é inoponível à execução verificada depois da penhora (artigo 820.º do CCivil) sendo esse acto ineficaz em relação ao exequente cuja penhora do crédito pertencente ao cedente se mantém incólume.
 
III - A partir da notificação da cessão (assim como a partir da sua aceitação ou do conhecimento da sua existência), a titularidade do crédito passa para a esfera do cessionário, pelo que o devedor apenas se desobriga se efectuar a este a prestação.
 
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 773.º do CPCivil que “A penhora de créditos consiste na notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução”, resultando do artigo 777.º, nº. 1 do mesmo dispositivo legal que o devedor que não a haja contestado é obrigado: a) A depositar a respectiva importância em instituição de crédito à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução sejam realizada por oficial de justiça, da secretaria.

Com interesse para o caso dos autos estatui também o artigo 820.º do CCivil que “Sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora é inoponível à execução”.

Concatenando o regime legal que resulta dos normativos citados e aplicando-o ao caso concreto, verifica-se que, sem prejuízo do que vier a ser decidido nos autos de oposição à penhora que a D… deduziu nos autos do processo nº. 57/09.9TBVCD (facto descrito em 15º da fundamentação factual), a executada apelante está obrigada a entregar à Srª Agente de Execução a exercer funções naquele processo a quantia de € 9.104,50 por ter sido essa a medida da penhora efectuada através da notificação (facto descrito em 7º da fundamentação factual).

Com efeito, sendo a referida penhora anterior à dação do crédito da D… ao exequente (facto descrito em 2º da fundamentação factual), tal dação é inoponível (cfr. artigo 820.º do CCivil atrás transcrito) àquela execução, mantendo-se a executada obrigada a cumprir a referida notificação.

Todavia, já o mesmo se não pode dizer em relação procedimento subsequente ocorrido na mesma execução 57/09.9TBVCD, constante dos factos descritos em 10º a 14º da fundamentação factual.

Importa, desde logo dizer que a comunicação feita pelo Agente de Execução descrita no ponto 10º da fundamentação factual não foi feita com as formalidades exigidas na lei processual (cfr. artigo 773.º, nº. 1 do CPCivil).

Acresce que, tendo sido cumulada uma nova execução como aí se refere, o procedimento que havia de adoptar era a realização de uma nova penhora, não podendo, por via da pretendida “ampliação”, considerar-se realizada e, muito menos, beneficiar da anterioridade da penhora efectuada apenas para garantia da cobrança da quantia exequenda requerida inicialmente no montante de € 9.104,50.

Mas ainda que assim não fosse, tal como bem se refere na decisão recorrida, aquando da referida comunicação a executada já se mostrava notificada do acordo celebrado entre a D… e o aqui exequente e nos termos do qual, em pagamento da dívida que aquela tinha para com este e que estava a ser executada no processo que corria termos sob o nº. 2842/13.8TBVCD, fora cedido o crédito objecto da sentença exequenda (facto descrito em 3º da fundamentação factual) tendo aquele acto produzido, a partir daquela notificação, os seus efeitos em relação ao devedor.

Efectivamente, como resulta do disposto no artigo 583.º, nº. 1 do CCivil “A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ela a aceite
.
Como se sabe através da cessão de créditos, o credor pode transferir para terceiro a titularidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, a não ser que lei ou convenção o impeçam (artigo 577.º do CCivil).

A cessão de créditos não é em si um contrato, antes um efeito de um negócio jurídico causal de contornos e de âmbito variável. [Cfr. Assunção Cristas, Transmissão Contratual do Direito de Crédito, págs. 77 e 78, com citação de diversos autores no mesmo sentido, entre os quais Menezes Cordeiro, Menezes Leitão ou Pinto Duarte] Traduz uma modificação da relação jurídica, passando a titularidade do direito de crédito da esfera do cedente para a do cessionário. Desde que a cessão seja notificada ou aceite pelo devedor ou seja dele conhecida, nos termos do art. 583º do CC, o cumprimento da correspectiva obrigação deve ser feito perante o cessionário.

Para o efeito importa ponderar que ficou afastada do nosso sistema a solução segundo a qual a cessão de créditos se decompunha em duas fases, sendo a primeira integrada pelo acordo de cessão e a segunda pela notificação do devedor.

O desenho da figura da cessão de créditos que emerge dos artigos 577.º e segs. do CCivil permite concluir, com alguma segurança, que a cessão e a correspondente modificação subjectiva operada na relação creditícia se consumam com a outorga do acordo causal (contrato atípico, compra e venda de créditos, factoring, doação, trespasse, etc.), sendo a sua notificação ou a aceitação mera condição de eficácia externa em relação ao devedor. 

A partir da notificação da cessão (assim como a partir da sua aceitação ou do conhecimento da sua existência), a titularidade do crédito passa para a esfera do cessionário, pelo que o devedor apenas se desobriga se efectuar a este a prestação. [Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II vol., 7ª ed., págs. 310 e segs.

Aliás, diga-se, que a referida construção jurídica já advinha do Código de Seabra, afirmando então Cunha Gonçalves [Tratado de Direito Civil, vol. V, pág. 68.] ser incontestável a legitimidade do cessionário desde que “haja alegado na petição inicial que a origem do seu crédito é a cessão que lhe foi feita pelo anterior credor” 

Como refere Menezes Leitão [In Direito das Obrigações, vol. II, pág. 22.], a “ineficácia do contrato em relação ao devedor constitui um mero limite à tutela do direito de crédito, que não prejudica o facto de o cessionário passar logo a ser perante o cedente o efectivo titular do direito transmitido”.

Trata-se de uma solução sobre a qual a doutrina nacional se manifesta em absoluta uniformidade. [Cfr. Antunes Varela (CC anot. e Obrigações em Geral, vol. II), Menezes Leitão (Direito das Obrigações, vol. II), Assunção Cristas (Transmissão Contratual do Direito de Crédito) e Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, vol. II).

Sem necessidade de mais ilustração, basta que se mencione o que refere Brandão Proença [In Direito das Obrigações-Relatório.]: “Sobre a questão de saber se a eficácia translativa da cessão é processada em duas fases (eficácia imediata em relação às partes do contrato de cessão e eficácia diferida relativamente ao devedor), se há apenas uma eficácia diferida para o momento da notificação do devedor (tese de Mancini) ou se a eficácia translativa é imediata, podendo, no entanto, não ser eficaz em relação ao devedor, é de optar por aquela que nega valor constitutivo à notificação feita pelo cedente ou pelo cessionário, salvaguardada que está a posição do devedor de boa fé que pagou ao credor aparente, isto é, do devedor que não tenha sido notificado ou aceite a cessão nem tenha tido conhecimento dela. Dito de outra forma, o direito de crédito transmite-se imediatamente com o negócio de alienação passando o cessionário a titular do direito”.


[MTS]