"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/05/2017

Jurisprudência (611)


Acção sub-rogatória; insolvência do demandado;
inutilidade superveniente da lide


1. O sumário de RC 24/1/2017 (303/12.1TBSPS.C1) é o seguinte:


1. A acção em [que] a autora requer o reconhecimento do seu crédito sobre os réus e que se considerem aceites as heranças por eles repudiadas, a fim a de aquela poder executar o peticionado crédito pelo valor das heranças que lhe caberiam, não fora os aludidos repúdios, deve prosseguir os seus ulteriores termos em face de sentença que declara a insolvência dos réus, transitada em julgado, por não caber na previsão do AUJ, n.º 1/2014.

2. A acção não perdeu utilidade, dado que, no âmbito dos autos de insolvência, a autora não pode ver satisfeito o seu crédito sobre os réus repudiantes à custa dos bens que constituem a herança repudiada, uma vez que, por força de tais repúdios, tais bens não integram a massa insolvente, ao invés, serão adjudicados aos herdeiros imediatos, nos termos do artigo 2067.º, n.º 3 do CC.

3. Só sub-rogando-se ao devedor repudiante, através de acção sub-rogatória, poderá a autora vir a ser ressarcida do seu crédito sobre o devedor repudiante, à custa dos bens que constituem as heranças repudiadas, sob pena de assim não sendo, tais bens nunca integrarem a massa insolvente e, por consequência, não virem a constituir meio de pagamento dos créditos do declarado insolvente, mesmo no decurso do processo de insolvência.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:


"Como resulta do teor das conclusões da apelante, o dissídio que [o apelante] manifesta, relativamente à decisão recorrida, reside na utilidade da presente acção, o que defende, não obstante a declaração de insolvência dos primitivos devedores.

Como decorre da decisão recorrida, julgou-se extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, com o fundamento em que o crédito a que se arroga a autora terá de ser, necessariamente, reclamado nos autos de insolvência, em face do que, passou, a presente acção a carecer de utilidade.

Efectivamente, dispõe-se no artigo 85º, nº 1, CIRE que:

Declarada a insolvência, todas as ações pendentes em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa (…) são apensadas ao processo de insolvência (…)”.

Esta norma é o corolário do que se dispõe no artigo 1.º, n.º 1, do CIRE, que preconiza a natureza do processo de insolvência como um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência, visando, prima facie, a recuperação do insolvente ou, não sendo isso possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos seus credores.

Na senda do que, se determina no seu artigo 90.º, que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código (CIRE), durante a pendência do processo de insolvência.

Um de tais termos (obrigações dos credores) é o de reclamarem os seus créditos, nos termos fixados no artigo 128.º e seg.s do CIRE.

Atenta a divisão jurisprudencial acerca da abrangência do disposto no supra referido artigo 85.º, designadamente, se o mesmo se aplicava às acções declarativas, em que se peticionava o reconhecimento de um crédito sobre o insolvente, foi, cf. AUJ, n.º 1/2014, de 08 de Maio de 2013, in DR, I.ª Série, de 25/02/2014, fixada a jurisprudência no sentido de que:

Transitada em julgado a sentença que declare a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e), do art. 287º do C.P.C”.

Do que decorre que, em termos gerais, se deve determinar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos ali fixados, das acções declarativas, intentadas com vista a obter o reconhecimento de um crédito sobre o devedor, insolvente.

Como no referido AUJ se refere:

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, enquanto causas determinantes da extinção da instância (…) resultarão de circunstâncias acidentais/anormais que, na sua pendência, precipitam o desinteresse na solução do litígio, induzindo a que a pretensão do autor não possa ou não deva manter-se: seja, naqueles casos, pelo desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, seja, nestes, pela sua alcançada satisfação fora do esquema da providência pretendida.

A inutilidade do prosseguimento da lide verificar-se-á, pois, quando seja patente, objectivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que visou atingir ou assegurar com a acção judicial intentada. (…)
a inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque já não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.”.

Isto posto, importa analisar a pretensão aqui formulada pela autora e ver se a mesma ainda tem qualquer efeito útil, não obstante a sentença que declarou os 1.ºs réus insolventes, caso em que se impõe a prossecução dos termos da acção a fim de aquilatar da sua justeza ou se; pelo contrário, já não é possível dar-lhe satisfação, devendo a mesma ser deduzida e apreciada no âmbito do processo de insolvência, caso em que, então, é de manter a decisão recorrida.

O pedido formulado pela autora, consiste no reconhecimento do seu crédito sobre os réus B... e mulher C... e que se considerem aceites as heranças por eles repudiadas, a fim a de aquela poder executar o peticionado crédito pelo valor das heranças que lhe caberiam, não fora os aludidos repúdios.

Nos termos do disposto no artigo 2062.º do Código Civil, os efeitos do repúdio retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia.

Do que resulta, pois, que os bens que caberiam ao sucessível que a repudia, nunca chegam a ingressar na sua esfera jurídica, ficando a pertencer aos demais herdeiros, que aceitem a herança em causa.

Em face do que, cf. disposto no artigo 2067.º, n.º 3, do Código Civil, em caso de sub-rogação dos credores do repudiante, exercida através de acção destinada a poderem aceitar a herança em seu nome, pagos tais credores, o remanescente da herança não aproveita ao repudiante, mas aos herdeiros imediatos.

E, como se estipula no artigo 1041.º, n.º 2, do CPC, no caso de o credor do repudiante obter vencimento na acção sub-rogatória, a sentença favorável é exercida contra a herança e não contra o devedor repudiante.

De tudo isto, importa retirar a conclusão de que a presente acção, não obstante a existência da supra referida sentença de insolvência, não perdeu utilidade, dado que no âmbito dos autos de insolvência não será possível à aqui autora poder ver satisfeito o seu crédito sobre os réus repudiantes, à custa dos bens que constituem a herança repudiada, uma vez que, por força de tais repúdios, tais bens não integram a massa insolvente, ao invés, serão adjudicados aos herdeiros imediatos, nos termos do já citado artigo 2067.º, n.º 3.

Só sub-rogando-se ao devedor repudiante, nos termos expostos, poderá a autora vir a ser ressarcida do seu crédito sobre o devedor repudiante, à custa dos bens que constituem as heranças repudiadas, sob pena de assim não sendo, tais bens nunca integrarem a massa insolvente e, por consequência, reitera-se, não virem a constituir meio de pagamento dos créditos do declarado insolvente, mesmo no decurso do processo de insolvência.

Pelo que, não será caso de se declarar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, por a situação sub judice não caber na previsão do AUJ, n.º 1/2014, devendo, ao invés, os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

Conclusão que mais se reforça, se atentarmos em que a sentença de insolvência foi proferida em 01 de Fevereiro de 2016 e transitou em julgado no dia 22 desse mês e ano, sendo os repúdios de Dezembro de 2011, o que impede que o administrador da insolvência lance mão da resolução a favor da massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE, por já terem decorrido mais de dois anos.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2013, a pág. 531, a articulação entre a possibilidade concedida aos credores de devedor repudiante, de afastarem as consequências negativas do repúdio, acarreta que no “caso de, ao ser declarada a insolvência, os credores terem já exercido a faculdade prevista no artigo 2067.º. Fica, então, excluída a resolução, pois tudo se passa como se tivesse havido aceitação.

Mas, se tal não tiver acontecido, mesmo que já tenha decorrido o prazo estabelecido no n.º 2 do artigo 2067.º, a declaração de insolvência do repudiante abre caminho à resolução, se se verificarem os requisitos da al. b) do n.º 1 do art.º 121.º”.

Ora, dado que, in casu, já decorreram mais de dois anos por referência ao início do processo de insolvência, não se verificam os requisitos previstos na al. b), do n.º 1, do artigo 121.º do CIRE, para se poder recorrer à resolução a favor da massa insolvente, relativamente ao repúdio das heranças em causa.

Assim, como defende a recorrente, a presente acção constitui o único meio de que dispõe para tentar cobrar o seu crédito, o que impõe que não se possa manter a decisão recorrida, devendo, em conformidade com o exposto, os presentes autos prosseguir os seus ulteriores termos."

[MTS]