"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/02/2017

Jurisprudência (547)


Processo de insolvência;
resolução em benefício da massa insolvente; oponibilidade


1. O sumário de RC 25/10/2016 (130/12.6TBFND-I.C1) é o seguinte:

I – O processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, caracteriza-se por nele intervirem todos os credores do insolvente e ainda porque é tendencialmente atingido todo o património do devedor, ao invés do que ocorre nas execuções singulares (cf. art.ºs 46.º e 47.º do CIRE).

II - Prevê e permite o art.º 120º do CIRE que os actos prejudiciais à massa insolvente que sejam praticados (ou omitidos) dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência possam ser resolvidos em benefício da massa.

III - Conforme decorre do preceituado no n.º 1 do art.º 124º do CIRE, a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má-fé destes (ressalvados os casos de se tratar de sucessores a título universal ou a nova transmissão tiver ocorrido a título gratuito). Este regime é aplicável “com as necessárias adaptações, à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros” (vide nº 2 do preceito).

IV - Daqui decorre que no caso de o transmissário posterior de boa-fé constituir hipoteca sobre bem alienado pelos devedores insolventes que se encontre no património do terceiro adquirente, a resolução não lhe é oponível, subsistindo a hipoteca.

V - Não obstante quanto vem de se referir, cremos que por força do disposto no antes citado art.º 47º, nº 1, o terceiro de boa-fé titular de direitos sobre o bem transmitido, adquire, por força do reingresso do bem na massa insolvente, a qualidade de credor da insolvência, o que ocorre tão logo a resolução do acto translativo lhe seja oposta.

VI - Acresce que produzindo a resolução os seus efeitos, nos termos gerais, com o conhecimento pelo destinatário da declaração resolutiva, esta torna-se inatacável decorrido que seja o prazo de impugnação em relação a todos os que tenham legitimidade para instaurar a ação respectiva.
 
2. Na fundamentação do acórdão encontra-se a seguinte passagem:

"Conforme é sabido, o processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, caracteriza-se por nele intervirem todos os credores do insolvente e ainda porque é tendencialmente atingido todo o património do devedor, ao invés do que ocorre nas execuções singulares (cf. art.ºs 46.º e 47.º do CIRE [...]).

Nos termos deste art.º 47.º, “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio” (vide n.º 1). E consoante dispõe o n.º 3 do preceito “São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decurso do processo”.

Conforme anotam os Profs. J. Labareda e C. Fernandes [CIRE Anotado, 2.ª edição, comentário ao art.º 47.º, pág. 306] “(…) há a natural consideração de que, uma vez proferida a decisão declaratória da insolvência, todos os credores do devedor passam a ser havidos como credores da insolvência, com a particularidade de fazer abranger nesse universo também aqueles que não sendo, em rigor, titulares de créditos sobre o insolvente, dispõem, todavia, de garantias constituídas sobre bens seus para segurança de dívidas de terceiros” [...].

No caso que nos ocupa, à data da declaração de insolvência dos devedores J... e A..., a ora recorrente não era titular de crédito sobre os insolventes, nem tão pouco a garantia hipotecária incidia sobre bem que integrasse a massa insolvente, donde não lhe poder ser imposto que reclamasse o seu crédito no prazo para tanto fixado na sentença declaratória da insolvência (cf. art.º 128.º, n.º 1).

Todavia, prevê e permite o art.º 120.º que os actos prejudiciais à massa insolvente que sejam praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência possam ser resolvidos em benefício da massa. E tal foi precisamente o que ocorreu no caso em apreço, tendo a Sr.ª AI emitido declaração resolutiva do negócio de compra e venda celebrado entre os devedores e D... tendo por objecto o imóvel identificado.

A resolução, é sabido, consubstancia-se na destruição da relação contratual - que se constituiu validamente - por um dos contraentes, com base em facto posterior à celebração do contrato e com a intenção de fazer regressar as partes à situação em que se encontrariam se não o tivessem celebrado [Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, 4ª ed., pág. 265]. Com a resolução dá-se, assim, a extinção do vínculo contratual, efeito extintivo que se produz logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (art.º 224.º, n.º 1 do Código Civil).

Nos termos do art.º 433.º do mesmo diploma legal, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico tendo, via de regra, eficácia retroactiva (vide n.º 1 do art.º 434.º e n.º 1 do art.º 289.º ainda do CC). Visando colocar as partes na situação em que estariam caso não tivessem celebrado o contrato, pretende-se, por esta via, restabelecer o “status quo ante” [Pedro Romano Martinez, “Da cessação do contrato”, 2.ª edição, pág. 190].

Dissolvido o vínculo contratual, e como efeito da resolução, cada uma das partes terá pois de restituir à contraparte tudo o que indevidamente mantenha em consequência da cessação. A retroactividade dos efeitos implica assim e fundamentalmente a restituição das prestações efectuadas, ficando as partes adstritas à obrigação de devolver as prestações que hajam recebido em cumprimento do contrato (art.º 289.º, n.º 1), devendo as obrigações recíprocas ser cumpridas simultaneamente (cf. art.º 290.º).

Não se afastando do modelo de resolução extrajudicial consagrado no Código Civil, também o CIRE prevê que a resolução se faça por mera declaração às partes contratantes -pese embora se trate de uma resolução vinculada à verificação de determinados pressupostos, os quais deverão ser revelados pelo Sr. AI - ainda que se exija como formalidade mínima o envio de carta registada com a/r (cf. art.º 123.º). E a declaração resolutiva, uma vez conhecida do declaratário (ou por ele cognoscível) tem como consequência o reingresso do bem transmitido na massa insolvente (cf. art.º 126.º, n.º 1, que estabelece a retroactividade dos efeitos da resolução, “devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso”).

No entanto, conforme decorre do preceituado no n.º 1 do art.º 124.º - e num desvio ao regime regra do art.º 435.º do CC - a resolução é oponível a terceiros a quem tenham sido transmitidos os bens objecto do negócio resolvido quando a transmissão tenha sido feita a título gratuito, independentemente da boa ou má-fé do transmissário, e quando a transmissão, ainda que onerosa, tenha sido feita a transmissário de má-fé (e também nos casos, que aqui não relevam, de se tratar de sucessores a título universal do transmitente). Este mesmo regime é aplicável “com as necessárias adaptações, à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros” (vide n.º 2 do preceito).

Resulta do preceito a que nos vimos reportando que no caso de terceiro de boa-fé, como é aqui a apelante, constituir hipoteca sobre bem alienado pelos devedores insolventes que se encontre no património do terceiro adquirente, a resolução não lhe é oponível, subsistindo a hipoteca, tal como, de resto, foi reconhecido pela Sr.ª AI [...]. Sendo esta a solução que decorre do dispositivo em referência, ainda reintegrando o bem a massa insolvente por força da resolução operada, pareceria que, faltando ao terceiro transmissário de boa-fé - no caso o banco apelante, na qualidade de credor hipotecário do adquirente que foi contraparte dos devedores no negócio translativo - a qualidade de credor dos insolventes (posto que é titular de um crédito, mas sobre o adquirente ou primeiro transmissário), não poderia reclamar tal crédito na insolvência, daqui decorrendo que o bem só poderia ser liquidado enquanto bem onerado, por não ser então possível extinguir a hipoteca [Solução esta que, de resto, e num desvio à regra geral do n.º 2 do art.º 824.º do CC, vem prevista no n.º 5 do art.º 164.º para o caso de o bem ter sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, exceptuadas as situações previstas na parte final da disposição. Parece ser também o entendimento defendido pelo Prof. M Teixeira de Sousa [...] quando escreve a propósito da “Posição do transmissário posterior na sequência de uma resolução em benefício da massa insolvente].

Não obstante quanto vem de se referir, cremos que por força do disposto no antes citado art.º 47.º, n.ºs 1 e 3, o terceiro de boa-fé titular de direitos sobre o bem transmitido, adquire, por força do reingresso do bem na massa insolvente, a qualidade de credor da insolvência, o que ocorre tão logo lhe sejam dados a conhecer os efeitos da resolução do acto translativo.

A apelante faz notar que a retroactividade por lei associada à resolução sofre naturalmente as limitações decorrentes do seu carácter relativo, invocando que “(…) a resolução tem, em princípio, o seu espaço de eficácia confinado às partes da particular relação contratual a que visa pôr fim, não atingindo os direitos que com origem em qualquer dos pólos de tal relação - maxime com origem no destinatário da declaração - terceiros hajam medio tempore adquirido” [Do parecer proferido no P.º RP 202/2008 SJC-CT [...]].

Pois bem, na natureza receptícia da declaração resolutiva, faz assentar alguma doutrina a conclusão de que, tendo a resolução em benefício da massa por finalidade extinguir o acto que foi realizado pelo devedor insolvente, a declaração não carece de ser dirigida ao terceiro transmissário, tanto mais que o já citado art.º 124.º “permite opor a resolução do acto (…) aos sucessivos transmissários que tenham actuado de má-fé” [Gravato de Morais, “A resolução em benefício da massa insolvente no CIRE”, págs. 150-151. Todavia, em sentido contrário, defendendo a necessidade da comunicação a terceiro, ainda que no caso de resolução incondicional, como forma de lhe opor a resolução, acórdão da Relação de Lisboa de 23/10/2014, processo n.º 5572/10.9TBCSC-G.L1-8 [...]]. Abre-se aqui um parêntesis para referir que a oponibilidade, pressupondo embora a má-fé do transmissário (com as já assinaladas excepções de estarmos perante acto gratuito ou sucessão universal), funciona sem qualquer limitação quanto ao número de transmissões, devendo entender-se como transmissário posterior “no quadro do art.º 124.º, n.º 1 do CIRE (…) o transmissário sucessivo por referência àquele que contratou com o insolvente.

Desta sorte, terceiro transmissário, para efeitos da oponibilidade da resolução, é um qualquer transmissário da contraparte do devedor do insolvente, ou ainda um qualquer ulterior transmissário, para quem foram transmitidos, definitiva ou temporariamente, bens ou constituídos direitos sobre esses mesmos bens” [Prof. Gravato de Morais, ob. cit., págs. 174 e 178].

Seja qual for o entendimento perfilhado quanto à necessidade de dirigir a declaração resolutiva apenas às contrapartes no negócio prejudicial ou ainda aos transmissários a quem a resolução é oponível, o que parece incontroverso é que o terceiro afectado tem legitimidade para impugnar o acto resolutivo, em acção para tanto instaurada nos termos e prazos previstos no art.º 125.º, o que só poderá fazer a contar da data do conhecimento da resolução e seus fundamentos. Com efeito, não nos dizendo embora o preceito a quem é reconhecida legitimidade activa para a impugnação, “Em termos gerais, ela tem de caber a quem é afectado pela resolução; assim, desde logo, à outra parte no acto resolvido, mas também a terceiros a quem a resolução seja oponível” [Profs. Carvalho Fernandes e J. Labareda, CIRE anotado, 2.ª edição, comentário ao art.º 125.º, págs. 538/539 e Gravato de Morais, ob. cit., pág. 166]."
 
[MTS]