"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/09/2017

Bibliografia (568)

 
-- Pereira Rodrigues, F., Os meios de prova em processo civil, 3.ª ed. (Almedina: Coimbra 2017)
 
 

Jurisprudência (695)


Arresto; constituição; validade; natureza jurídica;
processo de insolvência; massa insolvente; separação de bens


1. O sumário de STJ 21/3/2017 (335/12.0TYVNG-G.P1.S1) é o seguinte:  

I - O ato de disposição de bens arrestados, embora válido, é ineficaz em relação ao requerente do arresto, tudo se passando como se tal ato não tivesse tido lugar. 

II - Tendo os bens arrestados sido transmitidos pelo seu dono a terceiro, este recebeu-os onerados com o arresto, podendo o arrestante fazer-se pagar na competente execução à custa deles.

III - Tendo o terceiro adquirente dos bens arrestados sido entretanto declarado insolvente, tais bens não integram (pelo menos imediatamente) a massa insolvente, sem prejuízo de o remanescente (após a venda judicial) poder vir a reverter para a massa (o que de certa forma equivale a uma espécie de apreensão mediata).

IV - Os bens arrestados ou penhorados a que se refere a alínea a) do nº 1 do art. 149.º do CIRE são os bens assim onerados para garantia de créditos sobre o insolvente, e não os bens onerados para garantia de créditos sobre o terceiro que depois transmitiu os bens ao insolvente.

V - No caso do bem arrestado contra o terceiro transmitente ter sido apreendido para a massa insolvente do adquirente, pode o arrestante exigir a respetiva separação, conforme o estabelecido na alínea c) do nº 1 do art. 141º do CIRE.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
 
"Plano Factual


Estão provados os seguintes factos, como tal descritos no acórdão recorrido:

1. Em 28.03.2012, foi decretada a insolvência da “AA, S.A.”.

2. No processo de insolvência foram apreendidas, entre outras, as seguintes frações autónomas, constantes do 1º auto de apreensão de bens imóveis, junto ao apenso A:

- do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 0073/00000218: as frações designadas pelas letras “AK”, “AL”, “AN”, “AO”, “AP” e “E”;

- do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 0075/00000218: a fração designada pela letra “L”.

3. Tais imóveis foram apreendidos no pressuposto de que integram a massa insolvente, ou seja, de que fazem parte do património da sociedade AA, S.A.

4. Das certidões prediais de cada uma das frações, consta a inscrição, com data de registo de 18.11.2009, da respetiva aquisição pela sociedade insolvente à sociedade CC, Lda., com sede em ....

5. Sobre tais frações, incidiu um arresto o qual foi registado em 21.04.2005, a favor do ora autor.

6. Sendo o A. credor da CC, Lda., requereu, para garantia do seu crédito, providência cautelar de arresto de diversos imóveis propriedade desta, o qual foi decretado.

7. O crédito do autor, que foi posteriormente reconhecido judicialmente, foi objeto de execução contra a CC em processo que, com o n.º 10666/11.0TBVNG, corre termos no Juízo de Execução do Tribunal Judicial de ....

8. O arresto das referidas frações foi convertido em penhora, estando estas afetas à garantia do crédito do ora autor sobre a CC.

Plano Jurídico-conclusivo

[...] Quanto à matéria das conclusões 5ª a 45ª (com exceção da arguição de nulidade de decisão constante da conclusão 33ª):

Nestas conclusões suscita a Recorrente duas questões: que o arresto oportunamente decretado contra a anterior dona das frações em causa (CC, Lda.) caducou (por não ter sido apresentada a ação executiva no prazo de dois meses indicado no art. 410º do CPCivil então vigente), e que o ora Recorrido e a sua devedora (a mesma CC, Lda.) não podiam ter mantido o arresto pendente na transação que celebraram (isto por falta de legitimidade da devedora para onerar bens alheios, por isso que já tinha transmitido à ora Recorrente as frações autónomas arrestadas).

Ora, estas precisas questões, que não foram suscitadas no tempo e lugar devidos (ou seja, na contestação), haviam já sido trazidas ao processo através de uma espécie de articulado adicional da Ré Massa Insolvente (fls. 154 a 158). Sucede que a sentença da 1ª instância decidiu que tal atividade processual não podia ser aceita. É o que resulta claro do seguinte inciso da sentença: “Com a junção das certidões a fls. 154 e ss, a R. veio tecer considerações sobre a improcedência da ação, invocando factos que só na contestação poderia ter feito.

Porém, a fase dos articulados já terminou, pelo que, tais alegações devem ser consideradas como extemporâneas e, como tal, consideradas como não escritas (…)».

O assim decidido não foi impugnado por via de recurso (ainda que a título subsidiário, isto para o caso do dispositivo da sentença não ser confirmado) pela Ré Massa Insolvente, pelo que se tornou definitivo.

Donde, não pode agora, por via da presente revista, estar a Ré a reeditar questões cuja idoneidade e oportunidade processual já foram apreciadas e recusadas.

O que significa que não é possível conhecer das questões em causa no presente recurso (como, de resto e bem, nem sequer foram objeto de apreciação específica no acórdão recorrido).

Ainda assim e à cautela, sempre diremos, em breve nota, que improcede em toda a linha a argumentação da Recorrente.

Com efeito, e no que tange à pretensa caducidade do arresto, é de dizer que a disciplina do art. 410º do CPCivil então vigente em nada aproveita à situação vertente. Pois que a caducidade aí referida não era de oficioso conhecimento (e mesmo que fosse, pura e simplesmente não foi declarada), e o que é certo é que não foi nunca validamente suscitada pela devedora CC, Lda., nem tão pouco pela ora Recorrente (e era na contestação que ofereceu no presente processo que tal havia de ser feito, dando-se aqui de barato que tivesse legitimidade para tanto). Acresce dizer que tal caducidade (que visa proteger o devedor contra o desinteresse do credor em satisfazer-se à custa dos bens arrestados) só se compreende no contexto de um arresto coercivamente imposto pelo credor ao devedor, e não, como no caso aconteceu, quando é o próprio devedor a contratar com o credor a manutenção do arresto.

E no que tange à manutenção do arresto, por via da transação que foi celebrada, num momento em que a devedora CC, Lda. já não era a dona das frações, importa dizer que a argumentação da Recorrente está enviesada e é inconsequente. É que à data da transmissão das frações estavam estas arrestadas a requerimento do ora Recorrido, pelo que tal ato de disposição lhe foi ineficaz (art. 622º, nº 1 do CCivil), e assim, desde que não foi nunca declarada extinta por caducidade a providência segue-se que o arresto se manteve intocado (até ser convertido em penhora, como se sabe que aconteceu). Isto significa que a manutenção do arresto que foi aceita na transação celebrada em nada alterou os dados da questão (e o mesmo se diga da penhora resultante). Ou seja, não foi a transação que sujeitou a arresto as frações adquiridas pela Insolvente, tal sujeição já existia e, dado que não foi nunca objeto de extinção a requerimento da devedora, manteve-se atuante. O que significa que carecem de qualquer fundamento jurídico as afirmações da Recorrente relativamente à nulidade e ineficácia decorrente de oneração de bens alheios (art.s 939º e 892º do CCivil), como carecem de pertinência as considerações tecidas em redor da temática da hipoteca (garantia especial esta que não está aqui em causa, nem vem ao caso por analogia ou identidade de situações). [...]

Pelo que fica dito, resulta que improcede o recurso, não tendo o acórdão recorrido violado as disposições legais que a Recorrente cita.

Ao invés, e em breve nota (até porque se trata de matéria cujo conhecimento já está prejudicado pelo que vem de ser dito), o acórdão recorrido apresenta-se juridicamente correto.

Efetivamente, é sabido que os atos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao credor (art.º 622.º do CC), derivando da apreensão uma situação de indisponibilidade relativa. Como nos dizem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, I, anotação ao art. 662º), o arrestado pode dispor ou onerar livremente os bens apreendidos, apenas acontece que esses atos não produzem efeitos em relação ao arrestante. Este continua a ter preferência, em relação aos demais credores, e, transformado o arresto em penhora poderá seguir-se com a execução em relação aos bens arrestados, embora esses bens tenham saído do património do devedor. Enfim, o arresto reveste, como tem sido apontado na literatura jurídica (v. a propósito Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 4ª ed., pp. 83 e 83), a natureza de garantia real (ainda que não tenha sido convertido em penhora), estando assim dotado, como os demais direitos reais, da chamada sequela. E este atributo significa que o direito persegue a coisa, onde quer que ela se encontre, mesmo que tenha sido transmitida para outra pessoa (v. Menezes Leitão, Direitos Reais, 4ª ed., p. 47).

No caso vertente, as frações em causa foram arrestadas a requerimento do ora Recorrido Condomínio, e o arresto jamais foi judicialmente declarado extinto. Logo, a transmissão feita operar para a esfera jurídica da Insolvente, conquanto válida, foi ineficaz relativamente ao Recorrido. Daqui que em relação a este tudo se passa como se a transmissão não tivesse ocorrido, podendo assim fazer-se pagar na respetiva execução às custas dos bens objeto desse arresto (que foi depois convertido em penhora), ou seja, das frações autónomas.

É verdade, entretanto, que o art. 149.º (v. nº 1 alínea a)) do CIRE estabelece que, decretada a insolvência, se procede à apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido, e nomeadamente, arrestados ou penhorados. Simplesmente, os bens arrestados ou penhorados de que aí se fala são os bens assim onerados para garantia de créditos sobre o insolvente, e não de créditos sobre o terceiro que depois transmitiu os bens ao insolvente. Quanto a este terceiro, repete-se, a transmissão dos bens onerados com tais garantias feita pelo seu devedor é ineficaz, tudo se passando como se não tivesse ocorrido.

Ora, como se aponta adequadamente no acórdão recorrido (corrigindo assim os equívocos da sentença da 1ª instância), in casu a sociedade insolvente não é a devedora do credor Condomínio (o Autor do presente processo), nem foi contra ela que o arresto foi requerido e decretado. A devedora do Autor é bem a sociedade CC, Lda., que transmitiu à Insolvente as frações mas levando estas consigo o dito encargo (arresto). E assim e em rigor as frações em causa não integram (pelo menos no imediato) a massa insolvente, podendo e devendo dela ser afastadas (conforme o art. 141º, nº 1, alínea c,) in fine do CIRE), sem prejuízo de o remanescente (após a venda judicial) poder vir a reverter para a massa (o que de certa forma equivale a uma espécie de apreensão mediata). Exatamente como resulta do acórdão recorrido."


3. [Comentário] a) Antes de tudo o mais, convém ter presente a situação subjacente ao presente acórdão do STJ. É ela, segundo se percebe, a seguinte: A constituiu, por acto negocial celebrado com B (em concreto, por uma transacção judicial concluída numa acção declarativa), um arresto sobre bens de B; depois dessa constituição, B transmitiu os bens arrestados a C, que foi declarado insolvente; A propôs, no processo de insolvência de C, uma acção de separação da massa insolvente dos bens arrestados. 

b) O presente acórdão suscita uma série de questões sobre o arresto, como, por exemplo, a constituição do arresto por acto negocial dos interessados, a disponibilidade destes sobre a caducidade do arresto e ainda a natureza jurídica do arresto. Algumas outras questões importantes estão também envolvidas no presente caso.

Atento o disposto no art. 619.º, n.º 1, CC ("O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo"), é mais do que discutível que o arresto possa ser constituído por vontade  dos interessados. Não há, segundo parece, um arresto extraprocessual, ou seja, um arresto constituído, pela via contratual, entre os interessados.

É claro que, nesta matéria, não se pode argumentar com o facto de o arresto se encontrar regulado no CPC como uma providência cautelar (cf. art. 391.º a 396.º CPC), dado que, no CPC, só pode estar regulado o "arresto processual". Mas não pode deixar de se atribuir relevância ao facto de, no CC (e, portanto, no direito substantivo), o arresto só estar previsto como uma medida processual.

Se o STJ tivesse seguido esta orientação, então as consequências para o caso sub iudice teriam sido significativas. A impossibilidade de as partes terem constituído voluntariamente o arresto teria conduzido ao reconhecimento da sua nulidade, por violação de norma legal (cf. art. 280.º, n.º 1, CC), o que teria obstado à atribuição de qualquer relevância ao referido arresto no processo de insolvência.

A este propósito coloca-se uma outra questão relativa ao caso sub iudice. Segundo se percebe do relatório do acórdão, o arresto foi constituído numa transacção judicial celebrada no âmbito de uma acção declarativa que esteve pendente entre o credor A e o devedor B. Esta transacção teria então sido homologada pelo tribunal (cf. art. 290.º, n.º 3, CPC). Coloca-se então a seguinte questão: a homologação da transacção na qual se constituiu o "arresto contratual" impediria que o STJ conhecesse da nulidade da constituição desse mesmo arresto?

A resposta tem de ser negativa: uma sentença que reconhece uma realidade ou um efeito jurídico estranho à ordem jurídica é uma sentença juridicamente inexistente. Uma sentença inexistente é, naturalmente, insusceptível de formar caso julgado e de vincular qualquer outro tribunal. Portanto, o STJ não estava vinculado a aceitar a validade do "arresto contratual" constituído por A e B.

Adquirido este dado e atendendo a que a nulidade do "arresto contratual" é de conhecimento oficioso (cf. art. 286.º CC), o STJ poderia ter analisado o caso concreto na base dessa nulidade (irrelevando, naturalmente, qualquer preclusão da alegação das partes quanto ao problema), Se o tivesse feito, o STJ teria chegado necessariamente a resultados totalmente diferentes daqueles a que chegou no presente acórdão.

Mais: o conhecimento da nulidade do "arresto contratual" teria evitado que o STJ se confrontasse com um caso verdadeiramente anómalo: a relevância, invocada pelo credor A, de um arresto não susceptível de caducar nos termos do art. 410.º CPC (e, portanto, não sujeito à sua conversão em penhora (cf. art. 762.º CC)) num processo de insolvência do terceiro adquirente C. É claro que a situação nunca seria possível em relação a um "arresto processual", dado que este ou já teria caducado ou já teria sido convertido em penhora num processo executivo para satisfação do credor A. 

É, pois, a subsistência anómala de um "arresto contratual" não caducável num processo de insolvência que origina a situação anómala com que o STJ se defrontou.

c) Convém também referir que, ao contrário do que se afirma no acórdão, o arresto não pode ser considerado uma garantia real. Não o é a penhora, pelo que também não o pode ser o arresto, dado que a este se aplica, no que for possível, o regime da penhora (cf. art. 622.º CC). A especialidade do arresto e da penhora reside precisamente em que, em vez de serem dotados do direito de sequela próprio dos direitos reais, determinam a ineficácia perante o arrestante ou o penhorante dos actos de disposição ou de oneração dos bens arrestados ou penhorados (cf. art. 622.º, 819.º e 820.º CC).

Aliás, se o arresto constituísse um direito real de garantia, haveria que admitir a reclamação de créditos com base no arresto (cf. art. 788.º, n.º 1, CPC). É bem certo que, apesar de o arresto não constituir um direito real de garantia, há boas razões para admitir a reclamação de créditos pelo credor arrestante, mas a verdade é que, ao que se saiba, nunca a jurisprudência admitiu, até agora, essa reclamação. Se não se admite a reclamação de créditos com base no arresto, é porque este não pode ser qualificado como um direito real de garantia.

Acresce ainda que, se o arresto constituísse um direito real de garantia, não se perceberia nem o regime da sua caducidade (cf. art. 395.º CPC), nem a necessidade de o converter (num prazo curto) em penhora (cf. art. 762.º CPC). Note-se que a necessidade desta conversão não se verifica em relação a nenhum direito real de garantia. Uma hipoteca, por exemplo, não é convertida em penhora; o que sucede é que, na escolha dos bens penhoráveis, os primeiros que devem ser penhorados são os bens onerados com a hipoteca (cf. art. 752.º CPC). 

Por fim: se o STJ considera que arresto é um direito real de garantia, então também deveria ter admitido no caso em apreciação que a construção pelos interessados de um arresto não caducável viola o princípio da tipicidade dos direitos reais (cf. art. 1306.º, n.º 1, CC).

d) Conforme se disse, segundo se percebe do relatório e do fundamento do acórdão, o caso concreto pode ser resumido no seguinte: A constitui, por acto negocial celebrado com B, um arresto sobre bens deste B; durante a vigência do "arresto contratual", B transmitiu os bens arrestados a C, que foi declarado insolvente; finalmente, A propôs uma acção de separação dos bens arrestados no processo de insolvência de C.

No acórdão em comentário, o STJ reconheceu ao credor A um direito à separação dos bens arrestados da massa insolvente de C (art. 141.º,al. c), CIRE). Para além da dificuldade de subsumir o arresto ao disposto neste preceito legal, aquela solução levanta duas dificuldades.

Desde logo, não é coerente entender que o arresto é um direito real de garantia e, depois, resolver a situação, não através de uma reclamação de créditos (por A) no processo de insolvência (de C) (cf. art. 128.º CIRE), mas através da separação de bens da massa insolvente. Se o arresto é uma garantia real, a sua relevância no processo de insolvência só pode ser aquela que é própria das garantias reais. Não se vislumbra como é que uma garantia real (por exemplo, uma hipoteca sobre bens do insolvente) pode justificar, não a reclamação do crédito pelo credor hipotecário, mas antes a separação do bem hipotecado da massa insolvente.

Depois, porque o STJ aplicou no caso concreto um regime legal que não pode estar pensado para "arrestos contratuais", pela simples razão de que tal figura não está prevista na ordem jurídica portuguesa. Mesmo que o STJ entendesse que tinha de aceitar como válida a constituição do "arresto contratual", ficaria sempre por explicar como é que um alegado direito de preferência no pagamento de um crédito pode originar um direito à separação de bens num processo de insolvência.

e) Normalmente, os tribunais são chamados a aplicar o direito a situações possíveis segundo o próprio ordenamento jurídico: trata-se então de verificar e corrigir uma patologia que consiste no desrespeito do direito. Mas sucede, por vezes, que os tribunais se confrontam com situações patológicas, no sentido de situações impossíveis segundo o ordenamento jurídico: nestas, a correcção da patologia é impossível, pelo resta apenas obstar à produção de quaisquer efeitos pela situação estranha ao ordenamento jurídico.

Se não se está equivocado, o STJ deparou-se, no caso sub iudice, com uma situação estranha ao ordenamento jurídico. Assim, o STJ, em vez de ter retirado consequências legais de um "arresto contratual", deveria antes ter obstado à produção de quaisquer consequências por esse "arresto".


MTS


28/09/2017

Bibliografia (567)


-- Priori Posada, Giovanni (Ed.), Derecho material y proceso / el modo cómo el proceso se adecúa a la tutela del derecho material (Palestra Editores: Lima 2017)





Jurisprudência (694)



Acção de preferência;
depósito do preço


1. O sumário de RL 30/3/2017 (68/16.8T8VLS-A.L1-2) é a seguinte: 

I – Na acção de preferência, o preço a depositar pelo autor nos 15 dias seguintes à propositura da acção, sob pena de caducidade, é no valor correspondente ao preço constante do título de transmissão.
 
II – Tendo os réus procedido à alteração do título de transmissão, alterando o preço da venda, sobre eles recai o ónus de alegação e prova de que o valor retificado corresponde ao valor real. 
 
III – Quando logrem tal prova, importará oportunamente fazer notificar o autor, para, então, proceder ao depósito da correspondente diferença.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se o “preço devido” a considerar para efeitos de depósito, na presente ação, é o declarado na escritura de compra e venda respetiva ou o valor superior declarado pelas partes outorgantes, em escritura de retificação da escritura de compra e venda, celebrada após citação dos aqui RR.
 
***
Já o que seja o preço devido, foi objeto de discussão, nomeadamente no tocante à questão de saber se corresponde ao preço real ou ao preço que veio a ser declarado na escritura pública de compra e venda e em que circunstâncias, para, alcançado o conceito, retirar a consequência da não realização do correspondente depósito no prazo e condições estabelecidas na lei.

Podendo contudo afirmar-se ser hoje praticamente uniforme a jurisprudência, relativamente a situações como a hipoteseada nos autos, e que se revelam recorrentes.

Assim, já em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-02-2005 [Proc. 4669/04 - 1.ª Secção, Relator: Moreira Alves, in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_busca.php?buscajur=&areas=000&ficha=10126&pagina=&exacta=], se julgou que “I - Intentada acção de preferência em que os AA. se deparam com um único preço que têm por bom e que é o declarado na escritura de compra e venda, não alegando, por conseguinte, nenhuma simulação do preço, sendo os RR. quem veio dizer na contestação que o preço real era superior, apresentando escritura de rectificação do preço posterior à entrada da acção, e mantendo os AA. na resposta e na contestação do pedido reconvencional que o preço real era o constante na escritura de compra e venda, competia aos RR. provar ser outro o preço real. II - Perante este circunstancialismo não se vê como poderia exigir-se aos AA. o depósito do preço alegado pelos RR., ainda que por mera cautela. III - Afinal, a lógica da solução proposta pela doutrina e jurisprudência para as situações mais frequentes em que o preferente coloca logo a questão da simulação do preço na própria acção de preferência é a mesma que deve presidir à solução de situações como a dos autos. IV - Nestas, também é o preço constante da escritura à data da instauração da acção de preferência que o preferente tem de depositar, embora, provado posteriormente ser superior o preço real, deva depositar a diferença, no prazo fixado pela sentença, sob pena de perder o direito. V - E para o efeito, não se tornava necessário que os AA. tivessem manifestado directamente a intenção de preferir pelo valor mais elevado referido pelos RR., que à data da alegação não passava de um valor meramente hipotético e não demonstrado, tanto mais que os RR. deduziram pedido reconvencional pedindo exactamente a condenação dos AA. a pagarem aos RR. compradores o preço real que alegaram, caso proceda a acção, tendo os AA. ficado logo cientes que, a provar-se o preço alegado pelos RR. era esse que teriam de pagar como contrapartida da preferência. (…). [...]”

Tendo-se considerado, em Acórdão do mesmo Tribunal, de 01-04-2014 [Proc. 854/07.0TBLMG.P1.S1, Relator: HELDER ROQUE, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.] que:

IV–O preço devido, como condição do exercício do direito de preferência, é aquele que consta do teor da escritura pública, único elemento disponível para os autores, com base no qual instauraram a ação, satisfazendo a exigência legal do depósito preliminar do preço, aquele que ao preferente, em face dos elementos objetivos existentes, se revele como sendo o preço real do negócio. V - Porquanto o direito de preferência não se adquire com a propositura da ação, uma vez que nasce logo que se efetua o contrato de compra e venda, radicando-se na pessoa a quem ele assiste, a retificação do contrato em que ela não interveio, não tem virtualidade para alterar a situação de direito, já criada, sendo, por isso, irrelevantes, em relação ao preferente, quaisquer acordos ulteriores dos contraentes, que alterem ou modifiquem o contrato primitivo. VI - Os contraentes podem, em princípio, provar contra o preferente que, por engano, se declarou, na escritura de venda, um preço não correspondente à realidade, mas, apenas, quando, só por lapso, se tenha declarado um preço diferente do preço real. VII - Retificado o preço pelos réus compradores, depois da ação ter sido instaurada, sobre estes recai o ónus de alegar e provar que a “alteração do preço” visou a emenda de um erro, involuntariamente, cometido ou a correção de um erro propositado (v. g., simulação do preço para pagar menos IMT), e, bem assim como, que o valor corrigido corresponde ao valor real, o que equivale a alegar e provar que o preço modificado foi, realmente, o preço praticado no negócio jurídico efetuado. VIII - Constituindo o preço real da venda matéria controvertida, não era exigível aos preferentes o depósito de outro preço que não fosse o declarado na escritura, pelo que sendo outro o valor real a fixar pelo tribunal, tal não determinaria, sem mais, a caducidade da ação de preferência.” [...].

E, em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-2015, que “se, para o exercício do direito de preferência não tinham outra alternativa que não fosse a de preferirem pelo preço declarado na escritura, não se pode dizer que os autores tenham abusado do direito de preferência, excedendo os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes, sob pena de, com o pretexto de que existe abuso de direito, se estar a negar-lhes, na prática, o exercício desse direito. E a inviabilizar esse exercício em todas as situações em que, por qualquer motivo, as partes declaram um preço muito inferior ao valor real do bem e os preferentes não têm elementos para provar que o preço declarado é simulado e é outro o preço real.”.

O que, acrescentaremos nós, vale mutatis mutandis no tocante ao preço devido a depositar, quando ignorado o preço real à data da propositura da ação de preferência.

Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça mais recente, e conhecido, sobre a matéria, de 08-09-2016 [Proc. 1022/12.4TBCNT.C1.S1, Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.] indo neste sentido, quando nele se conclui que “O preço devido corresponderá ao preço real, que pode ser quer o preço pago pelo terceiro adquirente ao alienante, quer o preço acordado entre estes para a transacção, mesmo que ainda não esteja pago, a menos que tal não se tenha provado, situação em que, a final, o preço devido corresponderá, simplesmente, ao preço declarado na escritura pública.” [...].

Podendo ainda ver-se, nesta linha, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 20-01-2015: [Proc. 360/12.0TBCNF.C1, Relator: ARLINDO OLIVEIRA, in www.dgsi.pt/jtrc.nsf.]

1. - Na acção de preferência, o autor tem de proceder ao depósito do preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção, sob pena de caducidade.
 
2.-O valor a depositar corresponde ao preço constante do título de transmissão.
 
3.-Tendo os réus procedido à alteração título de transmissão, alterando o preço da venda, incumbe-lhes alegar e provar que o valor rectificado corresponde ao valor real e que os autores conheciam “
ab initio” o valor rectificado.”…. 

… E o Acórdão da Relação de Évora, de 17-11-2016 [Proc. 198/13.8TBSRP.E1, Relator: RUI MACHADO E MOURA, in www.dgsi.pt/jtre.nsf.], este com a particularidade de chamar à colação o disposto no n.º 2 do artigo 1410º."

[MTS]


27/09/2017

Jurisprudência (693)



Venda executiva;
direito de preferência; arrendatário


1. O sumário de RL 30/3/2017 (23184/09.8T2SNT.L1-8) é o seguinte:

- O arrendatário de um arrendamento de duração limitada tem direito de preferência na compra e venda judicial do locado.
 
- Qualquer situação locatícia constituída após a penhora é inoponível à execução, caducando automaticamente após a venda executiva.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:  
 
"1.º–Dispõe o artigo 1091.º, n.º 1, al. a) do CC que o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos.

Referindo-se a este artigo dizem Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge: ‘’Considerando a arrumação sistemática do artigo 1091 do CC, a letra da lei e a inexistência de norma de sentido contrário, o direito de preferência do arrendatário aqui consagrado refere-se a todos os contratos sujeitos à disciplina do arrendamento urbano , sejam eles para fim habitacional ou para fim não habitacional ou para fim não habitacional , tenham eles prazo certo ou duração indeterminada’’ (Arrendamento Urbano, , 3.ª ed., 2009:431)

Como é sabido o RAU continha regime diferente. ‘’apesar do carácter aparentemente genérico do artigo 47.º do RAU, é líquido que a preferência atribuída por esta norma aos arrendatários urbanos não existe no caso dos arrendamentos mencionados nas alíneas a) a e), inclusive, do n.º 2 do artigo 5.º do RAU, como também resulta excluída dos arrendamentos de duração limitada , atento o teor dos art.ªs 99.º, n.º 2, 117.º , n.º 2, 121.º e 123.º do RAU’’ (Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Porto, 2006:174; também Jorge Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 3:ª ed., Coimbra, 1997:240 e Maria Olinda Garcia, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano , Coimbra, 2006:27).

Não restam, pois dúvidas que o recorrente é titular de direito de preferência.

2.ª–A venda pode revestir sete modalidades elencadas no artigo 811.º CPC. Uma delas é a venda mediante propostas em carta fechada.

Dado tratar-se neste caso de uma venda judicial pode discutir-se se a venda prevista no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) do CC é abrangida por aquela.

Pensamos que a questão se relaciona com a natureza da venda executiva.

Discute-se se a venda judicial é um contrato de direito privado, de direito público ou misto de direito privado e de direito público (Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra, 1970:252 ss).

Como ensina Lebre de Freitas, ‘’a sujeição da venda executiva ao regime geral da compra e venda leva a caracterizá-lo como um contrato especial de compra e venda com características de acto de direito público’’ (A Acção Executiva, 5.ª ed., Coimbra, 2009:346).

Sendo aplicáveis à venda executiva duma maneira geral todas as regras comuns (cfr., porém, artigos 824.º CC e 825.º CPC) e atenta a necessidade de não desfigurar a posição do preferente/adquirente que actua como particular favorecido, nada se opõe a que as normas de direito substantivo relativas à legitimação do arrendatário como preferente sejam aplicáveis à venda judicial.

3.ª–A terceira questão consiste em saber que efeitos se devem atribuir à venda executiva.

Dispõe o artigo 819.º CC que ‘’sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados’’

Com a penhora o executado perde os seus poderes directos sobre os bens, o poder de detenção e de fruição (se a penhora a compreende). Fala-se a propósito da aplicação do princípio da indisponibilidade material absoluta dos bens penhorados. Se quanto à disposição material dos bens o princípio é o referido, quanto à disposição jurídica a regra é a da livre disponibilidade do direito ‘’apenas com a limitação da ineficácia dos respectivos actos , para com a execução, independentemente de declaração judicial, isto é, tendo-se os actos como válidos e eficazes em todas as direcções menos em relação à execução. Para a qual são havidos como se não existissem’’ ;’’só a figura da ineficácia relativa dá a exacta configuração das coisas e lhe fixa os seus verdadeiros efeitos jurídicos’’(Anselmo de Castro, op. cit:151/152).

Como ensina Castro Mendes ‘’este valor jurídico só se mantém até à venda executiva ; com esta o acto deixa de ser meramente ineficaz em relação à execução, ou inoponível nesta, para se tornar totalmente ineficaz’’. (Direito Processual Civil, 3.ª Vol, Lisboa, 1989:463).

Preceitua o artigo 824.º, n.º 2 do CC: ‘’Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo’’.

Por aplicação desta norma, diz-nos Pedro Romano Martinez, o contrato de locação também pode caducar ’’pois à venda da coisa locada em processo executivo não se aplica o princípio emptio non tollit locatum (art. 1051 do CC), pelo que o comprador em venda executiva adquire o bem livre de ónus e encargos, em que se incluem as limitações decorrentes de contratos de arrendamento. Mesmo entendendo que o arrendamento não se qualifica como direito real, a ratio do n.º 2 do artigo 824.º do CC é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos sem encargos, entre ao quais se se inclui a vinculação decorrente do arrendamento’’ (Da Cessação do Contrato, 2.ª ed., Coimbra, 2006:327).

Ora, quer se considere a dimensão real do arrendamento quer tão-só a dimensão obrigacional do contrato que o substancia, o que importa é saber se o contrato que formalizou a sua criação ocorreu antes ou depois da penhora.

O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo uniformemente no sentido assumido no sumário do acórdão de 5 de Fevereiro de 2009, in: www.dgsi.pt: qualquer situação locatícia - registada ou não - constituída após o registo de hipoteca, arresto ou penhora é inoponível ao comprador do imóvel em sede de venda judicial, na justa medida em que após a concretização desta caduca automaticamente.

No caso sujeito foi penhorado, em 09.11.2009, o imóvel identificado no auto de fls.13 e 14, objecto da venda judicial mediante abertura de propostas em carta fechada.

O requerente F invocou a qualidade de arrendatário com base no contrato de arrendamento cuja cópia se mostra junta a fls.49 a 51, celebrado em 20.12.2011, figurando, na qualidade de senhorio, N (na qualidade de procurador de L, executada nestes autos).

Quer isto dizer, como sublinha o primeiro grau, que o contrato de arrendamento invocado para efeitos do exercício do direito de preferência foi celebrado em data posterior à da penhora que incidiu sobre o imóvel objecto de tal contrato.

O acto de oneração do executado queda então, como dissemos, inoponível na execução."
 
[MTS]
 
 

26/09/2017

Jurisprudência uniformizada (33)


Acção administrativa especial;
despacho saneador; recurso


-- Ac. STA 6/2017, de 26/9, uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos: 

Do despacho saneador proferido em ação administrativa especial de valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo cabe prévia dedução de reclamação para a conferência do próprio tribunal de 1.ª instância, por aplicação dos arts. 27.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 87.º do CPTA e 40.º, n.º 3, do ETAF na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, e não imediata interposição de recurso jurisdicional.



Bibliografia (566)


-- Dorsett, Shaunnagh, The First Procedural Code in the Empire: New Zealand 1856, NZULR 27 (2017), 690-214



Jurisprudência (692)


Conta bancária;
arrolamento; efeitos

1. O sumário de RL 30/3/2017 (
4324/16.7T8VFX-B.L1-6) é o seguinte:

-- O arrolamento justifica-se pelo receio de extravio, dissipação ou ocultação de bens, receio cuja demonstração a lei dispensa no caso de arrolamento preliminar a acção de divórcio. 

-- Decretado o arrolamento, ele opera relativamente aos bens que vierem a ser encontrados. 

-- Extravasa assim o âmbito do arrolamento - e de resto mostra-se ausente o critério da instrumentalidade probatória necessária que é condição de levantamento de sigilo bancário - o pedido de informação sobre levantamentos ocorridos anteriormente nas contas bancárias cujos saldos foram arrolados, não se justificando o levantamento do sigilo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Apesar das alterações resultantes do DL 31-A/2012 de 10 de Outubro, mantém-se a jurisprudência firme que estabelece que o dever de sigilo não é um dever absoluto, que deve ceder perante o dever de colaboração para a descoberta da verdade, instrumental do direito de acesso à justiça (artigos 411º e 417º do CPC e 20º da Constituição da República Portuguesa), segundo o princípio da proporcionalidade (artigo 18º da Constituição da República Portuguesa), ponderando-se o interesse preponderante e a instrumentalidade (artigo 417º nº 4 do CPC e 135º nº 3 do CPP), mais especificamente averiguando-se se, no caso concreto, o interesse preponderante é o do sigilo bancário, enquanto protecção da confiança que é essencial ao funcionamento das instituições bancárias e da reserva da vida privada dos clientes, ou pelo contrário se deve prevalecer justamente o dever de colaborar com a descoberta da verdade, de colaborar com a justiça, a que o cidadão tem constitucional direito de acesso. Intervém obviamente na ponderação a averiguação da estrita necessidade desta instrumentalidade, determinando-se que apenas situações em que de outro modo probatório se revelaria impossível a prova de facto alegado em fundamento de direito invocado em juízo, devem determinar a derrogação do sigilo.

Ora, passando ao caso concreto, o procedimento cautelar intentado, na sua especificidade – artigo 409º nº 1 do CPC – presume o receio do perigo de extravio, ocultação ou dissipação de bens, e a providência para tanto atribuída pela lei é justamente a acção que permite obstar a que tais extravio, ocultação ou dissipação se concretizem: - o arrolamento dos bens existentes.

A providência porém opera para o presente e o futuro – artigo 406º do CPC, determinando a descrição, avaliação e depósito dos bens existentes – mas não para o passado: se os bens já se extraviaram, foram ocultados ou dissipados, não encontramos preceituado, na disciplina deste procedimento cautelar especificado, a investigação sobre esse extravio, ocultação ou dissipação.

Trata-se, em todo o caso, de matéria que interessará possivelmente à futura acção de divórcio, mas que não só excede a finalidade do arrolamento como não se consegue aferir, neste momento, da pertinência da informação solicitada aos bancos em termos de instrumentalidade probatória essencial, isto é, não sabemos que factos virão em tal acção futura a ser alegados e por isso não sabemos se a prova por recurso ao levantamento do sigilo bancário é estritamente essencial.

Fenecendo este critério decisivo para o tribunal poder aquilatar do conflito entre os interesses que justificam o segredo e o interesse do requerente e para poder assim perceber a necessidade do levantamento do segredo, impõe-se não o conceder."

3. [Comentário] Sobre o arrolamento de contas bancárias, cf. também RP 2/5/2005 (0551153); RP 16/9/2016 (1281/12.2TBEPS-B.G1).

MTS


25/09/2017

Bibliografia (565)



-- Barbara Poliseno, Profili di tutela del minore nel processo civile (Edizioni Scientifiche Italiane: Napoli 2017)



Paper (305)


-- Ahmed, M., I thought we were exclusive? Some issues with the Hague Convention on Choice of Court, Brussels Ia and Brexit (09.2017) (Conflict of Laws .net)
 
 

Breve comentário sobre o segmento decisório relativo a custas processuais do acórdão da Relação do Porto de 6.4.2017



[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Jurisprudência (691)


Oposição à execução;
transacção judicial


1. O sumário de RE 20/4/2017 (1649/15.2T8TMR-A.E1) é o seguinte:

I – A alínea g) do artigo 729.º do Código de Processo Civil impõe dois requisitos para a oposição à execução fundada em transacção judicial: (i) que os factos sejam posteriores à situação factual que conduziu à transacção; (b) que esses factos se encontrem provados por documento;
 
II – Todavia, em relação a este último requisito, tratando-se de uma formalidade “ad probationem”, pode ser substituído por confissão expressa;
 
III – Por isso, pode a oposição ser deduzida com tal fundamento, sem que seja junto o documento, contando que o oponente no seu decurso obtenha a confissão do exequente;

IV – Tendo na acção declarativa as partes acordado em transacção que a empregadora pagaria ao trabalhador a quantia de € 30.000,00, em 6 prestações de € 5.000,00 cada, a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho, e sem consignar se tal quantia era líquida ou ilíquida, tendo o Autor/exequente instaurado execução com fundamento que a 1.ª prestação não foi paga pela totalidade do valor de € 5.000,00, é de admitir a oposição à execução, não podendo considerar-se manifestamente improcedente tal oposição deduzida pela executada, com fundamento que a quantia em causa era ilíquida e, por isso, que pagou a prestação em montante inferior por à mesma ter deduzido o devido a título de IRS e descontos para a segurança social.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 
 
"A execução baseia-se no título executivo constituído pela transacção judicial proferida na acção principal (cfr. artigos 703.º e 705.º do Código de Processo Civil).

Como se sabe, é o título executivo que determina o conteúdo e o alcance da execução.

O artigo 729.º, do Código de Processo Civil estabelece taxativamente (no corpo do artigo consta o advérbio «só») os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença.

Entre tais fundamentos encontra-se, no que aqui importa analisar, a «[i]nexistência ou inexequibilidade do título [alínea a)] e «[q]ualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento» [alínea g)].

Alberto dos Reis (Processo de Execução, I, Coimbra Editora, 1985, pág. 197-201) sustentava, em relação a antecedente norma que corresponde à actual alínea a), que se devia adoptar um «conceito maleável» de inexequibilidade do título, no sentido de «(…) conceito relativo e acomodado às circunstâncias práticas (…)», porquanto «[o] título apresentado pelo exequente é exequível em abstracto, mas não o é em concreto, quer dizer, não pode servir de base àquela execução, que de facto, o exequente promoveu».

Transpondo tal ensinamento para o caso em apreço poder-se-á sustentar que que, embora em abstracto o exequente tivesse o título equivalente a uma 1.ª prestação de € 5.000,00, já em concreto não teria esse título, porquanto no entendimento da executada aquela importância era ilíquida e estava sujeita aos descontos em sede de IRS e para a segurança social, pelo que o título, em concreto, apenas corresponderá ao valor da prestação que pagou.

Assinale-se, em breve parêntesis, que com tal argumentação não pretendemos, aqui e agora, tomar posição sobre a interpretação da transacção judicial, designadamente se o valor acordado estava sujeito a retenção em sede de IRS e descontos para a segurança social, e até sobre qual o montante desses descontos: (i) desde logo, porque o que está em apreciação é o despacho liminar que indeferiu os embargos; (ii) além disso, quanto ao clausulado, sempre dependerá da prova a produzir e da interpretação daquele; (iii) finalmente, porque o saber se sobre a quantia objecto de transacção incidem ou não descontos em sede de IRS e para a segurança social é uma questão a dirimir noutra sede, entre o sujeito passivo (autor/exequente) e administração fiscal e/ou entre aquele e a segurança social.

O que se pretende deixar realçado com tal argumentação é tão só que, face aos princípios gerais de tributação do trabalho dependente, constitui obrigação geral das entidades devedoras dos rendimentos de trabalho procederem à retenção na fonte de IRS e para a segurança social [cfr. artigo 2.º, n.º 4 e 99.º) do Código do IRS].

Fechado o parêntesis, e retomando o caso em apreço, sendo o valor da prestação acordada e que constituía o título executivo, em abstracto, de € 5.000,00, mas não se precisando se esse valor era líquido ou ilíquido, poder-se-á sustentar que o título dado à execução é inexequível, e daí que a embargante tenha procedido ao pagamento dessa prestação, através da entrega ao embargado/exequente de uma parte da quantia e o restante por descontos legais até completar aquele valor.

Contudo, tal interpretação – maleável – de inexequibilidade do título não se afigura consensual, suscitando dúvidas na sua aceitação, porquanto, como já se afirmou, o artigo 729.º é taxativo quanto aos fundamentos da oposição à execução, não permitindo uma interpretação extensiva, o que implicará que a oposição à execução terá que se basear num dos fundamentos ali expressamente previstos.

Assim, como decorrência lógica, admite-se que se conclua que o fundamento da oposição não se ajusta ao preceituado na analisada alínea a) do artigo 729.º.

Mas já se aceita que o fundamento invocado pela embargante para deduzir os embargos se subsuma à citada alínea g) do artigo 729.º.

Com efeito, são dois os requisitos que esta alínea impõe para que os factos modificativos ou extintivos da obrigação constituam fundamento de oposição à obrigação:

i) que esses factos seja posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração, o que vale por dizer que esses factos sejam posteriores à situação factual que conduziu à transacção judicial, supervenientes;

ii) que esses factos se encontrem provados por documento.

Não pode olvidar-se que, por um lado, a sentença, ou a transacção judicial que lhe é equiparada, decide a relação material e tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e, por outro, a sentença condenatória constitui inequivocamente título executivo, sendo, aliás, o título executivo por excelência (cfr. artigos 619.º e 705.º), ambos do Código de Processo Civil).

Por isso, em nome da certeza e segurança jurídica justifica-se que se imponham restrições quanto à admissibilidade de oposição à execução tendo por base factos modificativos ou extintivos da obrigação titulada pela sentença, assim se evitando que, de forma generalizada, através da oposição à execução se destrua a força de caso julgado, como ainda que através da oposição à oposição se renove o litígio já decidido na sentença dada à execução.

Isto sem prejuízo de verificados, obviamente, os respectivos pressupostos, através de um recurso de revisão se poder modificar a decisão transitada em julgado, e, obtida a mesma, se promover subsequentemente a extinção da execução ou da venda que tenha sido efectuada (cfr. artigos 696.º e 839.º, n.º 1, a), ambos do Código de Processo Civil).

No caso em apreço, é pacífico que os factos alegados pela recorrente/embargante para extinguir a obrigação – a alegada dedução que fez na prestação para efeitos de pagamento de IRS e de desconto para a segurança social –, são posteriores à transacção judicial, pelo que se mostra preenchido o primeiro dos requisitos mencionados.

Quanto ao 2.º requisito, de acordo com o disposto no artigo 364.º, n.º 1, do Código Civil, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior; porém, se resultar que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, desde que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (n.º 2 do mesmo artigo).

Como escreve Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1999, págs. 436-437), o n.º 1 do referido artigo consagra o princípio geral, segundo o qual os documentos autênticos, autenticados ou particulares são formalidade “ad substantiam”; já do n.º 2 infere-se que «(…) quaisquer documentos (autênticos ou particulares) serão formalidades «ad probationem», nos casos excepcionais em que resultar claramente da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto e não qualquer das outras finalidades possíveis do formalismo negocial (…). Admite-se nestes casos, como meio de suprimento da falta do documento, a confissão expressa».

Ou seja, quando a exigência do documento for exclusivamente determinada por uma estrita intenção probatória – no dizer da lei “apenas para prova da declaração” – o mesmo pode ser substituído por confissão expressa.

É o que se verifica no caso em presença: a exigência de documento quanto à modificação ou extinção do acordo judicial não constitui em si mesma condição de validade dessa modificação ou extinção, sendo apenas necessária à prova dessa modificação ou extinção.

Assim, o que está em causa com a específica exigência do documento é uma razão de ordem processual, de protecção à própria execução, de forma a que esta não seja afectada com uma oposição baseada em factos que, normalmente, sem serem acompanhados de prova documental se revelam não credíveis.

No ensinamento de Anselmo de Castro (A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª Edição, 1977, Coimbra Editora, pág. 292), que embora no domínio de anterior legislação se afigura manter-se actual, «o requisito está ligado ao efeito da admitida suspensão da execução em consequência da oposição, tendo por fim evitar que a acção executiva seja paralisada por oposições com base em factos que normalmente na circunstância se provam por documento e que dele desacompanhados se apresentam como não dignos de credibilidade».

Ora, voltando ao caso em apreciação, a embargante/executada não juntou prova dos alegados descontos feitos na prestação que pagou ao embargado/exequente referentes a IRS e segurança social: no entanto, importa ter presente, por um lado, que o próprio embargado não parece pôr em causa que a embargante tenha feito os descontos em causa (embora os considere indevidos) e, por outro, como já resulta do que se deixou afirmado, por o documento poder ser substituído por confissão – já que se trata uma formalidade ad probationem – ainda que não possuísse o necessário(s) documento(s) comprovativo(s) do(s) descontos(s) efectuado(s), sempre a oposição poderia ser deduzida e no seu decurso obter a confissão do exequente.

Assim, entende-se verificar-se fundamento de oposição à execução. Isto tendo em conta, volta-se a sublinhar, que não cumpre, aqui e agora, tomar posição sobre a interpretação da transacção judicial.

Refira-se ainda que a decisão recorrida invoca também o disposto no artigo 732.º, alínea c) do Código de Processo Civil – de acordo com o qual os embargos devem ser liminarmente indeferidos se «[f]orem manifestamente improcedentes» -, se bem que a finalizar recuse a oposição à execução apenas ao abrigo do disposto na alínea b) do referido artigo, ou seja, por o fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º a 731.º.

Seja como for, o certo é que como decorrência lógica do que se deixou afirmado, não se detecta que na fase liminar se possa afirmar que a oposição é destituída de qualquer fundamento, o mesmo é dizer que é manifesta a sua improcedência; para reforçar este entendimento basta atentar no que se deixou expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-02-2009 (Recurso n.º 2057/08, da 4.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt), também convocado pela recorrente, que concluiu nos seguintes termos:

«I - Tendo a acção declarativa (em que o autor tinha pedido o pagamento da quantia de € 345.761,64, a título de trabalho suplementar e a quantia de € 230.000, a título de danos não patrimoniais, terminado por transacção judicial que englobou, para além daqueles pedido, a cessação do próprio contrato de trabalho) terminado por transacção judicial, na qual a ré se obrigou a pagar ao autor “a quantia de € 285.000,00 a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho”, sendo que nesse valor “já está incluído o valor do pedido de danos não patrimoniais”, deve entender-se que a compensação global a pagar ao autor era ilíquida e que a mesma não incluía a discriminação dos danos.

II - Assim, tendo a ré pago ao autor a quantia de € 222.049,48 e retido na fonte a quantia de € 62.950,52, a título de IRS, que entregou nas Finanças, mostra-se cumprida a obrigação que a ré tinha sido assumido na aludida transacção, o que implica a procedência da oposição por ela deduzida à execução que o autor lhe havia instaurado, para obter o pagamento da quantia que lhe fora retida a título de IRS
».

Concluiu-se, por isso e mais uma vez, que não existe fundamento para, nesta fase processual, recusar a oposição apresentada pela recorrente."
 
[MTS]
 

22/09/2017

Bibliografia (564)


-- Ferreira de Almeida, F. M. L., Direito Processual Civil I, 2.ª ed. (Almedina: Coimbra 2017)

-- Menezes Leitão, L. M., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas / Anotado, 9.ª ed. (Almedina: Coimbra 2017)



Legislação europeia (Projectos e propostas) (32)



-- Recomendação de DECISÃO DO CONSELHO que autoriza a abertura de negociações com vista a uma convenção que estabelece um tribunal multilateral para a resolução de litígios em matéria de investimento (COM(2017) 493 final)


Jurisprudência europeia (TJ) (139)


Diret. 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Artigos 3.°, n.° 1, e 4.°, n.° 2 – Apreciação do carácter abusivo das cláusulas contratuais – Contrato de crédito celebrado numa divisa estrangeira – Risco cambial inteiramente a cargo do consumidor – Desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato – Momento em que o desequilíbrio deve ser apreciado – Alcance da expressão legal cláusulas “redigidas de maneira clara e compreensível” – Nível de informação que deve ser fornecido pelo banco


TJ 20/9/2017 (C‑186/16, Andriciuc et al./Banca Românească) decidiu o seguinte: 


1) O artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “objeto principal do contrato”, na aceção desta disposição, abrange uma cláusula contratual, como a que está em causa no processo principal, integrada num contrato de crédito celebrado numa divisa estrangeira, que não foi objeto de negociação individual e por força da qual o crédito deverá ser reembolsado na mesma divisa estrangeira em que foi contratado, uma vez que essa cláusula fixa uma prestação essencial que caracteriza o referido contrato. Por conseguinte, essa cláusula não pode ser considerada abusiva, desde que tenha sido redigida de maneira clara e compreensível.

2) O artigo 4.° n.° 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que o requisito segundo o qual uma cláusula contratual deve ser redigida de maneira clara e compreensível pressupõe que, no caso dos contratos de crédito, as instituições financeiras devam prestar aos mutuários informação suficiente que os habilite a tomar decisões prudentes e fundamentadas. A este respeito, esse requisito implica que a cláusula relativa ao reembolso do crédito na mesma divisa estrangeira em que foi contratado seja compreendida pelo consumidor, tanto no plano formal e gramatical, como quanto ao seu alcance concreto, no sentido de que um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, possa não só conhecer a possibilidade de a divisa estrangeira em que o empréstimo foi contratado sofrer uma valorização ou uma depreciação, mas também avaliar as consequências económicas, potencialmente significativas, dessa cláusula nas suas obrigações financeiras. Compete ao órgão jurisdicional nacional proceder às verificações necessárias a este respeito.

3) O artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que a avaliação do caráter abusivo de uma cláusula contratual deve ser efetuada com referência ao momento da celebração do contrato em causa, tendo em conta todas as circunstâncias que o profissional podia conhecer no momento da celebração do contrato e que eram suscetíveis de afetar a execução subsequente do referido contrato. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio avaliar, à luz de todas as circunstâncias do processo principal e tendo em conta, nomeadamente, a experiência e os conhecimentos do profissional, neste caso o banco, no que diz respeito às possíveis variações das taxas de câmbio e aos riscos inerentes à subscrição de um empréstimo em divisa estrangeira, a existência de um eventual desequilíbrio, na aceção daquela disposição. 


Nota: cf. CI 103/17.


Jurisprudência (690)


Extinção de sociedade; responsabilidade do sócio;
processo executivo


1. O sumário de RP 6/4/2017 (1345/14.8T2AGD-A.P1) é o seguinte:

I - Não obstante nas ações pendentes em que a sociedade seja parte, a sua extinção, determine a sua substituição pela generalidade dos sócios (representados pelo liquidatário) ao abrigo do art.º 162º do CSC, tal substituição não é automática nem ilimitada.

II - Se apenas a sociedade comercial de responsabilidade limitada, liquidada e extinta, foi condenada na ação declarativa no pagamento de determinada quantia pecuniária a favor do exequente, não pode a execução de sentença iniciar-se contra o seu ex-sócio (representado pelo liquidatário), ao abrigo do art.º 163º do CSC, sem que se aleguem (e provem oportunamente) em ação própria ou, pelo menos, no requerimento inicial executivo, os pressupostos da responsabilidade deste último e da sua sucessão à sociedade, desde logo como requisito de legitimidade passiva, por não figurar no título executivo como devedor, abrindo também o contraditório.

III - Sendo dele o ónus de alegação e prova, não satisfaz aquela exigência o exequente que só após a sentença declarativa condenatória da sociedade extinta, ali requereu simplesmente a notificação dessa sentença ao ex-sócio e que, no requerimento executivo o apresenta como executado, informando conclusivamente que “
dissolveu a sociedade e declarou falsamente que a mesma não tinha passivo” e que o “ora executado dissolveu a sociedade e ficou com os bens ativos de que ela era detentora”.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A lei trata como realidades distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos, a dissolução e liquidação da sociedade e a sua extinção.

Dissolvida a sociedade, entra em fase de liquidação (art.º 146º, n.º 1 CSC), mantendo ainda a sua personalidade jurídica, como estabelece o art.º 146º, nº 2, do CSC.

Uma sociedade dissolvida e em liquidação não está extinta; a extinção só se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação. De acordo com o nº 2 do art.º 160º do CSC, “a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação”.

É com a extinção da sociedade que deixa de existir a pessoa coletiva. Esta perde a sua personalidade jurídica e judiciária, não podendo instaurar nem ser destinatária de qualquer ação judicial.

Todavia, as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como resulta do preceituado nos citados art.ºs 162º, 163º e 164º. Estas disposições normativas tratam de matérias conexas, todas elas derivadas da subsistência de relações jurídicas, depois da extinção da sociedade. O facto de a sociedade se extinguir, nos termos referidos, não prejudica as soluções que o legislador criou, naqueles artigos, para as ações pendentes e para a superveniência de ativo ou de passivo [Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades - Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, 1987, pág. 436].

Não obstante a extinção, as ações em que a sociedade seja parte continuam o seu curso --- sem prejuízo das hipóteses em que a natureza da relação jurídica controvertida torne impossível ou inútil a continuação da lide [Raúl Ventura, ob. cit., pág. 467] --- considerando-se substituída pela generalidade dos seus sócios, representados pelos liquidatários (art.º 162º, nº 1, do CSC), sem que haja suspensão da instância, por não ser necessária a habilitação: são eles que passam a ser parte na ação, representados pelos liquidatários. A lei comete-lhes o encargo de defender interesses alheios, em continuação de uma função que, relativamente à sociedade, já vinham exercendo [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.6.2008, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. II, pág. 138; acórdão da Relação de Coimbra de 12.6.2014, proc. 20802/07.6YYLSB.Lin www.dgsi.pt]

Os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, mas apenas até ao montante que receberam na partilha (art.º 163º, nº 1, do CSC) [...]. Se houver passivo social não satisfeito ou acautelado, é dos sócios a respetiva responsabilidade, até ao montante do que receberam na partilha, sendo as ações necessárias para tanto propostas contra eles, mas na pessoa dos liquidatários, considerados, para o efeito, como seus representantes legais. A sua responsabilidade pessoal (falamos de sócios de sociedades de responsabilidade limitada) não excede, pois, as importâncias que hajam recebido em partilha dos bens sociais.

Raúl Ventura justifica bem: “(…) desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade ou contra esta, só os sócios podem ser os novos titulares desse ativo e passivo. A explicação jurídica dessa intuição reside na extensão do direito de cada sócio relativamente ao património ex-social. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação, distribuído pela partilha. Se tiverem recebido mais do que era seu direito, porque há débitos sociais insatisfeitos, terão de os satisfazer; se tiverem recebido menos, porque não foram partilhados bens sociais, terão direito a estes”.

Desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade ou contra esta, só os sócios podem ser os novos titulares desse ativo e passivo. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação, distribuído pela partilha. Se tiverem recebido mais do que era seu direito, porque há débitos insatisfeitos, terão de os satisfazer; se tiverem recebido menos, porque não foram partilhados bens sociais, terão direito a eles.

É jurisprudência maioritária e, na nossa perspetiva, mais correta que, para fazer acionar a responsabilidade dos ex-sócios --- uma responsabilidade pessoal --- é necessário que se prove que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens, ou alguns desses bens, reverteram para eles, recaindo o ónus da alegação e prova de tais factos sobre o credor, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil. A existência de bens e a sua partilha entre os sócios são elementos constitutivos do seu direito. O seu direito sobre os sócios só nasce se tiver havido partilha de bens. Sem existência de bens e sua partilha pelos sócios não nasce qualquer direito do credor da sociedade em relação aos sócios. [Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.11.2007 e de 26.6.2008, Colectânea de Jurisprudência do STJ, Ano XV, Tomo III, pág. 124, e Ano XVI, Tomo II, pág. 138, respetivamente, de 23.4.2008, proc. 07S4745, de 7.5.2009, proc. 08S3257, de 7.7.2010, proc. 203-D/1999.L1.S1, acórdãos da Relação do Porto de 15.12.2010, proc. 576/07.1TTVCT-C.P1, de 5.7.2012, proc. 316/2001.P1, de 10.9.2012, proc. 2001/05.3TVPRT.P1, da Relação de Coimbra de 7.9.2010, proc. 702/05.5TBPMS.C1, de 22.3.2011, proc. 1447/08.0TBVIS-B.C1, todos inwww.dgsi.pt. Na doutrina, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 773].

Com efeito, nem a substituição da sociedade extinta, pelos seus antigos sócios, é automática, nem a responsabilidade destes é ilimitada.

A sucessão subjetiva operada nas ações (e execuções) pendentes contra a sociedade, à data da sua extinção, sem suspensão da instância nem habilitação não dispensa o credor do ónus de provar aqueles elementos constitutivos do seu direito contra os ex-sócios. Aqueles factos são constitutivos do direito de acionar os sócios.

Como se diz no acórdão da Relação de Lisboa de 12.7.2012 [Proc. 17316/09.3YIPRT-B.L1-7in www.dgsi.pt], “(…) é ónus do credor social o de demonstrar (se for caso, em acção executiva) os bens (o património ou, ao menos, o seu volume) que passaram para a esfera do (antigo) sócio em execução de partilha. É um momento (logicamente) subsequente ao do reconhecimento da “detenção” do vínculo de cumprimento na (própria) esfera jurídica do último; e é uma faculdade ou possibilidade que àquele, se o pretender, não pode ser cerceada. Ou seja, a de encetar a busca, a prova, o convencimento, de que houve bens (também) transitados; a par da transferência do vínculo jurídico. E isso, com o significado de (ele credor) só ir conseguir atingir, para satisfação do seu direito, esse património (ou o seu respetivo valor) em que logre o êxito da comprovação da haver pertencido à sociedade (sua devedora originária) e que haja sido transferido, com a extinção, para a esfera do sucessor.”"


[MTS]