"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/02/2017

Jurisprudência (560)


Reconhecimento de decisão estrangeira;
ordem pública


I. O sumário de RE 3/11/2016 (155/14.7TREVR) é o seguinte:

1. Na ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português é aferido pelo resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto.

2. A partilha feita em ação de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, bens comum do casal (dois bens imóveis, um sito em New Jersey USA e outro em Porto Alto, Portugal, e um automóvel), viola a ordem pública internacional do Estado Português.

3. E isto, porque segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido, visto que por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o bens, sendo comuns jamais poderiam ser atribuídos em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas).

II. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte: 

"Como se salienta no Ac. do TRL de 24/01/2012 no processo 389/11.6YRLSB.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, “nos termos do art. 980º, alínea f), para que a sentença seja confirmada é necessário “que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”, preceito que surge em consonância com o art. 22º do Cód. Civil, que obsta à aplicação da lei estrangeira “quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português”.
 
Como vem sendo sistematicamente afirmado, a restrição é imposta em função de princípios de ordem pública internacional, e não de ordem pública interna.[...] 
 
“O conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la”. [Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2000, 410].
 
Quanto ao que define as normas de ordem pública internacional, a doutrina tem distinguido vários caracteres. Para uns, o traço essencial destas leis é o de salvaguardarem interesses fundamentais do Estado ou da comunidade local, outros consideram que são de ordem pública as disposições imperativas da lei nacional, avançando no entanto que nenhum critério serve, em absoluto, para distinguir este tipo de normas.”
 
Na mesma linha de orientação refere-se no Ac. do TRC de 03/03/2009, no processo 237/07.1YRCBB disponível em www.dgsi.pt que “A lei (arts. 22º do CC e 980 f) do CPC) não define o conceito de “ordem pública internacional“, tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.
 
 O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
 
Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um “exame global”.
 
Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja “manifestamente incompatível” com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (cf. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. I, 584 e segs., vol. III, pág.368 e segs), MARQUES DOS SANTOS, Aspectos do Novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, 140).”
 
No caso presente não podemos deixar de ter em consideração que o requerido não esteve presente na diligência em que se proferiu a decisão de divórcio e partilha de bens, a rever, tendo sido editalmente notificado, o que certamente não lhe permitiu até que lhe fosse assegurada uma defesa adequada. A requerente não questiona, antes reconhece, que os dois imóveis e o automóvel fossem bens comuns do casal.
 
De modo que, na esteira do entendimento seguido no aludido acórdão do TRC, que iremos seguir de perto, com as necessárias adaptações, diremos:
 
A requerente e o requerido, ambos de nacionalidade portuguesa, casaram em 10/03/1984, sem convenção antenupcial, ou seja, no regime supletivo da comunhão de bens adquiridos, que se traduz na participação de ambos os cônjuges, meio por meio, em todos os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento, que não sejam excetuados por lei (arts.1717º, 1724º, 1725º, 1730º do CC).
 
O art.º 1714 nº 1 do CC consagra o princípio da imutabilidade do regime de bens, o que implica a proibição da modificação concreta da situação dos bens dos cônjuges, e deve entender-se em sentido amplo, por ser aplicável não só ao regime convencionado, mas também ao regime supletivo (cf. PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª ed., pág.488).
 
Tratando-se de uma norma imperativa, verifica-se, desde logo, que a sentença revidenda viola a ordem pública interna nacional, já que por força da imutabilidade, não podem bens comuns ser atribuídos em propriedade exclusiva a qualquer deles. Contudo, deve questionar-se se também afronta a ordem pública internacional.
 
Para o Cons. QUIRINO SOARES a norma do art.1714º do CC é “porta-voz de um princípio de ordem pública internacional do Estado português” (Lex Familiae, ano 3, nº 5, 101). Diversamente, P. LIMA/A. VARELA (Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., 89), doutrinam que “o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, fixado como regra no direito português, não é, pois, um princípio de ordem pública internacional “, face às regras dos arts. 52º e 54º do CC, doutrina acolhida no Ac RL de 23/10/2008, proc. nº 637/2008 ( em www dgsi.pt) no sentido de que a imutabilidade do regime de bens do casamento estabelecida no art.1714º do CC não é princípio de ordem pública internacional.
 
Embora na sentença revidenda não se afirme expressamente a contitularidade dos bens por parte de ambos os cônjuges, dela se pode retirar, designadamente no que se refere aos dois imóveis que os mesmos faziam parte do acervo patrimonial do casal dada a formulação que consta na sentença onde se fez constar que o requerido ”deixará de ter quaisquer direitos de propriedade ou outros direitos, sejam eles equitativos ou outros…”, sendo que o própria requerente aceita a comunhão dos bens.
 
Pertencendo os bens a ambos os cônjuges, a deslocação compulsiva da transferência do direito do requerido para a requerente, sem qualquer contrapartida, imposta coativamente na sentença revidenda, viola a ordem pública internacional do Estado Português. Isto porque, a nosso ver, se reconduz à violação do direito de propriedade, constitucionalmente garantido (art. 62º da CRP) e a uma espécie de expropriação particular sem qualquer indemnização, o que, ressalvando o devido respeito, evidencia um enriquecimento injustificado da requerente à custa do requerido.
 
O direito de propriedade, constitucionalmente garantido, abrange, além do mais, o direito de não ser privado dela, impondo a lei a indemnização para a hipótese de expropriação.
 
Neste contexto, o reconhecimento da sentença revidenda, no segmento decisório, relativamente à partilha dos bens do casal, conduziria a um resultado não permitido pelos princípios fundamentais do Estado de Direito.
 
É que mesmo a conceber-se a atribuição exclusiva dos bens comuns à requerente como sanção pelo desinteresse do requerido em relação ao casamento, dando causa à situação de rutura matrimonial (factos que não foram invocados, nem estão demonstrados, atendendo a que o fundamento do divórcio e apenas a “separação há mais de dezoito meses”) e comprometendo a possibilidade de vida em comum, há que convir que tal sanção, é notoriamente desproporcionada.
 
Neste contexto, afigura-se que o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, viola a ordem pública internacional do Estado Português.
 
Nestes termos, sendo os segmentos decisórios da sentença (dissolução do casamento e partilha de bens) dissociáveis, haverá apenas que confirmar a sentença proferida em 07/10/2013 pelo Supremo tribunal de New Jersey no que se refere à dissolução do casamento por divórcio, excetuando-se o segmento decisório relativo à partilha dos bens."
 
[MTS]