"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/09/2017

Jurisprudência (678)


Promitente-comprador; consumidor;
direito de retenção


1. O sumário de RG 23/2/2017 (4247/11.6TBBRG-B.G1) é o seguinte:

I - Os Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência não têm o carácter vinculativo que tinham os “Assentos”, mas os Tribunais devem acata-los, sob pena de descaracterização do instituto, posto que lhe estão subjacentes razões de protecção dos valores de segurança jurídica e de igualdade de tratamento. 
 
II - A jurisprudência fixada só poderá ser desconsiderada se surgirem circunstâncias novas que alterem os pressupostos em que assentou o entendimento jurisprudencial, ou se forem trazidos novos argumentos que não foram tidos em conta no acórdão uniformizador e que, pela sua marcada relevância, justificam a divergência da decisão. 
 
III – Na sentença de verificação e graduação de créditos, a que alude o art.º 140.º do C.I.R.E., os tribunais devem obediência à doutrina fixada pelo AUJ n.º 4/2014, do S.T.J., quanto ao reconhecimento do direito de retenção apenas aos promitentes-compradores consumidores. 
 
IV – No conceito de consumidor cabem, apenas, as pessoas a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a um uso não profissional, ou seja, o sujeito final na transacção do bem. 
 
V – Estando o administrador da insolvência obrigado a referir, na lista a que alude o art.º 129.º do C.I.R.E., a natureza de cada um dos créditos, a classificação que ele faça de um crédito como “garantido” por virtude de um direito de retenção, não é vinculativa para o Juiz, nem mesmo na ausência de impugnações. 
 
VI – A admissibilidade do pedido de reforma da sentença está dependente da verificação cumulativa de dois requisitos principais:
a) que a decisão não admita recurso;
b) que tenha ocorrido um lapso manifesto do juiz:
i) na determinação da norma aplicável, v.g. quando aplique uma norma revogada ou não aplique uma norma vigente;
ii) na qualificação jurídica dos factos, v.g. quando qualifique os factos com ofensa de conceitos ou princípios elementares do direito;
iii) na desconsideração de documentos ou outro meio de prova plena que existam no processo e que impliquem, só por si, uma decisão diversa da proferida, ou seja, não havendo reparado que determinado facto está provado nos autos por documento, por confissão ou por ter sido admitido por acordo. 
 
VII - Sendo admissível recurso, a correcção de erros ou lapsos de que enferme a sentença há-de ser operada por esta via. 
 
VIII – Só faz caso julgado formal a decisão que conheça e aprecie uma concreta questão.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"[...] a questão que se discutiu longamente, na jurisprudência e na doutrina, era a de saber se num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, o promitente-comprador que, tendo entregue o sinal e tendo obtido a traditio da coisa objecto do contrato-prometido, goza ou não do direito de retenção sobre ela caso o administrador de insolvência opte por não cumprir o contrato-promessa. 

É que, como resulta do disposto no artº. 106º., do C.I.R.E., o A.I. só está obrigado a cumprir o contrato-promessa, outorgando o contrato definitivo, se estiverem, cumulativamente, verificados os três requisitos que estão referidos no nº. 1: o insolvente ser o promitente-vendedor; ter sido atribuída a eficácia real ao contrato (rectius à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais); e ter havido a tradição da coisa, objecto do contrato-prometido (que só pode ser um imóvel ou um móvel sujeito a registo), para o promitente-comprador. 

Faltando um destes requisitos, ainda que tenha sido atribuída a eficácia real ao contrato, o A.I. pode recusar-se a cumprir o contrato-promessa se entender que é o mais vantajoso para a pluralidade dos credores, como decorre do disposto no nº. 2 do referido artº. 106º., na base do qual se encontra o princípio da igualdade dos credores - par conditio creditorum -, que, refere a Profª. Catarina Serra, tem na sua génese “uma exigência de justiça distributiva”, de “distribuição do sacrifício”, de “comunhão de perdas” (in “Cadernos de Direito Privado” nº. 38, pág. 58). 

A admitir-se o direito de retenção, no âmbito da graduação de créditos, o crédito do promitente-comprador entra no conceito de “crédito garantido”, já que aquele é um direito real de garantia, nos termos do art.º 754.º do Código Civil (C.C.), atenta a nomenclatura do C.I.R.E. – cfr. a alínea a) do n.º 4 do art.º 47.º - advindo a importância desta classificação da prioridade de pagamento mesmo sobre o crédito hipotecário – cfr. art.os 174.º do C.I.R.E. e nº. 2 do artº. 759º., e nº. 2 do artº. 604º., ambos do C.C.

A resposta à questão acima formulada não foi pacífica, nem na doutrina nem na jurisprudência, perfilando-se três teses em confronto:

- os Profs. Catarina Serra e Nuno Manuel Pinto Oliveira defendem não assistir ao promitente-comprador o direito de retenção porque não tem direito à restituição do sinal em dobro já que: a recusa do cumprimento do contrato- promessa “não é um «não cumprimento» no sentido do art. 442º. do CC”; e ainda que o fosse, a recusa do cumprimento “não é imputável ao promitente-vendedor”; e mesmo considerando esta recusa como um incumprimento imputável ao promitente-vendedor, nunca o promitente-comprador teria direito à restituição do sinal em dobro por a isso se opor a regra imperativa que consta do artº. 119º., nº. 1 do CIRE., que comina com a nulidade qualquer convenção das partes que exclua ou limite a aplicação das normas constantes do capítulo que rege sobre os efeitos dos negócios em curso.

Assim, tendo base legal o direito, de natureza potestativa, do A.I. de recusar o cumprimento do contrato, não há o dever de o cumprir, o que exclui a ilicitude e a culpa, que são pressupostos do funcionamento do nº. 2 do artº. 442º., do C.C..

Por outro lado, exprimindo a recusa do A.I., em cumprir o contrato, não um incumprimento mas uma “reconfiguração da relação” (segundo a terminologia do Prof. Oliveira Ascensão) considerada a especificidade do processo de insolvência, também por aqui não é aplicável aquele nº. 2 do artº. 442º..

Da não aplicação deste preceito legal, resulta a desaplicação da alínea f) do nº. 1 do artº. 755º., do C.C. (cfr. “Cadernos de Direito Privado” n.os 38 (Abril/Junho 2012), págs. 60 a 67, quanto à Profª. Catarina Serra, e 36 (Outubro/Dezembro 2011), págs. 3 a 21, quanto ao Prof. Nuno Oliveira, que refuta aí todos os argumentos em que se baseiam as teses adversas, e ainda o artigo conjunto em “http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos). Na jurisprudência, para além dos acórdãos citados no último artigo, podem ver-se ainda os da Rel. do Porto, de 11/10/2011 (Procº. 92/05.6TYVNG-M.P1, Des. Henrique Araújo, in www.dgsi.pt) e da Rel. de Coimbra, de 06/11/2012 (Procº. 729/09.8T2AVR-B.C1, Desª. Maria Inês Moura, in www.dgsi.pt) e nesta Rel. de Guimarães, dentre vários, o de 14/12/2010 (Procº. 6132/08.0TBBRG.G1, Des. Manso Rainho, in www.dgsi.pt).

- Para o Prof. Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, tendo presente o contexto em que foi criado o direito de retenção do promitente-adquirente/ consumidor, e reconhecendo, embora, que se não verifica, nesta situação, um dos requisitos exigidos pelo artº. 442º - o incumprimento culposo do promitente-vendedor -, defende não haver razão que justifique o afastamento, no processo de insolvência, das valorações que conduziram à criação do referido direito de retenção, antes elas se justificam porque “É nesta altura que ele está especialmente carente da tutela que a norma lhe visa conceder”, concluindo que a protecção daquele “num contrato-promessa sinalizado com tradição do edifício ou fracção autónoma, não pode ficar dependente de a celebração do contrato definitivo não se vir a realizar porque a outra parte incumpre ou o administrador recusa o cumprimento”, não havendo qualquer motivo para uma lei insolvencial “que se manifesta tão generosa na protecção de diversos credores com os fundamentos mais diversos (…) não tutele nestes casos os promitentes-compradores/consumidores, naquele que, para mais, é um imperativo constitucional” (in “Cadernos de Direito Privado”, nº. 33 (Janeiro/Março 2011), págs. 3-29). Na jurisprudência, v.g., o ac. do S.T.J. de 14/06/2011 (in C.J., Acs. do S.T.J., ano XIX, Tomo II/2011, págs. 108-112).

- Para o Prof. Gravato de Morais, havendo um contrato-promessa de transmissão ou constituição de um direito real, e havendo a entrega da coisa objecto do contrato, também o requisito da imputabilidade do incumprimento ao promitente-vendedor se deve ter por preenchido, entendendo-se aquele conceito “cum grano salis” em sede de insolvência, e no exacto sentido de “ter dado causa a”, “ter motivado a”. Compara esta situação com a da venda a prestações com reserva de propriedade e a da locação financeira com entrega da coisa, e inferindo que se a expectativa de aquisição do comprador ou do locatário é tão forte que impede um direito de escolha pelo A.I. (artº. 104º., nº. 1, do C.I.R.E.), não há razão para considerar a posição do promitente-comprador com tradição menos forte que a daqueles e “que o leve a ter que abdicar de tudo o que tem (…) mesmo até a prevalência que o seu direito de crédito lhe dá” (in “Cadernos de Direito Privado”, nº. 29 (Janeiro/Março 2010), págs. 3-12). No mesmo sentido vai o Prof. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 6ª. ed., pág. 139). Na jurisprudência decidiram-se por esta tese, para além dos arestos mencionados naquele artigo, ainda v.g., os acs. do S.T.J. de 18/09/2007 (Procº. 07A2235, Comº. Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt), e de 20/11/2011 (in C.J., Acs. do S.T.J., ano XIX, tomo III/2011, pág. 83-88), e o ac. desta Rel. de Guimarães de 11/11/2009 (in C.J., ano XXXIV, tomo V/2009, pág. 252/253). 

O S.T.J., no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2014, de 20/03/2014, firmou jurisprudência, tirada por maioria, nos seguintes termos:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil” - in D.R., 1.ª série, n.º 95, de 19/05/2014, págs. 2882 sgs., maxime 2889.

Optou, assim, o Supremo pela segunda das posições jurisprudenciais e doutrinais acima referidas, tendo como linha de referência a intenção legislativa nas alterações que introduziu ao regime do contrato-promessa de compra e venda, designadamente o Dec.-Lei 379/86 de 11 de Novembro, que aditou à lista dos titulares do direito de retenção “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido” – alínea f) do n.º 1 do art.º 755.º do C.C.."
 
[MTS]