"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/09/2017

Jurisprudência (684)


Uniformização de jurisprudência;
aplicação no tempo



1. O sumário de RP 28/3/2017 (614/07.8TYVNG-C.P1) é o seguinte:

I - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 tornou a qualidade de consumidor elemento constitutivo essencial do direito de retenção previsto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil nas situações de insolvência do promitente-vendedor.

II - Se o crédito foi reclamado em 2007, muito antes da prolação do referido AUJ nº 4/2014, sem que o credor reclamante tenha alegado a sua qualidade de consumidor, cuja essencialidade para o reconhecimento do direito de retenção nestes casos não era então previsível, e não tendo as partes nem a 1ª instância tomado posição expressa sobre tal questão, que só surgiu suscitada no recurso de apelação, terá esta que ser entendida como questão nova não estritamente jurídica, a que está vedado o conhecimento por parte do tribunal de recurso.

III - O AUJ nº 4/2014 não incluiu o conceito de consumidor no seu segmento uniformizador, devendo considerar-se excluído deste conceito apenas aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:


"O art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil estabelece que goza do direito de retenção «o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º».

Por outro lado, o art. 106º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) diz-nos que «no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.»

Tem-se discutido se, recusado o cumprimento do contrato-promessa sem eficácia real, o promitente-comprador que tenha a tradição da coisa conserva o direito de retenção que a lei civil comum lhe atribui para a defesa do seu crédito [Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 497].

E sobre esta questão, perante a diversidade de entendimentos, o Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6 TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) fixou jurisprudência nos seguintes termos:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”

Por conseguinte, face à jurisprudência entretanto uniformizada, para que o promitente-comprador, em graduação de créditos em processo de insolvência, goze de direito de retenção terá que ser incluído no conceito de consumidor.

É, porém, de discutir qual o alcance a dar ao conceito de consumidor para efeitos de aplicação daquela orientação jurisprudencial, mais precisamente, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.4.2015 (proc. 1187/08.0 TBTMR-A.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.): “se deverá ser considerado um conceito restrito, em conformidade com a definição dada no art.º 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96 (Lei da Defesa do Consumidor), de 31/07, com as alterações subsequentes e republicado pela Lei n.º 47/2014, de 28-07, ou mesmo com a definição dada na alínea c) do artigo 3.º do Dec.-Lei n.º 24/2014, de 14/02, que estabelece o regime legal aplicável aos contratos celebrados à distância; ou se, porventura, se deverá adotar ainda um conceito de consumidor mais alargado no sentido de compreender [designadamente] entes coletivos que não disponham de competência específica para o negócio em causa e, portanto, nessa medida, equiparáveis a pessoas singulares, como o assumido nos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.º 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.”

No sentido de um conceito mais amplo de consumidor se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2014 (proc. nº 1092/10.0 TBLSD-G.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.).

Aí se escreveu o seguinte:

“A inclusão do consumidor no texto uniformizante apoiou-se, como da fundamentação consta, no que defende Miguel Pestana de Vasconcelos, em Cadernos de Direito Privado, n.º 33, 3 e seguintes.

Este autor dedica ali a extensa nota de pé de página n.º 25 à noção de consumidor, sustentando que é ponderada e equilibrada, devendo «orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito», a definição resultante dos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.ºs 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.

É, então, «consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional».

Podendo estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade e às pessoas singulares que atuem na prossecução de fins que pertençam ao âmbito da sua atividade profissional, se provarem o que acaba de ser referido relativamente às pessoas coletivas.

O próprio texto fundamentante do Acórdão Uniformizador fornece na nota 10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito na parte da uniformização.

Ali se refere que:

«…não sofre dúvida que o promitente-vendedor é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para o seu uso próprio e não com escopo de revenda».

E no acórdão do STJ de 29.5.2014, que temos vindo a seguir, conclui-se:

«Deste texto, conjugado com o que vimos referindo em abstrato, cremos poder concluir que [do] conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.»

Percorrendo os autos, que tiveram o seu início em 2007, verifica-se, desde logo, que os reclamantes C… e D… e mulher não alegaram a qualidade de consumidores, nem tal questão foi suscitada até à realização da audiência de julgamento.

Apenas na sentença recorrida, na qual se entendeu que os créditos dos reclamantes gozam do direito de retenção previsto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil, fez o Mmº Juiz “a quo” uma breve alusão ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, para se referir que o mesmo depõe no sentido da decisão que se perfilhou.

Ora, a não invocação oportuna por parte dos credores reclamantes C… e D… e mulher da sua eventual qualidade de consumidores, que à luz da posterior jurisprudência uniformizada surge como vital para o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel ao abrigo do art. 755º, nº 1, al. f) coloca o problema que foi devidamente equacionado pelo Sr. Conselheiro Lopes do Rego no voto de vencido aposto ao mencionado AUJ nº 4/2014.

Escreveu o seguinte:

“Saliente-se, aliás, que a orientação ora adotada pelo Plenário, ao erigir a qualidade de consumidor em verdadeiro elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção, impondo, consequentemente, ao reclamante o ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade de consumidor, vem criar uma situação delicada nos processos pendentes, em que o reclamante não curou naturalmente de alegar, em termos processualmente adequados, tal qualidade jurídica, cuja essencialidade não era razoavelmente previsível – estando ultrapassado o momento processual próprio para completar ou corrigir a petição insuficiente.»

Assim, no caso dos autos, os credores reclamantes C… e D… e mulher não perspetivaram as suas reclamações de créditos no sentido da invocação da qualidade de consumidores, de tal forma que a sentença recorrida, embora aluda juridicamente ao AUJ nº 4/2014, é totalmente omissa em termos factuais quanto a essa questão.

Aliás, datando as reclamações destes créditos de 2007, não seria minimamente expectável que, nessa data, os reclamantes viessem alegar essa qualidade, uma vez que a sua essencialidade só surge com a referida uniformização de jurisprudência, em 2014.

E se em 2007 era já reconhecida uma significativa divergência jurisprudencial quanto à concessão de direito de retenção e prevalência do crédito respetivo sobre crédito garantido por hipoteca, nos casos de incumprimento de contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, em que houve tradição da coisa, com decisões em sentido afirmativo e negativo [...], a questão desse direito de retenção ser, nestes casos, concedido apenas ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor só principiou a ser colocada jurisprudencialmente com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.6.2011 (proc. nº 6132/08.0 TABRG-J.G.A1, disponível in www.dgsi.pt.).

Não se impunha, pois, a nenhum dos credores aqui em causa que nas suas reclamações invocasse a qualidade de consumidor e na sentença recorrida, independentemente do reconhecimento dessa qualidade, foi-lhes reconhecido direito de retenção e a consequente prevalência dos créditos respetivos sobre os garantidos por hipoteca.

Porém, em sede de recurso, a recorrente, apesar da inexistência de factualidade estabelecida na sentença recorrida quanto a tal questão, veio sustentar que os credores D… e mulher e também C… não revestem a qualidade de consumidores.

Os primeiros porque adquiriram as quatro frações – D, E, F e G – numa lógica de investimento e nunca terão residido nelas. A segunda, porque a fração A corresponde a um estabelecimento comercial, não se destinando a habitação, mas sim ao exercício do comércio.

No que toca aos credores D… e mulher, como já se referiu, nenhuma factualidade existe donde seja possível extrair que estes adquiriram as referidas frações D, E, F e G para investimento e que nunca habitaram nelas, sendo ainda que, face à data em que apresentaram as suas reclamações de créditos, não lhes era exigível que alegassem a sua eventual qualidade de consumidores.

Por isso, não havendo factualidade alegada, nem provada sobre a qualidade de consumidores dos credores reclamantes D… e mulher, tratando-se de uma questão que, em bom rigor, só agora foi suscitada pela recorrente, nas suas alegações, não se devendo relevar a pronúncia meramente superficial por parte do Mmº Juiz “a quo” sobre a aplicabilidade “in casu” do AUJ nº 4/2014, estamos perante uma autêntica questão nova, que não é estritamente jurídica. [...]

Deste modo, está vedado a este tribunal de recurso conhecer de tal questão. [...] [...]",

3. [Comentário] O acórdão, embora sem o referir expressamente, resolve um problema de aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência. Conforme já várias vezes houve a oportunidade de referir neste Blog, os acórdãos de uniformização não devem ser aplicados quando da sua aplicação decorra a frustração de expectativas de qualquer das partes, ou seja, quando essa aplicação constitua uma verdadeira "decisão-surpresa" frustradora dessas expectativas.

É precisamente a situação que se verifica no presente caso: aos recorridos não pode ser exigido que, cerca de sete anos antes, tivessem invocado a sua qualidade de consumidores, dado que a problemática desta qualificação só se tornou essencial através do Ac. STJ 4/2014.

MTS