"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/05/2017

Jurisprudência (625)



Penhora; protecção do executado;
proporcionalidade


1. O sumário de RC 9/2/2017 (1501/15.1T8GRD-A.C1) é o seguinte:
 
I – A dignidade humana da vítima de acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído.

II – O artº 78º da Lei 98/2009, de 4/09, ao consagrar a impenhorabilidade do direito à reparação por acidente de trabalho, constitui uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana do sinistrado (artº 1º CRP) e o direito consagrado no artº 59º, nº 1, al. f) da CRP.

III – Não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreve-se o seguinte:

"É consabido que a ação executiva visa assegurar ao credor a satisfação coativa de uma obrigação que lhe é devida e que não foi voluntariamente cumprida (artigos 10.º, n.º 4 do Código de Processo Civil e 817.º do Código Civil).

Constituindo o património do devedor uma garantia geral de cumprimento das suas obrigações, através da ação executiva para pagamento de quantia certa (a que nos interessa para o caso vertente) procede-se à apreensão de bens ou direitos patrimoniais do executado com vista ao pagamento da dívida exequenda.

De harmonia com o princípio geral estabelecido no n.º 1 do artigo 735.º do Código de Processo Civil estão sujeitos à execução todos os bens do devedor que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.

Por sua vez, o artigo 736.º, alínea a) estipula que são absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial, as coisas ou direitos inalienáveis.

Ou seja, não podem ser penhorados os bens ou direitos que uma lei especial declare isentos de penhora ou que por serem inalienáveis, não há possibilidade de serem ulteriormente transmitidos (v. g., pela sua venda).

Ora, o artigo 78.º da Lei 98/2009 prevê a impenhorabilidade e a inalienabilidade dos créditos provenientes do direito à reparação por acidente de trabalho.

Deste modo, à luz do preceituado no artigo 736.º do Código de Processo Civil, o direito em causa é absolutamente inapreensível.

Assim o considerou o tribunal de 1.ª instância na interpretação que fez do aludido artigo 78.º.

Refere a apelante que tal interpretação viola os artigos 18.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Salvaguardado o devido respeito, que é muito, não concordamos com a apelante.

É certo que da garantia constitucional do direito de propriedade privada prevista no artigo 62.º da Lei Fundamental se extrai a garantia (constitucional também) do direito ao credor à satisfação do seu crédito (Acórdãos do Tribunal Constitucional 494/94, de 12/07/1994, da 2.ª secção e 770/2014, de 12/11/2014). Contudo a própria Constituição prevê a possibilidade de restrição de direitos constitucionais.

Estipula o nº 2 do artigo 18.º:

«A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

Sobre o conteúdo da proporcionalidade prevista na Constituição, tem-se pronunciado o Tribunal Constitucional em jurisprudência produzida ao longo de anos.

Por exemplo, escreveu-se no Acórdão n.º 634/93 [...]:

«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);

Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

Conforme se escreveu no Acórdão da Relação de Guimarães de 25/06/2015, P. 309/09.8TTBCL.C.P1.G1, «A reparação dos sinistros laborais tem um cunho marcadamente social e protecionista, visando dar cumprimento aos comandos constitucionais dos artigos 59.º, 1, al. f) e 63.º, 3 da CRP».

O regime jurídico dos acidentes de trabalho é imperativo e «pretende garantir ao sinistrado, diminuído nas suas capacidades físicas com rebate profissional, a manutenção das condições materiais que tinha antes do sinistro, preservando-se a sua dignidade – artº 1 da CRP» (citação retirada do mesmo acórdão).

A indemnização prevista no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho não mortais visa alcançar a recuperação física e psíquica do sinistrado, de modo a aproximar-se o mais possível da restauração natural ou quando tal restauração não for possível, nos termos gerais do direito das obrigações, fixa-se uma indemnização pecuniária sucedânea (artigos 562.º e 566.º do Código Civil).

A conservação da dignidade humana da vítima do acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído.

E para garantir o cumprimento da reparação assegurada por tal regime, o legislador consagrou como garantia a inalienabilidade, impenhorabilidade e irrenunciabilidade dos créditos provenientes do direito à reparação.

O regime instituído constitui um corolário das garantias constitucionais consagradas nos artigos 1º (dignidade da pessoa humana) e 59.º, n.º 1, alínea f) (direito das vítimas de acidentes de trabalho à assistência e justa reparação).

Consagrando assim o artigo 78.º da Lei 98/2009 uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana, contido no espírito do Estado de Direito, afigura-se-nos que tal normativo não afronta o direito do credor à satisfação do seu crédito.

Não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado.

A restrição do direito do credor à satisfação do seu crédito é pois adequada, exigível e proporcional."
 
[MTS]