"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/02/2017

Jurisprudência (551)


Factos complementares; factos instrumentais;
consideração oficiosa

1. O sumário de  RE 3/11/2016 (232/10.3T2GDL.E1) é o seguinte: 

I- A consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados, bem como dos factos meramente instrumentais, não depende já de requerimento da parte interessada nesse aproveitamento para que ele aconteça. 
 
II- Presentemente, o juiz pode considerá-los mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que a parte tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos. 
 
III- A indemnização será justa na medida em que corresponda ao valor do dano material suportado pelo expropriado, ou seja ao valor de mercado ou de compra e venda dos bens afectados pela expropriação.
 
IV- As conclusões apresentadas pelos peritos – unanimemente ou por maioria, preferindo-se as que provêm dos peritos nomeados pelo tribunal, pela maior equidistância relativamente às partes – só devem ser afastadas se o julgador, nos seus poderes de livre apreciação da prova, decorrentes dos artigos 655º e 591º do Código de Processo Civil, quando se constata que foram elaboradas com base em critérios legalmente inadmissíveis ou desadequados, ou quando se lhe deparam erros ou lapsos evidentes, que importem correcção.
 

2. Da fundamentação do acórdão retira-se a seguinte parte:
 
"A apelante afirma que o Tribunal «a quo» determinou como factos provados circunstâncias que não foram alegadas pelas partes [...] e que decorrem tão só do relatório de avaliação subscrito pelos Senhores Peritos indicados pelo Tribunal.

Prescreve o artigo 5º, nº 2, do Código de Processo Civil que, para além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo Juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções [...].

O princípio da aquisição processual está precipitado no artigo 413º do Código de Processo Civil, sendo que, por essa via, «o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las».

O Tribunal, no julgamento da matéria de facto, deve procurar tomar em consideração e atender a todas as provas produzidas nos autos, mesmo que elas aproveitem à parte contrária, ou mesmo que respeitem a factos (instrumentais) que, não tendo sido expressamente alegados, resultem da instrução e do julgamento da causa [Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra 2007, pág. 162].

Os factos essenciais devem ser alegados e provados pelas partes, mas o juiz pode atender aos factos notórios (artigo 512º do Código de Processo Civil) e aos factos instrumentais, não alegados pelas partes, que resultem da instrução e do julgamento [...].

Quanto aos factos instrumentais, o Tribunal pode não só investiga-los, como ordenar quanto a eles as actividades instrutórias que possam ser de iniciativa oficiosa; pelo contrário, quanto aos factos essenciais, o tribunal não possui poderes inquisitórios, pelo que, relativamente a eles, só pode ordenar as actividades oficiosas de instrução legalmente permitidas [...].

Isabel Alexandre [A Fase de Instrução no Processo Declarativo Comum, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa 1997, pág. 280] salienta que os factos que se pretendem provar podem ser factos instrumentais ou factos essenciais complementares ou concretizadores e, como tal, não terem sido alegados pelas partes nos articulados, atendendo a que o artigo 264º, nº1 (a que corresponde actualmente o artigo 5º do Código de Processo Civil), apenas estabelece um ónus de alegação dos factos que integram a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as excepções.

Lopes do Rego ensina que «factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material», enquanto que «factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu» [Comentário ao Código de Processo Civil, pág. 201].

Teixeira de Sousa [Introdução ao processo Civil, pág. 52] ensina que se trata de factos que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais. 

No domínio da anterior legislação Lebre de Freitas [A Acção Declarativa, pág. 141] referia que «os factos que completem ou concretizem a causa de pedir ou as excepções deficientemente alegadas podem também ser introduzidos no processo quando resultem da instrução da causa; mas, neste caso, basta à parte a quem são favoráveis declarar que quer deles aproveitar-se, assim observando o ónus da alegação. A necessidade desta declaração, decorrente do princípio do dispositivo estava expressa no anterior art. 264-3 ("desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório") e está implícita na formulação do actual art. 5-2-b ("desde que sobre eles [as partes] tenham tido a possibilidade de se pronunciar"): a pronúncia das partes, ou de uma delas (normalmente a que é onerada com a alegação do facto: "a parte interessada"), terá de ser positiva (no sentido da introdução do facto no processo), pois de outro modo seria violado o princípio do dispositivo, em desarmonia com a norma paralela do art. 590-4. A alteração de redacção tem apenas o significado objectivo de frisar que a alegação pode provir de qualquer das partes, atendendo a que o facto em causa não altera nem amplia a causa de pedir (como o do art. 265-1) ou uma excepção, apenas completando ou concretizando uma causa de pedir ou uma excepção já identificada».

A grande diferença em relação ao anterior Código de Processo Civil é que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende já de requerimento da parte interessada nesse aproveitamento para que ele aconteça, como exigia o artigo 264º, nº3, daquele diploma. 

Presentemente, o juiz pode considerá-los mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que a parte tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos. E o mesmo sucede com os factos meramente instrumentais. 

A matéria controvertida reporta-se a factos instrumentais, esta factualidade integrava o objecto da perícia e os mandatários das partes tiveram oportunidade de a debater. Adicionalmente, os factos em apreço surgem como elementos complementares necessários à boa compreensão das características da parcela expropriada e estão integrados no contexto-lógico factual que presidiu à interposição de recurso formulado pelos expropriados nos termos e abrigo do disposto no artigo 52º do Código das Expropriações.


3. [Comentário] A circunstância de, no art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC, ter deixado de se exigir a concordância da parte quanto ao aproveitamento pelo tribunal do facto complementar adquirido durante a instrução da causa não foi acidental, nem é inócua. A solução é orientada pela busca da verdade em processo, entendendo-se que nada pode justificar que a parte possa impedir o tribunal de utilizar na sua actividade decisória um facto de que o tribunal tem conhecimento. Se, por exemplo, o tribunal tomar conhecimento, durante o processo, de um facto que torna nulo o contrato celebrado pelas partes, não é aceitável que alguma das partes possa obstar à consideração desse facto com o argumento de que não lhe interessa o reconhecimento daquele desvalor do contrato.

Uma coisa é a parte ter disponibilidade quanto aos factos que quer alegar; outra bem diferente é a parte ter disponibilidade sobre um facto que o tribunal apurou e poder impedir o tribunal de o considerar na apreciação da acção. O princípio dispositivo só respeita àquele primeiro aspecto, pelo que a consideração pelo tribunal de um facto apurado em juízo, mas não alegado pelas partes, nunca pode ser vista como uma violação daquele princípio. 
 
[MTS]