"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/09/2017

Jurisprudência (682)


Prova pericial;
apreciação


1. O sumário de RE 23/3/2017 (65/14.8TBCVD.E1) é o seguinte:

I – Sendo o específico objeto da prova pericial a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina, haverá de reconhecer-se à prova pericial um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. 
 
II - Se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz, já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser suscetível de uma crítica material e igualmente científica. 
 
III - Assim, sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva.
 
IV - O estatuto de referência do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (INMLCF, I.P) exige uma série de procedimentos atinentes a aferir a qualidade da instituição, pelo que se no final desse processo de avaliação, o legislador chegou à conclusão que o INMLCF, I.P. é uma entidade de referência, só pode ser por que se concluiu que técnica e cientificamente é credível, que as suas perícias serão seguras e confiáveis.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No tocante ao valor da perícia, quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz [art. 389º do CC].

Deste princípio decorre, naturalmente, a impossibilidade de considerar os pareceres dos peritos como contendo verdadeiras decisões, às quais o juiz não possa, irremediavelmente, subtrair-se. Uma tal conclusão só se explicaria por um deslumbramento face à prova científica de todo inaceitável e incompatível com os dados, que relativamente à pericial, a lei coloca à disposição do intérprete e do aplicador.

Contudo, convém não esquecer o específico objeto da prova pericial: a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina [art. 388º do CC].

Deste modo, haverá de reconhecer-se à prova pericial um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Assim, se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz, já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser suscetível de uma crítica material e igualmente científica. 

Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva[3] (art. 607º, nº 4, do CPC). Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida [
Carlos Lopes do Rego, O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo da Filiação, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, pp. 789 e 780, citado no Ac. da RC de 24.04.2012, proc. 4857/07.6TBVIS.C1, que aqui seguimos de perto]. 

Ora, «por mais que se afirme a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação, não é raro que o laudo pericial desempenhe papel absorvente na decisão da causa» [Cfr. o citado Ac. da RC de 24.04.2012].

Este entendimento mostra-se reforçado no caso concreto, pois no âmbito da sua missão e atribuições, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P., abreviadamente designado por INMLCF, I.P., é considerado instituição nacional de referência [cfr. art. 1º, nº 3, do Decreto-Lei nº 166/2012, de 31 de Julho].

O INMLCF, I.P., tem por missão assegurar a formação e coordenação científicas da atividade no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses, superintendendo e orientando a atividade dos seus serviços médico-legais e dos peritos contratados para o exercício de funções periciais. São atribuições do INMLCF, I.P.: «(…) b) Cooperar com os tribunais e demais serviços e entidades que intervêm no sistema de administração da justiça, realizando os exames e as perícias de medicina legal e forenses que lhe forem solicitados, nos termos da lei, bem como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado, no âmbito das suas atribuições – art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Decreto-Lei n.º 166/2012, de 31.07.

Ao Serviço de Clínica e Patologia Forenses compete a realização das seguintes perícias e exames em pessoas: Para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psicofísica, nos diversos domínios do direito, designadamente no âmbito do direito penal, civil e do trabalho, nas comarcas do âmbito territorial de atuação da delegação – art. 9º, nº 2, al. a), dos Estatutos do INMLCF, I.P., aprovados pela Portaria n.º 19/2013, de 21 de Janeiro.

O INMLCF, I.P. dispõe de Gabinetes Médico-Legais e Forenses da quem compete, entre outras, «a realização de exames e perícias em pessoas, para descrição e avaliação dos danos provocados na integridade psicofísica, nomeadamente, no âmbito do Direito penal, civil e do trabalho, bem como a realização de perícias de psiquiatria e psicologia forenses» - cfr. art. 11º, nº 1, da referida Portaria.

O legislador, ao distinguir as perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza judiciária, cujos peritos gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica [...].

O estatuto de referência do INMLCF, I.P. exige uma série de procedimentos atinentes a aferir a qualidade da instituição, pelo que se no final desse processo de avaliação, o legislador chegou à conclusão que o INMLCF, I.P. é uma entidade de referência, só pode ser por que se concluiu que técnica e cientificamente é credível, que as suas perícias serão seguras e confiáveis. 

Será que no caso concreto os depoimentos das testemunhas referenciadas pela recorrente impõem um juízo diverso do acolhido no relatório pericial efetuado pelo INMLCF, I.P. através do Gabinete Médico-Legal e Forense do Alto Alentejo, e que se encontra junto aos autos a fls. 189-190?

A resposta é, podemos adiantar desde já, negativa.

Dos depoimentos das testemunhas MP, médico de família da autora, e JA, médico psiquiatra, como se vê, aliás, da própria transcrição feita pela recorrente nas suas alegações, não resulta uma avaliação concreta e fundamentada da incapacidade de que a autora sofre, limitando-se estas testemunhas a afirmar em termos vagos e genéricos que a autora se encontra incapacitada para trabalhar e a dificuldade em a mesma arranjar trabalho compatível com a incapacidade de que padece, não tendo por isso tais depoimentos a virtualidade de pôr em causa o relatório de perícia médico-legal junto aos autos.

A testemunha MS, médica e presidente da Junta Médica da Segurança Social, foi a subscritora do atestado multiuso referido no ponto 19 dos factos provados, o qual confirmou. Porém, como bem se anotou na sentença recorrida, tal atestado «destina-se a fazer a avaliação da situação de saúde para efeitos de atribuição de benefícios fiscais ou de atribuição de outras isenções, socorrendo-se de critérios e formulários (Anexo I) diferentes daqueles que foram usados no relatório pericial (Anexo II), de acordo com os critérios utilizados pela entidade competente e especializada na realização das perícias em causa que é o Instituto de Medicina Legal.»

A testemunha CP, marido da autora, embora tenha referido que a mulher não faz nada em casa, não deixou de dizer que a mesma, ainda que com dificuldade, conduz a viatura automóvel até Castelo de Vide, embora já o não faça para Portalegre, o que, apesar de tudo, não deixa de revelar autonomia por parte da autora, sabido que a condução automóvel demanda alguma exigência física, como bem se observou na sentença recorrida.

Bem andou, pois, o Mm.º Juiz a quo ao julgar não provada a matéria de facto em causa."


[MTS]