"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/09/2017

Jurisprudência (690)


Extinção de sociedade; responsabilidade do sócio;
processo executivo


1. O sumário de RP 6/4/2017 (1345/14.8T2AGD-A.P1) é o seguinte:

I - Não obstante nas ações pendentes em que a sociedade seja parte, a sua extinção, determine a sua substituição pela generalidade dos sócios (representados pelo liquidatário) ao abrigo do art.º 162º do CSC, tal substituição não é automática nem ilimitada.

II - Se apenas a sociedade comercial de responsabilidade limitada, liquidada e extinta, foi condenada na ação declarativa no pagamento de determinada quantia pecuniária a favor do exequente, não pode a execução de sentença iniciar-se contra o seu ex-sócio (representado pelo liquidatário), ao abrigo do art.º 163º do CSC, sem que se aleguem (e provem oportunamente) em ação própria ou, pelo menos, no requerimento inicial executivo, os pressupostos da responsabilidade deste último e da sua sucessão à sociedade, desde logo como requisito de legitimidade passiva, por não figurar no título executivo como devedor, abrindo também o contraditório.

III - Sendo dele o ónus de alegação e prova, não satisfaz aquela exigência o exequente que só após a sentença declarativa condenatória da sociedade extinta, ali requereu simplesmente a notificação dessa sentença ao ex-sócio e que, no requerimento executivo o apresenta como executado, informando conclusivamente que “
dissolveu a sociedade e declarou falsamente que a mesma não tinha passivo” e que o “ora executado dissolveu a sociedade e ficou com os bens ativos de que ela era detentora”.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A lei trata como realidades distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos, a dissolução e liquidação da sociedade e a sua extinção.

Dissolvida a sociedade, entra em fase de liquidação (art.º 146º, n.º 1 CSC), mantendo ainda a sua personalidade jurídica, como estabelece o art.º 146º, nº 2, do CSC.

Uma sociedade dissolvida e em liquidação não está extinta; a extinção só se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação. De acordo com o nº 2 do art.º 160º do CSC, “a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação”.

É com a extinção da sociedade que deixa de existir a pessoa coletiva. Esta perde a sua personalidade jurídica e judiciária, não podendo instaurar nem ser destinatária de qualquer ação judicial.

Todavia, as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como resulta do preceituado nos citados art.ºs 162º, 163º e 164º. Estas disposições normativas tratam de matérias conexas, todas elas derivadas da subsistência de relações jurídicas, depois da extinção da sociedade. O facto de a sociedade se extinguir, nos termos referidos, não prejudica as soluções que o legislador criou, naqueles artigos, para as ações pendentes e para a superveniência de ativo ou de passivo [Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades - Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, Almedina, 1987, pág. 436].

Não obstante a extinção, as ações em que a sociedade seja parte continuam o seu curso --- sem prejuízo das hipóteses em que a natureza da relação jurídica controvertida torne impossível ou inútil a continuação da lide [Raúl Ventura, ob. cit., pág. 467] --- considerando-se substituída pela generalidade dos seus sócios, representados pelos liquidatários (art.º 162º, nº 1, do CSC), sem que haja suspensão da instância, por não ser necessária a habilitação: são eles que passam a ser parte na ação, representados pelos liquidatários. A lei comete-lhes o encargo de defender interesses alheios, em continuação de uma função que, relativamente à sociedade, já vinham exercendo [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.6.2008, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. II, pág. 138; acórdão da Relação de Coimbra de 12.6.2014, proc. 20802/07.6YYLSB.Lin www.dgsi.pt]

Os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, mas apenas até ao montante que receberam na partilha (art.º 163º, nº 1, do CSC) [...]. Se houver passivo social não satisfeito ou acautelado, é dos sócios a respetiva responsabilidade, até ao montante do que receberam na partilha, sendo as ações necessárias para tanto propostas contra eles, mas na pessoa dos liquidatários, considerados, para o efeito, como seus representantes legais. A sua responsabilidade pessoal (falamos de sócios de sociedades de responsabilidade limitada) não excede, pois, as importâncias que hajam recebido em partilha dos bens sociais.

Raúl Ventura justifica bem: “(…) desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade ou contra esta, só os sócios podem ser os novos titulares desse ativo e passivo. A explicação jurídica dessa intuição reside na extensão do direito de cada sócio relativamente ao património ex-social. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação, distribuído pela partilha. Se tiverem recebido mais do que era seu direito, porque há débitos sociais insatisfeitos, terão de os satisfazer; se tiverem recebido menos, porque não foram partilhados bens sociais, terão direito a estes”.

Desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade ou contra esta, só os sócios podem ser os novos titulares desse ativo e passivo. Os sócios têm direito ao saldo da liquidação, distribuído pela partilha. Se tiverem recebido mais do que era seu direito, porque há débitos insatisfeitos, terão de os satisfazer; se tiverem recebido menos, porque não foram partilhados bens sociais, terão direito a eles.

É jurisprudência maioritária e, na nossa perspetiva, mais correta que, para fazer acionar a responsabilidade dos ex-sócios --- uma responsabilidade pessoal --- é necessário que se prove que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens, ou alguns desses bens, reverteram para eles, recaindo o ónus da alegação e prova de tais factos sobre o credor, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil. A existência de bens e a sua partilha entre os sócios são elementos constitutivos do seu direito. O seu direito sobre os sócios só nasce se tiver havido partilha de bens. Sem existência de bens e sua partilha pelos sócios não nasce qualquer direito do credor da sociedade em relação aos sócios. [Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.11.2007 e de 26.6.2008, Colectânea de Jurisprudência do STJ, Ano XV, Tomo III, pág. 124, e Ano XVI, Tomo II, pág. 138, respetivamente, de 23.4.2008, proc. 07S4745, de 7.5.2009, proc. 08S3257, de 7.7.2010, proc. 203-D/1999.L1.S1, acórdãos da Relação do Porto de 15.12.2010, proc. 576/07.1TTVCT-C.P1, de 5.7.2012, proc. 316/2001.P1, de 10.9.2012, proc. 2001/05.3TVPRT.P1, da Relação de Coimbra de 7.9.2010, proc. 702/05.5TBPMS.C1, de 22.3.2011, proc. 1447/08.0TBVIS-B.C1, todos inwww.dgsi.pt. Na doutrina, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 773].

Com efeito, nem a substituição da sociedade extinta, pelos seus antigos sócios, é automática, nem a responsabilidade destes é ilimitada.

A sucessão subjetiva operada nas ações (e execuções) pendentes contra a sociedade, à data da sua extinção, sem suspensão da instância nem habilitação não dispensa o credor do ónus de provar aqueles elementos constitutivos do seu direito contra os ex-sócios. Aqueles factos são constitutivos do direito de acionar os sócios.

Como se diz no acórdão da Relação de Lisboa de 12.7.2012 [Proc. 17316/09.3YIPRT-B.L1-7in www.dgsi.pt], “(…) é ónus do credor social o de demonstrar (se for caso, em acção executiva) os bens (o património ou, ao menos, o seu volume) que passaram para a esfera do (antigo) sócio em execução de partilha. É um momento (logicamente) subsequente ao do reconhecimento da “detenção” do vínculo de cumprimento na (própria) esfera jurídica do último; e é uma faculdade ou possibilidade que àquele, se o pretender, não pode ser cerceada. Ou seja, a de encetar a busca, a prova, o convencimento, de que houve bens (também) transitados; a par da transferência do vínculo jurídico. E isso, com o significado de (ele credor) só ir conseguir atingir, para satisfação do seu direito, esse património (ou o seu respetivo valor) em que logre o êxito da comprovação da haver pertencido à sociedade (sua devedora originária) e que haja sido transferido, com a extinção, para a esfera do sucessor.”"


[MTS]