"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2017

Correcção a "As declarações de parte. Uma síntese"




No paper do Senhor Dr. Luís Pires de Sousa intitulado "As declarações de parte. Uma síntese" é sugerido, na pág. 8, que eu sustento a possibilidade de o declarante de parte ser compelido pelo tribunal a responder sobre factos criminosos ou torpes de que seja arguido, ou seja, é sugerido que eu sustento que ao declarante de parte não assiste o direito de recusa de prestação de depoimento sobre tais factos.

Esclareço que essa não é a minha posição, nem tal decorre da leitura do trecho do meu artigo que o Senhor Dr. Luís Pires de Sousa cita.

Nesse artigo eu limitei-me a sustentar que, em sede de declarações de parte, não vigora uma proibição de tema de prova quanto a factos criminosos ou torpes, diversamente do que sucede em sede de depoimento de parte. Ora da inexistência de uma proibição de tema de prova nada se infere quanto à existência ou inexistência de um direito de recusa de colaboração para a descoberta da verdade. Sobretudo quando se diz, como eu disse, que "o legislador consente que a parte solicite ser ouvida sobre um facto dessa natureza".

Sobre a figura da proibição de tema de prova (justamente com o exemplo do depoimento de parte relativo a factos criminosos ou torpes de que a parte seja arguida), veja-se o meu "Provas ilícitas em processo civil", Almedina, 1998, págs. 53-54. Sobre a figura da recusa legítima de colaboração na descoberta da verdade, veja-se a mesma monografia, nomeadamente págs. 203-204.

Isabel Alexandre


28/04/2017

Bibliografia (506)


-- Frind, F., Praxishandbuch Privatinsolvenz, 2.ª ed. (C. H. Beck: München 2017)



 

Paper (282)


-- Caponi, R., Processo civile e complessità (via academia.edu)




Jurisprudência (608)



Notificação judicial avulsa;
CCitNot; Reg. 1393/2007


I. O sumário de RL 20/12/2016 (19815/16.1T8LSB-A.L1-7) é o seguinte:

1. Nos termos do nº 2 do art. 8º da CRP, as normas constantes da Convenção de Haia de 1965 vinculam o Estado Português.
 
2. Nos termos do nº 4 do mesmo artigo, as normas constantes do Regulamento 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, também, vinculam os Estado português, tendo primazia relativamente às leis internas.
 
3. O referido em 1. e 2. significa que podem ser requeridas citações ou notificações à luz dos referidos instrumentos legais, inserindo-se a notificação judicial avulsa no âmbito das mencionadas notificações.
 
4. Justificando-se a notificação judicial avulsa à luz do direito nacional e permitindo-a a Convenção e o Regulamento, o reconhecimento da competência dos tribunais portugueses para a realizar implica que, em sede de competência territorial, se recorram aos critérios supletivos do artigo 80º do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Não está em causa a natureza da notificação avulsa, nem a admissibilidade da requerida, remetendo-se para o que a este propósito é escrito no despacho recorrido.

O que está em causa é, apenas, aquilatar se o tribunal português, e, concretamente, a comarca de Lisboa, é internacionalmente competente para ordenar a notificação avulsa de requeridos residentes, ou com sede, no estrangeiro.

O tribunal recorrido, louvando-se no disposto nos arts. 79º e 256º do CPC [...], entendeu que era internacionalmente incompetente para o efeito, uma vez que o primeiro dos referidos preceitos (norma de competência interna territorial) afasta tal competência, a que acrescia o facto de, por não se estar no âmbito de uma acção judicial, e a notificação avulsa se caracterizar pelo contacto pessoal do agente de execução, não haver lugar à notificação nos termos previstos no Regulamento 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, e da Convenção de Haia.

Insurgem-se os apelantes contra o decidido, sustentando que quer o Regulamento 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, quer a Convenção de Haia de 1965 vinculam o Estado Português, são de aplicação imediata, e prevalecem sobre as normas de fonte interna, sendo aqueles instrumentos aplicáveis à notificação avulsa, nos mesmos se prevendo a possibilidade de realização da notificação de acordo com a lei da entidade de origem.

Vejamos, começando por referir que, a partilhar-se o entendimento do tribunal recorrido, ficam os requerentes/apelantes privados da possibilidade de exercer um direito que a lei lhes reconhece, como o próprio tribunal recorrido entendeu, ao referir as situações em que se poderá lançar mão da notificação avulsa.

Pretendendo os requerentes propor acção judicial contra os requeridos para serem ressarcidos de alegados danos sofridos por força de responsabilidade contratual ou extra-contratual destes, lançaram mão da presente notificação avulsa com vista a interromper quaisquer prazos de prescrição eventualmente aplicáveis.

Residindo algumas das pessoas a notificar no estrangeiro, como se faz essa notificação e qual o tribunal em que se há-de requerer a notificação avulsa?

Tal como sustentam os apelantes, na resposta a dar a tal questão hão-de ser, necessariamente, ponderadas as normas concretamente aplicáveis, nomeadamente o referido Regulamento e Convenção, e o disposto na Constituição da República Portuguesa, concretamente o seu art. 8º.

Nos termos do nº 2 do referido artigo [...], as normas constantes da Convenção de Haia de 1965 [...] vinculam o Estado Português.

E nos termos do nº 4 do mesmo artigo [...], as normas constantes do Regulamento 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, também, vinculam os Estado português [...].

E para além de vincular o Estado Português, o Regulamento tem primazia relativamente às leis internas. [..]

Isto a significar que podem ser requeridas citações ou notificações à luz dos referidos instrumentos legais.

No âmbito das mencionadas notificações insere-se a notificação judicial avulsa.

Como escreveu o Cons. Salazar Casanova, no artigo “Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000. Princípios e Aproximação à Realidade Judiciária”, publicado na ROA, Ano 62, Dezembro de 2002, pág. 777 e ss., com manifesta aplicação ao Regulamento 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, que revogou aquele [...], “O presente Regulamento abrange matéria civil e comercial, incide sobre actos judiciais e extrajudiciais que devam ser transmitidos de Estado-Membro para Estado-Membro tendo em vista a citação ou a notificação. … O Regulamento não nos dá nenhuma noção de acto judicial ou extrajudicial. Acto judicial é seguramente aquele que está associado a um procedimento judicial. No entanto, o facto do acto pretendido ser prévio ou de alguma forma independente da efectiva instauração de um procedimento (v.g. notificação judicial avulsa requerida pelo senhorio visando a denúncia do contrato de arrendamento de duração limitada: artigo 101º do RAU) não exclui do âmbito do Regulamento sob pena de privação de direitos que só se podem fazer valer nas acções competentes (…). É claro que se suscita, neste domínio, um problema prévio que é o de saber em que termos um interessado pode pedir, no Estado em que se proponha instaurar a acção, a notificação judicial avulsa de quem deixou de residir nesse Estado (ver artigo 84º do CPC [...]) mas não parece que se lhe deva impor a realização de um acto no território de outro Estado-Membro que pode mesmo não prever para o caso esta figura processual. Esta figura não deverá merecer tratamento diferente do caso em que a parte, requerendo a notificação judicial avulsa pressupondo a residência do arrendatário no local arrendado (ou seja, nos termos do artigo 84º do CPC), ao verificar, face à certidão negativa, que o inquilino se ausentou para o estrangeiro, solicite então ao tribunal a notificação nos termos do Regulamento”.

E em nota de rodapé acrescenta que “Justificando-se a notificação judicial avulsa à luz do direito nacional e permitindo-a o Regulamento, o reconhecimento da competência dos tribunais portugueses para a realizar implica que, em sede de competência territorial, se recorram aos critérios supletivos do artigo 85º do CPC [Que corresponde ao actual art. 80º]”.

Não obstante no referido artigo se exemplifique com a notificação judicial avulsa requerida pelo senhorio, tal não significa que não seja aplicável a outras situações, nomeadamente a do caso sub judice, em que, privar os requerentes da notificação judicial avulsa para interromper eventuais prazos de prescrição aplicáveis, seria privá-los, em última análise, do próprio direito de acção que pretendem vir a exercer.

As notificações requeridas justificam-se à luz do direito português, como referiu o tribunal recorrido, e são admissíveis à luz do Regulamento e da Convenção [...].

E nenhum dos referidos instrumentos inviabiliza a realização das notificações por contacto pessoal.

De facto, dispõe o art. 5º da Convenção de Haia de 1965 que “A Autoridade central do Estado requerido procederá ou mandará proceder à citação do destinatário ou à notificação do acto: a) Quer segundo a forma prescrita pela legislação do Estado requerido para as citações ou notificações internas dirigidas às pessoas que se encontram no seu território; b) Quer segundo a forma própria pedida pelo requerente, a menos que a mesma seja incompatível com a lei do Estado requerido”.

E o nº 1 do art. 7º do Regulamento 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, prevê que “A entidade requerida procede ou manda proceder à citação ou notificação do acto, quer segundo a lei do Estado-Membro requerido, quer segundo a forma específica pedida pela entidade de origem, a menos que essa forma seja incompatível com a lei daquele Estado-Membro” [...].

Em face de tudo quanto se deixa escrito, ponderados os instrumentos referidos, o disposto no art. 80º do CPC, e perfilhando o entendimento do Cons. Salazar Casanova, conclui-se ser o tribunal português, e, no caso, o tribunal da comarca de Lisboa, competente para ordenar a notificação requerida, também relativamente aos requeridos com residência/sede no estrangeiro, procedendo, assim, a apelação, devendo, em consequência, revogar-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro a ordenar as notificações requeridas, nos termos requeridos."



[MTS]


27/04/2017

Jurisprudência (607)


Prescrição;
litigância de má fé;



1. O sumário de RL 20/12/2016 (1220/14.6TVLSB.L1-7) é o seguinte:

I. O Artigo 819º do Código de Processo Civil (correspondente aos atuais artigos 858º e 866º do Código de Processo Civil) consagra uma responsabilidade civil por comportamento processual ilícito e culposo do exequente que atuou sem a prudência normal, o que ocorre quando o exequente instaura execução apesar de conhecer, ou não poder desconhecer, a insusceptibilidade de exercício da pretensão exequenda.
 
II. Para efeitos de aferição da existência de litigância de má fé, a negligência grave deve ser entendida como «imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um».
 
III. A parte deduz pretensão, cuja falta de fundamento não devia ignorar, quando negligencia o dever de indagação quanto à existência de fundamento suficiente para a pretensão que deduz, atuando com desleixo. Para este efeito, basta a demonstração de que era exigível à parte a consciencialização da falta de fundamento da pretensão, não sendo necessário demonstrar que a parte sabia, efetivamente, da falta de fundamento, sob pena de se inviabilizar o funcionamento da regra prevista no Artigo 542º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"O tribunal a quo condenou os autores, como litigantes de má fé, em multa que fixou em cinco UCS bem como em indemnização de € 2.000 (fls. 256 e 306).

Na fundamentação de tal condenação, afirmou o tribunal a quo:

«Ora, face ao que já se deixou dito, conclui-se que os AA. deduziram pretensão cuja falta de fundamento não podiam nem deviam ignorar. Com efeito, os AA. vieram pedir condenação dos RR. pela prática de factos alegadamente ilícitos, socorrendo-se da figura da responsabilidade contratual que sabiam infundada, para contornar a exceção alegada pelos RR. 

Por outro lado, a instauração da presente ação configura um uso dos meios processuais manifestamente reprovável. 

Com a instauração da presente ação os Autores, pretendem obter mais uma possibilidade de se oporem à execução, quando o deveriam ter feito em tempo naquela execução, bem como de obter segunda decisão sobre o processo de arresto, quando, sabem que a oposição deduzida foi julgada improcedente e, apesar de terem interposto recurso, o mesmo foi julgado deserto por falta de alegações, cf. fls. 234.

Instaurar a ação agora, volvidos mais de 10 anos após os factos e após passados todos os prazos legais que ao Autores tinham ao seu dispor para se opor à execução e ao arresto, é uma tentativa de obter o exercício de um direito que a lei não lhes confere, facto que não poderá ser ignorado pelos Autores.»

Sustentam os apelantes que deve ser revogada a sua condenação como litigantes de má fé, designadamente porque:

a) Os Autores limitaram-se a demandar os Réus no pressuposto do exercício legítimo do direito e invocaram factos verdadeiros;

b) A multa aplica é excessiva, não tendo o tribunal averiguado a situação económica dos recorrentes para tal efeito;

c) A decisão violou o princípio da igualdade das partes pois utilizou critério distinto para apreciação da litigância de má fé das Rés.

Apreciando.

Os comportamentos que a lei tipifica como integrando má fé são: 
 
a) dedução de pretensão ou oposição cuja fatal de fundamento, de facto ou de direito, a parte não devia ignorar, ou seja, a parte deve ponderar a razoabilidade da pretensão, evitando-a se não houver fundamento sério para a mesma;

b) alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa, v.g., mentira da parte, negação de factos pessoais que se provam, apresentação de versão de acidente que a parte sabia ser falsa;

c) omissão grave do dever de cooperação; 
 
d) instrumentalização manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com vista a impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (Artigo 542º, nº2 do Código de Processo Civil).

É a violação do dever de boa-fé processual, de forma dolosa ou gravemente negligente, que configura a litigância de má-fé nos termos do Artigo 542º. O dever de boa-fé processual surge consagrado como reflexo e corolário do princípio da cooperação, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos. Em suma, é a violação do dever geral de probidade, consagrado no Artigo 8º do Código de Processo Civil, enquanto conduta ilícita, praticada de forma dolosa (lide dolosa) ou gravemente negligente (lide temerária), que configura a litigância de má-fé.

A negligência grave deve ser entendida como «imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.12.2001, Afonso de Melo, 01A3692. [...]

Nos termos do tipo previsto no Artigo 542º, nº 2, alínea a), litiga de má fé que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamentação não devia ignorar. A «parte atuará ilicitamente se souber ou se devia saber que a sua pretensão, quer atendendo aos aspetos de facto, integradores da potencial causa de pedir, quer atendendo aos efeitos que deles são retirados, através da formulação de um pedido, não é compatível com aquilo que o sistema dita.» - Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, p. 392. Basta que à parte seja exigível esse conhecimento, cabendo à parte indagar se a sua pretensão era fundamentada, no plano de facto e do direito, no caso concreto: «A parte pratica um ato desconforme e provocador de um dano num bem juridicamente protegido porque, antes de agir, devia ter observado os deveres de indagação que sobre ela impendiam; o desconhecimento quando à falta de fundamentação é-lhe imputável, sendo censurável» (Op. Cit., p. 394), tanto relevando a negligência consciente como a negligência inconsciente. A exigibilidade do conhecimento quanto à falta de fundamentação constitui realidade diversa do conhecimento efetivo, sendo que a exigência deste “equivaleria a inviabilizar praticamente o funcionamento da regra» (Op. Cit., p. 393). Na síntese de Paula Costa e Silva, Op. Cit., p. 395,o parâmetro de aferição do dever de diligência da parte consubstancia-se assim: «A generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte.»

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a densificar a litigância de má fé nestes termos:

- « (… ) a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psicossociológico. / Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2003, Quirino Soares, 03B3893);

- A defesa intransigente e reiterada pelo recorrente de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples expediente para protelar a decisão denegadora da razoabilidade da sua posição, pois de contrário, todo aquele que perde pode, só por isso, incorrer em condenação como litigante de má fé (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.4.2005, Araújo Barros, 05B3425);

- A sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correta interpretação da lei não implica por si só, em regra, a qualificação de litigância de má fé na espécie de lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite, no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos, entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, inter alia porque, pela própria natureza das coisas, a certeza jurídica é meramente tendencial (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2003, Salvador da Costa, 03B3909);

- A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542.º, n.ºs 1 e 2, do NCPC. Todavia, se não forem observados, por negligência ou culpa grave, os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, patenteia-se litigância de má fé (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2015, Fonseca Ramos, 36/12);

- A litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se, ainda, que a parte tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.2.2015, Silva Salazar, 1120/11, de 10.12.2015, Clara Sottomayor, 551/06);

- Para que se consubstancie em litigância de má fé, a conduta processual da parte terá de ser qualificável como grave em termos de censurabilidade, o que reclamará sempre uma objetivação ou tradução em factos que não são uma simples convicção íntima do julgador (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2015, João Trindade, 969/03);

- Com a reforma do CPC de 1995, os pressupostos subjetivos da litigância de má fé alargaram-se, sendo que, quem atuar com negligência grosseira, pode ser condenado como litigante de má fé; não obstante, sempre deverá estar presente uma intenção maliciosa ou uma negligência, de tal modo grave, que justifique um elevado grau de reprovação ou censura e idêntica reação punitiva. Não integra tal previsão a atividade recursiva que, só por si, não revele rebeldia, teimosia, deturpação processual de não acatamento das decisões (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.2.2014, João Trindade, 1986/06);

- Hoje (art. 542.º do NCPC que corresponde ao mencionado art. 456.º do CPC/61), a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.3.2014, Salazar Casanova, 1063/11);

- A condenação como litigante de má fé exige o dolo ou uma negligência grave, o que não se verifica quando estejamos perante a construção de uma tese errada (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2014, Távora Victor, 728/09);

- Litiga de má fé a parte que, ao longo do processo, usa de argumentação ilógica e contrária à facticidade assente, e faz uma leitura do contrato discutido que não tem o mínimo apoio na expressão formal deste, assim deduzindo oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, omitindo gravemente o seu dever de cooperação e fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o que logrou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.3.2008, Santos Bernardino, 3843/07).

Ora, no caso em apreço, verifica-se que este é o terceiro processo emergente da ocorrência do mesmo conjunto de factos datados de 2000 a 2003 (a livrança foi preenchida e apresentada a pagamento dm 2003 – fls. 36 v.). Na execução instaurada, os ora Autores remeteram-se a uma posição de inércia, não tendo deduzido qualquer oposição quando o poderiam ter feito tanto mais que sustentam que ocorreu rasuração/viciação dos documentos – cf. Artigo 816º do Código de Processo Civil então vigente. No subsequente processo de arresto, a oposição foi julgada improcedente, face ao que os ora Autores recorreram mas depois deixaram o recurso ficar deserto.

O cidadão comum, em que se inserem os Autores, está ciente que as mesmas questões não podem ser repetidamente discutidas em sucessivos processos porquanto existem prazos perentórios para tal discussão, sendo ainda certo que os autores decaíram expressamente na oposição que deduziram ao arresto. Mesmo o instituto da revisão de sentença está sujeito a um prazo de cinco anos sobre o trânsito em julgado da sentença revidenda – cf. Artigo 697º, nº 2, do Código de Processo Civil. Estando os autores devidamente patrocinados por mandatário, esse sentido comum dos autores tinha que ser reforçado e clarificado pela intervenção do respetivo mandatário na medida em que cabe a este explicitar aos Autores as limitações e infundado da sua pretensão. Se tal foi feito, o que desconhecemos, certo é que não demoveu os autores de virem, mais uma vez, a juízo.

Por outro lado, a tese jurídica em que assenta a petição (a da responsabilidade contratual das Rés) é ostensivamente improcedente e impertinente o que decorre, desde logo, do regime especial da responsabilidade civil consagrado no Artigo 819º do Código de Processo Civil que, de forma clara, inculca que a responsabilidade do exequente assenta no regime da responsabilidade civil extracontratual. Tal tese da responsabilidade contratual foi invocada pelos autores como meio de contornar a questão da prescrição ocorrida.

Em suma, do que fica dito (em especial, face ao histórico processual anterior) resulta que era exigível aos autores a consciencialização da sua manifesta falta de razão ao intentar esta ação. Conforme se refere na jurisprudência citada, a desrazão do seu comportamento é manifesta aos olhos de qualquer um."
 
3. [Comentário] Nada há a objectar ao decidido no acórdão, mas há que referir que o disposto no n.º I do sumário se refere a um obiter dictum sem relevância para a apreciação da causa, dado que os autores da acção nunca deduziram a oposição à execução que constitui requisito da responsabilidade civil do exequente nos termos do art. 858.º CPC. Aliás, por isso mesmo foram condenados como litigantes de má-fé.

MTS




26/04/2017

AECOPs e compensação


1. Tendo presente que, no actual CPC, a compensação deve ser deduzida por via de reconvenção (cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC), tem vindo a discutir-se a aplicação deste regime às acções declarativas especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (conhecidas vulgarmente através do acrónimo AECOPs e reguladas pelo regime constante do anexo ao DL 269/98, de 1/9).

Aparentemente, não deveria haver nenhuma dúvida sobre a solução a dar ao problema acima enunciado. As AECOPs são um processo especial, pelo que, como qualquer processo especial, são reguladas tanto pelas disposições que lhes são próprias, como pelas disposições gerais e comuns (art. 549.°, n.° 1, CPC). Atendendo a que a admissibilidade da reconvenção se encontra regulada no art. 266.° CPC e considerando que este preceito se inclui nas disposições gerais e comuns do CPC, parece não se suscitar nenhumas dúvidas quanto à sua aplicação às AECOPs.

Contra esta solução poder-se-ia invocar que o regime estabelecido no art. 549.º CPC quanto ao direito subsidiariamente aplicável aos processos especiais não vale para os processos especiais "extravagantes", isto é, para os processos regulados fora do CPC. É claro, no entanto, que não é assim. Em particular quanto às AECOPs, basta atentar em que o regime que consta do regime anexo ao DL 269/98 é insuficiente para as regular, pelo que é indiscutivelmente necessário aplicar, em tudo o que não esteja previsto nesse regime, o que consta do CPC.


Contra aquela solução poder-se-ia também alegar que o regime das AECOPs -- nomeadamente, a sua tramitação simplificada e célere -- não é compatível com a dedução de um pedido reconvencional pelo demandado. Sob um ponto de vista teórico nada haveria a objectar a este argumento, dado que a inseribilidade na tramitação da causa constitui um requisito (procedimental) da reconvenção. A ser assim, haveria que concluir que a reconvenção não é admissível nas AECOPs e que procurar soluções alternativas para a invocação da compensação nessas acções.

Contra este argumento existe, no entanto, um contra-argumento de muito peso. É ele o seguinte: se não se admitir a possibilidade de o réu demandado numa AECOP invocar a compensação ope reconventionis, essa mesma compensação pode vir a ser posteriormente alegada pelo anterior demandado como fundamento da oposição à execução (cf. art. 729.°, al. h), CPC); ora, como é evidente, não tem sentido coarctar as possibilidades de defesa do demandado na AECOP e possibilitar, com isso, a instauração de uma execução que, de outra forma, poderia não ser admissível. A economia de custos na AECOP traduzir-se-ia afinal num desperdício de recursos, ao impor-se que aquilo que poderia ser apreciado numa única acção tivesse de ser decidido em duas acções.

Sendo assim, há que concluir que o demandado numa AECOP pode invocar a compensação por via de reconvenção. Se for necessário, cabe ao juiz fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (cf. art. 6.º e 547.º CPC) para ajustar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional.

2. Uma solução alternativa a esta consistiria em defender que a compensação (que é uma forma de extinção das obrigações) deveria ser invocada por via de excepção. No entanto, contra esta solução pode invocar-se o seguinte:

-- A solução não tem qualquer apoio legal; como se disse, o regime da reconvenção consta das disposições gerais e comuns do CPC, pelo que é aplicável a qualquer processo; uma diferenciação quanto à forma de alegação da compensação seria, por isso, contra legem;


-- A solução comunga de todos os inconvenientes da dedução da compensação por via de excepção; um dos mais significativos é o de que, atendendo a que a decisão sobre as excepções peremptórias não fica abrangida pelo caso julgado material (cf. art. 91.°, n.° 2, CPC), se o contracrédito invocado na AECOP pelo demandado vier a ser reconhecido nessa acção, não é possível invocar a excepção de caso julgado numa acção posterior em que se peça a condenação no pagamento do mesmo contracrédito e, se o contracrédito alegado pelo demandado na AECOP não vier a ser reconhecido nessa acção, ainda assim é possível procurar obter o seu reconhecimento numa acção posterior; qualquer destas soluções é absurda (sendo, aliás, por isso que a reconvenção como forma de alegar a compensação judicial é totalmente correcta, porque é a única que evita as referidas consequências).


3. O que se disse a propósito da dedução da reconvenção para fazer valer a compensação vale para todos os outros casos em que, nos termos do art. 266.º, n.º 2, CPC, a reconvenção seja admissível na AECOP pendente.


MTS


Jurisprudência (606)


Título executivo;
documento autenticado



1. O sumário de RP 23/1/2017 (4871/14.5T8LOU-A.P1) é o seguinte: 

I - Na ação executiva a causa de pedir não se confunde com o título executivo, porque aquela é o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente e que imana do título, por isso, a causa de pedir é o facto jurídico nuclear constitutivo da obrigação exequenda, ainda que com raiz ou reflexo no título.
 
II - Para ser conferida exequibilidade extrínseca a um documento particular constitutivo ou recognitivo de uma obrigação, torna-se mister a sua autenticação por entidade dotada de competência para esse efeito, visando, desse modo, assegurar a compreensão do conteúdo do mesmo pelas partes.
 
III - A validade dessa autenticação implica que seja efetuado o registo informático do respetivo termo dentro do prazo estabelecido no art. 4º da Portaria nº 657-B/2006, de 29 de junho, isto é, que o mesmo seja realizado no momento da prática do ato ou nas 48 horas seguintes se, em virtude de dificuldades de caráter técnico, não for possível aceder ao sistema nessa oportunidade temporal.
 
IV – A inobservância do referido condicionalismo temporal, afetando a validade do termo de autenticação, implica que o documento particular não chega sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado, não podendo, nessa medida, servir de base à ação executiva, por não consubstanciar título passível de ser subsumido à fattispecie da al. b) do nº 1 do art. 703º do Cód. Processo Civil.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"[...] presentemente [...] o documento particular somente valerá como título executivo quando importe a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (isto é, quando nele se formaliza a constituição de uma obrigação ou então o devedor nele reconhece uma dívida pré-existente) e seja devidamente autenticado por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal.

Portanto, para se conferir exequibilidade a um documento particular constitutivo ou recognitivo de uma obrigação, torna-se mister a sua autenticação, visando, desse modo, assegurar a compreensão do conteúdo do mesmo pelas partes, não sendo, pois, suficiente o simples reconhecimento de assinaturas.

Em consonância com o que se dispõe nos arts. 35º, nº 3, 150º e 151º, todos do Cód. do Notariado, esse procedimento de autenticação do documento particular consiste, essencialmente, na confirmação do seu teor perante entidade dotada de fé pública, declarando as partes estarem perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este traduz a sua vontade [...], após o que aquela entidade, mediante a aposição do termo de autenticação [...], atesta que os seus autores confirmaram, perante ela, que o respetivo conteúdo correspondia à sua vontade. Na sequência desse procedimento, em conformidade com o disposto no art. 377º do Cód. Civil, o documento passa, então, a ter “a força probatória dos documentos autênticos, ainda que não os substituam quando a lei exija documento desta natureza para a validade do ato” [...].

A competência para essa autenticação foi durante largo tempo da competência exclusiva dos notários (cfr. art. 363º, nº 3 do Cód. Civil e art. 4º, nº 2 al. c) do Cód. do Notariado), competência essa que, paulatinamente, foi sendo atribuída a outras entidades, mormente, no que ao caso releva, aos advogados.

Assim, na sequência da publicação do DL nº 76-A/2006, de 29.03 (que adotou medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos notariais e registrais), os advogados, para além de outras competências que anteriormente se encontravam exclusivamente reservados aos notários, passaram a poder “autenticar documentos particulares (…) nos termos previstos na lei notarial” (art. 38º, nº 1), sendo que as autenticações por eles efetuadas “conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial” (art. 38º, nº 2).

No entanto, por mor do disposto no nº 3 do citado art. 38º, o ato de autenticação apenas pode ser validamente praticado por advogado “mediante registo em sistema informático”, o qual veio a ser implementado pela Portaria nº 657-B/2006, de 29 de junho.

Por conseguinte, como deflui do descrito quadro normativo, o procedimento tendente à autenticação de um documento particular por advogado pressupõe três momentos ou etapas. Assim, num primeiro momento esse documento é outorgado e assinado pelas respetivas partes, sendo que o advogado - enquanto entidade autenticadora - não outorga nem subscreve o documento. Poderá, quando muito, não como entidade autenticadora mas enquanto profissional habilitado e no exercício da sua função de aconselhamento técnico-jurídico, auxiliar as partes na redação do documento ou redigir ele próprio o documento que depois será assumido e assinado apenas pelas partes.

Num segundo momento, o documento particular assinado pelas partes é apresentado ao advogado para autenticação, sendo que no exercício dessa função exige-se, como se notou, que as partes confirmem perante ele o conteúdo do documento particular, devendo subsequentemente o termo de autenticação ser lavrado com observância dos requisitos estabelecidos nos citados arts. 150º e 151º do Cód. do Notariado, contendo, nomeadamente, a declaração das partes de que procederam à leitura do documento ou estão inteiradas do seu conteúdo e que o mesmo exprime a vontade nele declarada.

Finalmente, num terceiro momento, deve ser efetuado o registo informático em conformidade com o que se mostra estabelecido na citada Portaria nº 657-B/2006, de 29.06, sendo que no concernente à oportunidade temporal da sua execução rege o seu art. 4º, que no nº 1 estipula que “o registo informático é efetuado no momento da prática do ato, devendo o sistema informático gerar um número de identificação que é aposto no documento que formaliza o ato”, acrescentando o nº 2 do mesmo normativo que “se, em virtude de dificuldades de caráter técnico, não for possível aceder ao sistema no momento da realização do ato, esse facto deve ser expressamente referido no documento que o formaliza, devendo o registo informático ser realizado nas quarenta e oito horas seguintes”.


Exposto, deste modo (ainda que em termos necessariamente sumários), o regime legalmente instituído para a autenticação de documentos particulares, cumpre agora avançar para a resolução da questão central que consubstancia o objeto do presente recurso.

Como se viu, na presença da “declaração de confissão de dívida e acordo de pagamento” que os exequentes utilizaram como título para desencadear a ação executiva, o tribunal de 1ª instância considerou que o mesmo não pode valer como título executivo, porque a sua autenticação não obedeceu aos requisitos legalmente exigidos, dado que «a circunstância de não ter sido feita referência expressa à impossibilidade de aceder ao sistema no momento da realização do ato e a circunstância de o registo informático não ter sido realizado nas quarenta e oito horas seguintes ao ato inquinam a validade da autenticação».

Como emerge das alegações recursórias que apresentaram, os apelantes não põem em crise que, efetivamente, no documento que suporta a execução que instauraram não foi feita a aludida menção e bem assim que o registo informático foi realizado mais de 48 horas depois da prática do ato.

Advogam, no entanto, que essa realidade não contende com a validade da autenticação, constituindo antes mera irregularidade que não afeta a força executória do documento em causa.

Não podemos, contudo, concordar com esse posicionamento, porquanto o descrito regime normativo aponta decisivamente no sentido de que a autenticação do documento particular somente será válida se for efetuada no prazo e com observância dos demais requisitos legalmente fixados.

Na verdade, o nº 3 do art. 38º do DL nº 76-A/2006, de 29 de março expressamente condiciona a validade do ato de autenticação de documento particular ao registo em sistema informático nos termos definidos na citada Portaria nº 657-B/2006, a qual, no seu art. 1º, reitera que a validade desse ato depende da efetivação do registo nas condições definidas nos arts. 3º (que estabelece os concretos elementos ou dados recolhidos que devem ser registados no sistema informático) e 4º (que concretiza o momento em que deve ser executado o registo nesse sistema).

Ora, a propósito da oportunidade temporal em que deve ser executado o registo na plataforma informática, a lei é clara no sentido de estabelecer que esse registo tem obrigatoriamente de ser efetuado “no momento da prática do ato”, ressalvando apenas a situação (excecional) de nesse momento ocorrer dificuldade de caráter técnico de acesso ao sistema, caso em que o ato é válido mesmo sem o registo, contanto que esse facto seja expressamente referido no documento que o formaliza e o registo seja efetuado nas 48 horas seguintes.
 
Perscrutando as razões que subjazem à imposição do imediato registo informático do termo de autenticação, afigura-se-nos que a mencionada determinação legal se ancora em razões de segurança e certeza jurídicas sobre a exata definição da data em que o documento particular adquiriu a natureza de documento particular autenticado, procurando, assim, salvaguardar a fé pública associada a este tipo de documento (que, como se referiu, passa a ter a força probatória do documento autêntico).

Como assim, dada a natureza cogente dos arts. 38º, nº 3 do DL nº 76-A/2006 e 1º e 4º da Portaria nº 657-B/2006, esse registo informático, ao invés do entendimento preconizado pelos apelantes, assume, na economia de tais diplomas, natureza de formalidade essencial (que não de mera irregularidade), cuja inobservância contende, pois, com a validade da autenticação realizada.

Daí que, sendo a autenticação efetuada fora do condicionalismo temporal definido no art. 4º da citada Portaria fica afetada a sua validade, pelo que o documento particular não chega sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado, não podendo, nessa medida, servir de base à ação executiva por não consubstanciar título passível de ser subsumido à fattispecie da al. b) do nº 1 do art. 703º do Cód. Processo Civil [...].

Consequentemente, considerando que, no caso sub judicio, no documento não foi feita expressa referência à impossibilidade de aceder à plataforma informática no momento da realização do registo e considerando outrossim que esse registo não foi efetuado nas 48 horas subsequentes à prática do ato, na decorrência das considerações expendidas, tal implica que os documentos que foram dados à execução carecem de exequibilidade extrínseca que legitime e suporte a démarche processual executiva."

[MTS[


25/04/2017

Jurisprudência (605)


Escritura pública:
incapacidade do outorgante


1. O sumário de RL 12/1/2017 (1852/08.1TBSCR.L1-8) é o seguinte:


- Numa escritura pública de compra e venda, estando o outorgante vendedor incapacitado de assinar por motivo de ter as mãos a tremer, fruto de lesão craniana sofrida em acidente, deve apor a sua impressão digital, sendo perfeitamente lícito que o notário segure a mão desse outorgante e prima o seu dedo no local indicado da folha para aí apor a impressão digital.

- A impossibilidade a que alude o nº 3 do art. 51º do Código do Notariado é a de apor a própria impressão digital (não ter mãos ou dedos, ter os dedos queimados não podendo deixar impressão digital, etc.) e não a de ter de ser auxiliado para poder colocar o dedo na folha correspondente da escritura e aí apor a sua impressão digital.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"[...] a Mª juiz a quo, veio a declarar a ineficácia da escritura com base no entendimento que a aposição da impressão digital pelo outorgante vendedor não resultou de um acto próprio e voluntário.

Provou-se que M... não conseguia assinar a escritura pelo seu punho dado ter as mãos sempre a tremer. Daí que o notário tenha optado pela aposição do dedo com o fim de marcar a sua impressão digital.

Contudo, dadas as aludidas dificuldades que levavam o M... a colocar por si próprio o dedo no local exigido, foi o notário que lhe segurou a mão e e colocou o seu dedo sobre a escritura em causa.

Na escritura, in fine, [...] o notário refere:

“Li e expliquei o conteúdo desta escritura aos outorgantes, fora das horas regulamentares, não assinando o primeiro outorgante por impossibilidade física”.

Vendo-se no lado direito a impressão digital do outorgante vendedor M....

Estamos perante uma falsidade da escritura, como se pretende na sentença recorrida?

Há que dizer, antes do mais, que na escritura não se refere que M... tenha aposto a impressão digital por si próprio, sem auxílio. Afirma-se apenas que não assinou devido a impossibilidade física.

Será que o facto de o notário lhe ter pegado na mão e colocado o dedo na página correspondente da escritura determina que tal acto não tenha sido nem próprio nem voluntário?

Claro que determina que não tenha se tenha tratado de um movimento próprio, no sentido de que o M... não deslocou a mão para a escritura e nela colocou o dedo através dos seus próprios meios. Já vimos que isso não lhe era possível.

Mas o facto de ter sido o notário a pegar na mão e a colocar o dedo na escritura, não torna de modo algum tal acto involuntário. Sê-lo-ia se fosse praticado contra a vontade do outorgante ou sem que este tivesse consciência do acto negocial. O que não foi dado como provado.

Provou-se, por exemplo, que no Lar, eram as funcionárias que davam de comer ao M..., já que este não o conseguia fazer por si próprio. Mas isso não significa que sempre que tomava as suas refeições, este o fizesse involuntariamente.

Há uma grande diferença entre ter a vontade de praticar um acto e praticá-lo através dos seus próprios meios, ou ter tal vontade mas, por impossibilidade física, ter de o praticar com o auxílio de terceira pessoa.

O art. 51º nº 1 do Código do Notariado dispõe que:

“Os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento (...) a impressão digital do indicador da mão direita”.

No nº 2 do mesmo preceito determina-se que, quando não for possível ao outorgante apor a impressão do indicador da mão direita, por motivo de doença ou de defeito físico, deve apor a do dedo que o notário determinar, fazendo-se menção na escritura do dedo a que corresponde a impressão digital.

Finalmente o nº 3 estabelece que:

“Quando algum outorgante não puder apor nenhuma impressão digital, deve referir-se no instrumento a existência e a causa da impossibilidade”.

Da leitura deste normativo, afigura-se-nos que a impossibilidade de apor a impressão digital, seja do indicador da mão direita seja de que dedo for, tem a ver com uma situação diferente da dos autos, ou seja, reporta-se aos casos em que, por exemplo, a pessoa não tenha mão, ou não tenha o dedo indicador, ou não tenha nenhum dedo, ou os dedos não estejam aptos a deixar a respectiva impressão por estarem queimados etc. A impossibilidade não é a de deslocar a mão e o dedo para o premir sobre a escritura, mas sim a impossibilidade de apor a própria impressão digital.

Na situação dos autos não existia qualquer impossibilidade de M... apor a sua impressão digital, o que de resto fez. Precisava era de auxílio para que o dedo fosse colocado sobre o lugar apropriado da escritura.

Note-se que a faculdade de substituir a aposição da impressão digital, recorrendo em substituição a duas testemunhas, não é apenas prevista para a situação do nº 3 do artigo 51º, mas sim para todas as situações de aposição de impressão digital, do nº 1 ao nº 3 desse art. 51º, como resulta claramente do nº 4 deste preceito. E trata-se de uma faculdade, não da imposição de uma alternativa para uma impossibilidade, o que de resto nem faria sentido no caso do nº 1 do art. 51º.

Assim e contrariamente à sentença recorrida não entendemos que exista qualquer falsidade ou até irregularidade na escritura.

Diga-se ainda que o favto de ter sido dado como provado que o M... não recebeu qualquer quantia da contra e venda constante da escritura, nada tem a ver com a fidelidade desta. Na escritura, o notário atesta aquilo que os outorgantes referem, assegura-se da qualidade em que o fazem e eventualmente inclui outros factos por ele percepcionados no decurso da escritura.

Na escritura nunca se refere que, nesse acto, os outorgantes compradores entregaram o montante do preço ao outorgante comprador. Como o próprio notário M... referiu no seu depoimento testemunhal, não sabe se o preço foi pago ou não, já que isso extravasa das suas funções e se reporta a um momento posterior ao da celebração da escritura.

A testemunha R... adiantou que o prédio estava em nome do M... apesar de pertencer a todos os irmãos, mas essa é matéria que vai para lá da questão em causa nos presentes autos."

[MTS]


24/04/2017

Um apontamento sobre as declarações de parte


1. Num recente (e também interessante e útil) paper divulgado no Blog (As declarações de parte. Uma síntese), o Des. Pires de Sousa afirma, a propósito da possibilidade de a parte que requer a prestação de declarações assistir à audiência final, o seguinte:

"Estando a atuação do juiz colimada ao dever de gestão processual (Artigo 6), ao princípio da cooperação (Artigo 7.1.), ao dever de boa-fé processual (Artigo 8) e ao princípio da adequação formal (Artigo 547), temos como recomendável o seguinte procedimento: o juiz, no início da audiência, questionará as partes sobre se admitem requerer a prestação de declarações de parte e, na afirmativa, recomendará que a parte não assista à audiência de julgamento. Naturalmente que este procedimento só colhe sentido se o juiz em causa entender – conforme o fazemos – que o valor probatório das declarações da parte não é indiferente à circunstância da parte ter assistido à produção da demais prova. O que reputamos incorreto é o juiz compartilhar esta visão das virtualidades probatórias das declarações de parte, omitir tal entendimento, para – em sede de valoração da prova – depreciar por tal motivo as declarações de parte. Este último procedimento constituiria uma atuação desleal do juiz." 


2. Não está em causa que o juiz possa vir a ponderar as declarações da parte de modo distinto consoante a parte declarante tenha assistido ou não tenha assistido à audiência final. O que não se pode dizer é que, qualquer que seja a declaração que a parte venha a produzir, ela vai ser necessariamente apreciada de modo distinto em função da presença ou ausência da parte na audiência final, a ponto de o juiz dever advertir as partes de que a valoração das suas declarações só será a mais favorável se elas não tiverem estado presentes na audiência final.

Suponha-se, por exemplo, que a parte pretende realizar a contradita de uma testemunha (cf. art. 521.º CPC), invocando que a mesma não podia ter estado presente no local do acidente. Dificilmente se imagina que a valoração desta contradita deva ser distinta consoante a parte tenha assistido ou não tenha assistido ao depoimento da testemunha.

Acresce que a assistência à audiência final é um direito da parte. Estranho seria que, sendo a regra a publicidade da audiência final (cf. art. 606.º, n.º 1, CPC), a parte fosse precisamente o único sujeito a quem fosse recusado esse direito. Sendo assim, dificilmente se compreende que a parte possa sofrer qualquer consequência como resultado do exercício legítimo daquele direito.

Aliás, a fiabilidade das declarações da parte aumenta se a parte tiver pleno conhecimento do que se passou na audiência final e se quiser reagir, por sua iniciativa, contra alguma prova nela produzida. Em contrapartida, a ausência da parte da audiência final diminui o conhecimento por esta do que nela se passou e restringe a possibilidade de uma reacção espontânea da parte, o que contribui para aumentar o risco de o requerimento para a prestação de declarações ser apenas um expediente processual. 

O conhecimento da prova produzida na audiência final é um pressuposto do correcto exercício pela parte do direito de requerer a prestação de declarações. Uma parte informada é uma parte da qual se pode esperar um comportamento racional, não temerário e não instrumentalizado, porque dificilmente se imagina que a parte se disponha a prestar declarações contra o que está solidamente provado. Não se pode dizer o mesmo de uma parte mal ou deficientemente informada sobre o que aconteceu na audiência final, naturalmente mais disposta a prestar declarações "a ver se pega".

3. Em conclusão: a circunstância de a parte ter assistido à audiência final pode constituir um factor relevante para a valoração das declarações realizadas pela parte; isso justifica que o juiz pondere essa circunstância no momento da apreciação da prova, mas não que o juiz assuma, a priori, que a presença da parte declarante na audiência final diminui o valor probatório das suas declarações. Por isso, não se justifica nenhuma advertência das partes quanto a uma desvalorização probatória das suas declarações se as mesmas forem realizadas quando a parte declarante tenha assistido à audiência final.

MTS