"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/09/2017

Jurisprudência (683)


Factos instrumentais;
articulados supervenientes


I. O sumário de RE 23/372017 (108/16.0T8FAR-A.E1) é o seguinte: 

Os factos novos não podem corresponder a uma situação de alteração da causa de pedir fora dos condicionalismos dos artigos 264º e 265º do Código de Processo Civil, nem o articulado superveniente pode surgir associado ao aditamento de factos que sejam mero complemento ou concretização dos que hajam anteriormente alegado ou que se apresentem como simplesmente instrumentais da pretensão deduzida, dado que, nesta última hipótese, por força dos poderes de cognição do Tribunal presentes no artigo 5º do Código de Processo Civil, o julgador está vinculado a tomar posição sobre os mesmos. 

Apesar de ser este o texto do sumário publicado, o Relator tinha elaborado o seguinte sumário: 

1. A lei impõe ao julgador uma intervenção de controlo no sentido de apurar da tempestividade e, bem assim, da utilidade dos factos supervenientes para a justa decisão do litígio, expressa esta última na alocução «quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa».

2. A admissibilidade dos articulados supervenientes depende, além do mais, da relevância ou irrelevância do facto respectivo quanto à pretensão deduzida. Isto significa que as partes podem, observadas certas condições, trazer ao processo factos relevantes que ocorreram até ao encerramento da discussão, que elas não puderam trazer por desconhecimento ou por terem ocorrido após o decurso do prazo para a apresentação dos articulados onde tais factos deveriam ser alegados.

3. Os factos novos não podem corresponder a uma situação de alteração da causa de pedir fora dos condicionalismos dos artigos 264º e 265º do Código de Processo Civil nem o articulado superveniente pode surgir associado ao aditamento de factos que sejam mero complemento ou concretização dos que hajam anteriormente alegado ou que se apresentem como simplesmente instrumentais da pretensão deduzida, dado que, nesta última hipótese, por força dos poderes de cognição do Tribunal presentes no artigo 5º do Código de Processo Civil, o julgador está vinculado a tomar posição sobre os mesmos.

4. A utilidade do articulado superveniente é avaliada casuisticamente, à luz do pedido, causa de pedir e das excepções invocadas pelas partes. 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em sede de petição inicial, a Autora dedica um capítulo à questão da abertura do restaurante e à resolução do contrato de arrendamento por justa causa, fundamentando, entre outra argumentação, o seu direito na circunstância do senhorio ter exigido a abertura de paredes no espaço comercial em causa (artigos 161 a 205).

Posteriormente, em sede de articulado superveniente, com fundamento no instituto do abuso de direito, no domínio do princípio da confiança, pretende alargar a discussão a 5 (cinco) novos factos relacionados com a cedência do espaço a uma outra empresa, a quem não foi exigido que as passagens do corredor se encontrassem abertas.

O Tribunal entendeu não admitir o articulado superveniente por duas razões. 

A primeira estriba-se na circunstância de o facto alegado não ser constitutivo do direito invocado. Na perspectiva do Tribunal «a quo» «importa discutir a actuação da Ré relativamente à Autora, no âmbito das alegadas soluções técnicas para as passagens e depois no âmbito da alegada oposição da Ré à manutenção dessas soluções. Daí que a conduta da Ré no momento actual, designadamente no que respeita à permissão ou oposição ao encerramento da passagem, podendo interessar à demonstração de factos essenciais e que respeitam à conduta da Ré (quanto à permissão do encerramento da passagem) não se integra nos factos constitutivos do direito da Autora, podendo sim, enquadrar-se no âmbito dos factos instrumentais (servindo, portanto, à demonstração dos factos essenciais, e que aqui são os relativos à alegada permissão da Ré para a realização das obras de passagem, ou seja, servindo á descoberta da verdade. Aliás, por isso, sobre essa factualidade foram ouvidas diversas testemunhas». 
 
Esta primeira questão surge entrelaçada com os princípios do dispositivo e da controvérsia precipitados no artigo 5º do Código de Processo Civil e com o alcance do ónus da substanciação e dos poderes investigatórios do Tribunal.

Prescreve o artigo 5º, nº 2, do Código de Processo Civil que, para além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo Juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções [Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/09/2014, in www.dgsi.pt].

O princípio da aquisição processual está precipitado no artigo 413º do Código de Processo Civil, sendo que, por essa via, «o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las».

O Tribunal, no julgamento da matéria de facto, deve procurar tomar em consideração e atender a todas as provas produzidas nos autos, mesmo que elas aproveitem à parte contrária, ou mesmo que respeitem a factos (instrumentais) que, não tendo sido expressamente alegados, resultem da instrução e do julgamento da causa [Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra 2007, pág. 162.].

Os factos essenciais devem ser alegados e provados pelas partes, mas o juiz pode atender aos factos notórios (artigo 512º do Código de Processo Civil) e aos factos instrumentais, não alegados pelas partes, que resultem da instrução e do julgamento [...] [...] [...].

Quanto aos factos instrumentais, o Tribunal pode não só investiga-los, como ordenar quanto a eles as actividades instrutórias que possam ser de iniciativa oficiosa; pelo contrário, quanto aos factos essenciais, o tribunal não possui poderes inquisitórios, pelo que, relativamente a eles, só pode ordenar as actividades oficiosas de instrução legalmente permitidas [...] [...].

A grande diferença em relação ao anterior Código de Processo Civil é que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende já de requerimento da parte interessada nesse aproveitamento para que ele aconteça, como exigia o artigo 264º, nº 3, daquele diploma. 

Presentemente, o juiz pode considerá-los mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que os sujeitos processuais tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos. 

Aliás, recentemente, em comentário a Acórdão por nós subscrito (processo nº 232/10.3T2DLD.E1 do Tribunal da Relação de Évora, relatado em 03/11/2016), Miguel Teixeira de Sousa [Publicado no sítio do Instituto Português de Processo Civil] escreve que «a circunstância de, no artigo 5º, nº 2, al. b), CPC, ter deixado de se exigir a concordância da parte quanto ao aproveitamento pelo tribunal do facto complementar adquirido durante a instrução da causa não foi acidental, nem é inócua. A solução é orientada pela busca da verdade em processo, entendendo-se que nada pode justificar que a parte possa impedir o tribunal de utilizar na sua actividade decisória um facto de que o tribunal tem conhecimento (…).

Uma coisa é a parte ter disponibilidade quanto aos factos que quer alegar; outra bem diferente é a parte ter disponibilidade sobre um facto que o tribunal apurou e poder impedir o tribunal de o considerar na apreciação da acção. O princípio dispositivo só respeita àquele primeiro aspecto, pelo que a consideração pelo tribunal de um facto apurado em juízo, mas não alegado pelas partes, nunca pode ser vista como uma violação daquele princípio».

Feito este enquadramento jurídico-normativo, cumpre salientar que, na realidade, os factos em questão não se trata de episódios constitutivos do direito, a questão essencial foi vertida num dos enunciados temas da prova e o Tribunal «a quo» admitiu já a produção de prova sobre a matéria que deu azo à apresentação do articulado superveniente. 
 
E, quanto a este último item, ao assim actuar, o julgador de Primeira Instância ficou assim vinculado a tomar posição expressa sobre esses assuntos, pois isso é admitido claramente quando refere que «sem prejuízo da eventualidade de o Tribunal poder considerar tais factos, e nos termos em que resultem da discussão da causa, em sede de sentença».
 
É compreensível o discurso seja apresentado na forma condicional. Porém, ao estruturar o despacho agora recorrido com recurso à distinção entre factos constitutivos (essenciais) e factos instrumentais com relevo para a decisão e ao assumir que sobre essa factualidade foram ouvidas testemunhas, independentemente da questão da admissibilidade do articulado superveniente, o Tribunal «a quo» fica jungido a deliberar de facto sobre a questão controvertida na parte em que foi produzida prova."


III. [Comentário] O que é dito no acórdão quanto aos articulados supervenientes está, em regra, correcto: os articulados supervenientes não podem ser utilizados para a alegação de factos instrumentais ou probatórios, ou seja, de factos dos quais é possível inferir, através de presunções judiciais ou naturais, o facto probando.

Isto é correcto quanto a factos instrumentais que não são supevenientes em relação aos articulados das partes: nesta hipótese, falta o próprio requisito de superveniência que pode justificar a admissibilidade dos articulados supervenientes. Pode, no entanto, perguntar-se: e quanto a factos instrumentais supervenientes?

A primeira questão a resolver é a de saber se pode haver factos instrumentais supervenientes. Embora a sua verificação não seja frequente, não é de excluir que os factos instrumentais possam ser supervenientes em relação aos articulados das partes e, portanto, também em relação ao facto probando. Basta pensar numa superveniência subjectiva ou num sintoma que se manifesta durante a pendência da causa e que indicia claramente o tipo de doença de que sofre o autor.

A segunda questão é a de saber se o facto instrumental superveniente pode ser alegado num articulado superveniente. A resposta é: pode (ao contrário do que, segundo parece, se entendeu quer na 1.ª, quer na 2.ª instância). A justificação é a seguinte: dado que nada impede que as partes aleguem factos instrumentais nos seus articulados, também nada pode impedir que as partes invoquem factos instrumentais supervenientes em articulados supervenientes.

O paralelismo entre a invocação de factos instrumentais nos articulados e a alegação de factos instrumentais supervenientes em articulados supervenientes também existe quanto à não preclusão decorrente da omissão da alegação destes factos. Tal como a não alegação de um facto instrumental nos articulados não impede que ele seja considerado pelo tribunal se o mesmo resultar da instrução da causa (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC), também um facto instrumental superveniente não alegado num articulado superveniente pode vir a ser considerado, nessa mesma situação, pelo tribunal.

MTS