"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/02/2017

Jurisprudência (563)



Processo de inventário; caso julgado;
 comunhão de bens; partilha dos bens comuns 


I. O sumário de RL 27/10/2016 (3935/04.8TBSXL-I.L1-2) é o seguinte:

1. O caso julgado consiste na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do seu trânsito em julgado.
 
2. O objectivo do caso julgado é evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma causa anterior. E. de harmonia com o critério formal expresso e desenvolvido no artigo 581.º do C.P.C., repete-se uma causa quando se verifica a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
 
3. Consolidada uma decisão no decurso do processo de inventário, relativa aos créditos constituídos após a declaração de divórcio, não pode o requerente do inventário, através de um incidente autónomo, apenso ao inventário, havendo identidade subjectiva, suscitar, com igual fundamento, a mesma questão anteriormente decidida.
 
4. A regra no processo de inventário é de que devem ser decididas definitivamente no seu âmbito todas as questões de facto de que a partilha dependa.
 
5. As compensações entre cônjuges, diferentemente dos créditos entre cônjuges, verificam-se entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges e somente têm lugar nos regimes de comunhão.
 
6. São dois os elementos que autorizam a que o juiz, em processo de inventário, ou num dos seus incidentes, ainda que deduzido autonomamente, remeta os interessados para os meios comuns: a) A complexidade da matéria de facto; b) essa complexidade torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes.
 

II. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:

"O caso julgado implica, consequentemente, dois efeitos processuais relevantes: um efeito negativo, que se resolve na insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo aquele que proferiu a decisão, de se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida; um efeito positivo, que se traduz na vinculação do tribunal que proferiu a decisão (ou eventualmente, qualquer outro tribunal), ao que na mesma decisão se declarou e definiu. [...]

Assim, e regra geral, proferida que seja uma decisão recorrível, sempre poderá a parte que com a mesma se sente prejudicada, contrariá-la, mediante a devida impugnação. Se do conteúdo decisória de uma sentença ou um despacho não for interposto recurso, podendo sê-lo, essa decisão torna-se obrigatória dentro do processo.

O caso julgado tem, pois, por objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma causa anterior. E, de harmonia com o critério formal expresso e desenvolvido no artigo 581.º do C.P.C., repete-se uma causa quando se verifica a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

No caso vertente, e no que respeita à identidade subjectiva, é patente que a mesma se verifica, pois que as partes intervenientes são as mesmas, quer no inventário, quer no incidente anómalo deduzido pelo requerente, apenso ao inventário.

A pretensão e o fundamento invocado neste incidente são os mesmos que decorrem da posição já manifestada pelo requerente, no inventário e que esteve na origem da decisão proferida em 20.03.2014.

Consolidada que se encontra essa decisão de que os créditos constituídos após a declaração do divórcio – logo as prestações alegadamente pagas pelo requerente após a data da sentença que decretou o divórcio - só poderiam ser considerados em acção autónoma e não no inventário, tal decisão transitou em julgado, tornando-se obrigatória, quer dentro do processo de inventário, quer no incidente anómalo apenso ao inventário deduzido pelo requerente, não podendo já ser alterada.

Com efeito, o prestígio da função judicial e a segurança jurídica sempre impediriam que depois de suscitada e decidida a questão no inventário, sem que dessa decisão haja sido interposto recurso, a mesma questão pudesse voltar a ser novamente discutida, entre as mesmas pessoas que já anteriormente sobre ela se pronunciaram ou tiveram plena possibilidade de o fazer.

Mas, ainda que assim se não entendesse – como se entende - e sem apreciar a bondade da decisão proferida no processo de inventário, a verdade é que as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam [...] pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bens (artigos. 1688º e 1795º-A do Código Civil). A lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção de divórcio ou à data da cessação da coabitação entre ambos.

E, cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal, recebendo cada cônjuge na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (artigo 1689º, n.º 1, do Código Civil).

Dispõe, por sua vez, o artigo 1689º, nº 3, do Código Civil, referente ao pagamento de dívidas aquando da partilha do casal, que “os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor”.

No que concerne ao pagamento de dívidas do casal, o artigo 1697º, nº1 do Código Civil estatui a compensação nos seguintes termos: “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime de separação”.

E o nº 2 do mencionado preceito refere que “Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha”.

Existe, pois, uma preocupação legal, expressa nos artigos 1689º, nº 1 e 1730º, nº 1, ambos do Código Civil, para que na liquidação e na partilha do património comum haja um equilíbrio no rateio final, de forma a que o património individual de cada um dos cônjuges não fique nem beneficiado nem prejudicado em relação ao outro.

A extinção da comunhão entre os cônjuges dará lugar a uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha, sendo no momento da liquidação que se deverá proceder às compensações entre os patrimónios próprios e comuns.

É inegável que a inexistência de compensação entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre seria susceptível de implicar que um deles, no momento da partilha, ficasse enriquecido em detrimento do outro – v. a propósito, LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Centro de Estudos Fiscais, 1996, 513 a 516.

Há, porém, que fazer uma distinção entre as verdadeiras compensações e os créditos entre os cônjuges. As compensações verificam-se entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges e, assim, só têm lugar nos regimes de comunhão. Ao invés, os créditos entre cônjuges são os que existem entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, sem intervenção do património comum, admissíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo.

Só haverá, portanto, verdadeiras compensações, quando se verifique um relacionamento entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges. É o que sucede com as situações previstas nos artigos 1682º, nº 4, 1697º, 1722º, nº 2, 1726º, nº 2, 1727º, 2ª parte e 1728º, nº 1 in fine, todos do Código Civil, nos quais se referem expressamente “compensações” devidas pelo património comum ao património próprio de um dos cônjuges, ou por este àquele.

A indivisão que permanece entre a dissolução do regime de bens e a partilha do património conjugal comum tem uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal.

Alguma doutrina e jurisprudência sustenta que a natureza do património conjugal comum só termina com a partilha dos bens comuns - v. CRISTINA M. ARAÚJO DIAS, Processo de inventário, administração e disposição de bens (conta bancária) e compensações no momento da partilha dos bens do casal – comentário ao Ac.R.E.de 21.01.2002, Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, ano I, n.º 2, 2004, 117, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.1998 (Pº 98A1085) e Ac. R. L. de 12.07.2001 (Pº 0074946), acessíveis em www.dgsi.pt.

Defendem uns, que se verifica uma transformação da comunhão conjugal em compropriedade e, consequentemente, a aplicação àquela das normas desta - cf. VAZ SERRA, RLJ Ano 105º, 159 e Ac. R.E. de 02.02.1984, CJ, I, 288.

Outro entendimento aproxima essa indivisão que permanece entre a dissolução do regime de bens e a partilha do património conjugal comum, da comunhão hereditária – v. PEREIRA COELHO E GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. I, 689, ao referirem que: cada ex-cônjuge pode dispor da sua meação, bem como pode pedir a separação de meações, mas isso não significa que os bens comuns deixem de ser um património comum e passem a pertencer aos dois cônjuges em compropriedade”.

O direito à compensação atribuído ao cônjuge que satisfaça, com bens próprios, dívidas comuns, nasce e constitui-se sobre o outro cônjuge com a extinção dessas dívidas, mas só é exigível, aquando da partilha.

O ex-cônjuge titular desse direito à compensação tem o ónus de demonstrar, não só a extinção de dívidas comuns com os seus próprios bens, mas também que esse resultado só foi alcançado com uma contribuição da sua parte superior àquela a que o mesmo estava legal e/ou convencionalmente obrigado, a qual pode ser igual ou diferente da do outro cônjuge. Pode, pois, gerar-se uma descompensação patrimonial que a o outro ex-cônjuge tem o dever de colmatar em igual medida, isto é, na proporção de metade.

Sucede, porém, que ao ex-cônjuge devedor compete demonstrar todos os factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito, entre os quais qualquer factualidade susceptível de diminuir ou extinguir o valor do crédito por este reclamado, por forma a repercutir os seus efeitos nos créditos de que o ex-cônjuge invoca.

Ora, no caso vertente, e não obstante o que acima ficou dito acerca do caso julgado formal que aqui tem de ser observado, o certo é que, em face da alegação das partes, com relação os eventuais créditos invocados pelo requerente e, contrapostos pela alegação da requerida (cabeça de casal no inventário), com relação a eventuais “compensações” que devem ser tidas em consideração (utilização da casa de morada de família, rendimentos provenientes da utilização dos imóveis e se com eles foram pagos os empréstimos), forçoso é concluir que o apuramento desse invocado direito de crédito/direito à compensação que o requerente entende lhe ser devido, e que a requerida contesta com base na factualidade invocada, implicará necessariamente uma análise mais detalhada e com maiores garantias processuais para ambas as partes e que se não lograria obter através do processo de inventário, e muito menos através de um incidente autónomo e anómalo, apenso ao processo de inventário.

Nestes termos, bem decidiu o Tribunal a quo ao remeter as partes para os meios comuns, tal como já fora decidido no despacho de 29.03.2014, proferida no processo de inventário."

[MTS]