"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/09/2017

Jurisprudência (687)


Temas da prova; enunciado;
decisões-surpresa


I. O sumário de RE 6/4/2017 (137/15.1T8SSB.E1) é o seguinte:

1 - O regime processual civil não permite decisões-surpresa;
 
2 - A enunciação dos temas da prova constitui um instrumento processual que permite orientar os sujeitos processuais no desenvolvimento da fase de produção de prova, com vista a que se alcance o fim desta: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio;
 
3 - Detectando-se que elementos factuais relevantes a submeter a instrução extravasam os temas da prova que foram previamente enunciados, ou colocam em causa circunstâncias de facto anunciadas como assentes, o princípio do contraditório impõe sejam as partes disso expressamente advertidas, concedendo-lhes possibilidade de produzir prova que entendam relevante.
 
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"Os Recorrentes invocam que a instrução da causa, em sede de audiência final, foi levada a cabo estando considerado assente, por competente despacho, que a entrega do locado ocorreu no final do mês de Abril de 2013. Logo, a produção de prova não versou a questão da data da entrega do locado. No entanto, na sentença, veio a fixar-se como provado que no decorrer do mês de Outubro de 2013 a 1.ª R entregou à A o locado. O que viola o princípio do contraditório, já que, atento o versado facto assente, nem sequer se discutiu, na audiência, a data da entrega do locado nem a falta de pagamento de rendas de Abril em diante.

Assiste-lhes inteira razão.

Assente que estava, no rol dos “Temas Assentes”, a entrega do locado no final do mês de Abril de 2013 [...], contemplando os “Temas da Prova” apenas as questões atinentes à falta de pagamento das rendas referentes aos meses de Janeiro a Abril de 2013 e a inexistência de recibos de quitação e respectivos motivos [...], a produção de prova não se debruçou sobre a questão de saber se a entrega do locado tinha ocorrido em Outubro de 2013, como alegado pela A na p.i. [...], resultando ainda afastada a questão da falta de pagamento das rendas após Abril de 2013.

Ora, declarando a sentença que “No decorrer do mês de Outubro de 2013 a 1.ª Ré entregou à Autora o locado” [...], e que “Em finais de Setembro de 2013 a 1.ª Ré não tinha pago à Autora as rendas relativas aos meses de Janeiro a Outubro desse ano, no montante de € 14.195,40” [...], é manifesto que o Tribunal a quo incorreu na violação do princípio do contraditório consagrado no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.

Nos termos de tal preceito legal, «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»

Como bem salientam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [
Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I vol., 2013, p. 27], o regime processual civil vigente não permite decisões-surpresa. «O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objecto da causa.»

Ora, a instrução do processo «tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, aos factos necessitados de prova» – art.º 410.º do CPC. Em consonância, estabelece o art.º 596.º, n.º 1, do CPC que, «Proferido o despacho saneador, quando a acção houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.

A enunciação dos temas da prova constitui um instrumento ou ferramenta processual que permite orientar os sujeitos processuais no desenvolvimento da fase de produção de prova, com vista a que se alcance o verdadeiro fim desta: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, conforme plasmado no art.º 411.º do CPC. Tal instrumento, no entanto, assume-se como orientador do rumo da instrução, das questões factuais que importa demonstrar, sem prejuízo de, por respeito à realidade histórica, em face de elementos e dados entretanto adquiridos, ou por via de uma mais criteriosa análise das posições e alegações das partes plasmadas nos articulados apresentados no processo, tal instrumento admitir alterações e adaptações em conformidade à perspectiva então alcançada. Consiste, assim, numa ferramenta ao serviço do apuramento da verdade e à justa composição do litígio, não revestindo um cariz estanque e castrador dos factos a submeter a instrução.

Nesses casos, porém, em que se detecta que elementos factuais relevantes a submeter a instrução extravasam os temas da prova que forma previamente enunciados, ou colocam em causa circunstâncias de facto anunciadas como assentes, o princípio do contraditório impõe sejam as partes disso expressamente advertidas, concedendo-lhes a possibilidade de, conforme previsto no art.º 598.º do CPC, aplicado a coberto do regime inserto no art.º 547.º do CPC, requerer eventuais meios de prova a produzir sobre os mesmos.

Revertendo ao caso em apreço, importa conceder às partes o direito intervirem de forma activa na instrução da causa no que tange à questão de saber se o locado foi entregue pela 1.ª R à A no final do mês de Abril de 2013 ou no decorrer do mês de Outubro de 2013 e, bem assim, no que respeita à falta de pagamento das rendas relativas aos meses de Maio a Outubro de 2013.

O que implica na anulação da decisão proferida na 1.ª instância, à luz do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, com vista à ampliação da matéria de facto a submeter a instrução, nos moldes expostos e sem prejuízo do disposto no art.º 662.º, n.º 3, al. c), do CPC, concedendo-se previamente às partes o direito a alterarem os requerimentos probatórios apresentados, seguindo-se a definição do regime jurídico aplicável.

Uma vez que a data da entrega do locado e da cessação da relação arrendatícia condiciona as demais questões suscitadas, determinando as quantias que sejam devidas a título de pagamento de rendas, relega-se para momento posterior o conhecimento delas, se for caso disso."
 
[MTS]