"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/03/2018

Jurisprudência (823)


Título executivo; requisitos;
obrigações futuras


1. O sumário de RP 14/12/2017 (1401/15.5T8AGD.P1) é o seguinte:

I - Os efeitos do reconhecimento de créditos no âmbito de um processo de insolvência circunscrevem-se a esse processo. O efeito declarativo da correspondente decisão, designadamente o referente ao valor do crédito ali reconhecido, não pode impor-se a terceiros a esse processo, designadamente a quem tenha sido garante da insolvente e seja alheio ao processo de insolvência. 
 
II - Em relação a créditos anteriores à data da sua celebração, a escritura de constituição de uma hipoteca tendente a garantir a sua satisfação só poderia constituir título executivo desde que, simultaneamente, constituísse um documento recognitivo desses créditos, não podendo aplicar-se-lhes o regime do art. 50º do CPC anterior, correspondente ao art. 707º do actual CPC, que só vale para obrigações a cumprir ou a constituir ulteriormente.
 
III – Em relação a créditos emergentes de operações ulteriores à escritura de constituição de hipoteca, no respeitante a créditos emergentes do fornecimento de bens ou prestação de serviços, esta poderá constituir título executivo desde que complementada com documentos comprovativos de ter ocorrido um efectivo fornecimento de bens ou uma efectiva prestação de serviços; quanto a eventuais operações financeiras, para que a escritura pudesse constituir título executivo, de outro documento haveria de resultar a demonstração de que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
 
IV – A forma desses outros documentos - comprovativos da realização da prestação ou da constituição de obrigações - tem de obedecer às condições previstas na própria escritura, ou têm eles de constituir de per si, títulos executivos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
"[...] o objecto do recurso reduz-se a apurar se a escritura de constituição de hipoteca junta com o requerimento executivo constitui título executivo que possa fundar a execução.

*
Para a apreciação das questões descritas, é útil ter presente os seguintes elementos, que resultam dos próprios autos:

1 – As exequentes intentaram a presente execução pretendendo a cobrança dos seguintes créditos: C..., S.A., um total de €7.585,13, a título de capital, a que acrescem juros de mora; C..., S.A., um total de €437.330,92, sendo €372.787,53 a título de capital e o restante de juros. [...]

3 – No requerimento executivo, alegaram que os executados constituíram, através de escritura de 16/11/2011, em seu favor, hipoteca voluntária unilateral sobre diversos imóveis “para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presente ou futuras, da sociedade F..., LDA, emergentes do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou de quaisquer operações de financiamento ou afins, até ao montante máximo global de capital de €300.000,00 (trezentos mil euros) e acessórios” e que, em 13.06.2013, a referida sociedade F...,LDA, foi declarada insolvente, tendo sido liquidada.

4 – Alegaram que reclamaram os seus créditos nessa insolvência, que lhes foram reconhecidos pelos valores referidos, mas que nada receberam.

5 – Como título executivo, juntaram cópia da escritura de constituição da referida hipoteca, onde a executada E... e marido declararam constituir hipoteca voluntária unilateral sobre diversos imóveis ali descritos, de sua pertença, “para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presentes ou futuras da sua concessionária, "F..., LDA" (…) [...]

7 – Perante tal requerimento, o tribunal proferiu o seguinte despacho: “Antes do mais, e compulsado o requerimento executivo e da exposição sucinta dos factos, apenas resulta que o exequente juntou o comprovativo de ter garantia real sobre os executados, relativamente a créditos contraídos consigo.

No entanto, não juntou qualquer título executivo nem alegou quaisquer factos de onde provenha o seu crédito, sendo certo que da escritura não resulta qualquer confissão de dívida, mas, como dissemos, tão só que o crédito exequendo beneficia de garantia real.

Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 726/4 do Código de Processo Civil, convido o exequente a juntar aos autos o título executivo de onde resulte o seu crédito e a completar o requerimento executivo, quanto aos factos, alegando de onde resulta o seu crédito, data de incumprimento e valores em dívida, no prazo de 10 dias, sob pena de vir a ser indeferido o requerimento executivo.”

8 – Em resposta a tal interpelação, as exequentes ofereceram articulado onde afirmaram que o valor dos créditos exequendos é o que lhes foi reconhecido no processo de insolvência da "F..., LDA”, conforme as certidões extraídas desse processo; e, bem assim, que a documentação que agora apresentavam era a mesma que haviam apresentado para instruir as reclamações de créditos naquele processo, onde nenhuma impugnação havia sido oposta. [...]

10 – Foi, subsequentemente proferida a decisão recorrida, que concluiu não terem sido juntos que aos autos “quaisquer documentos que impliquem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação por parte dos ora executados, D... e E..., nem anterior nem posterior a 1 de setembro de 2013”, que os documentos juntos não têm “a força de título executivos” e que “as certidões juntas aos autos referentes ao reconhecimento dos créditos reclamados pelas ora exequentes junto do processo de insolvência da sociedade F..., Lda apenas certificam o reconhecimento do crédito das mesmas perante aquela sociedade e não perante os ora executados, não constituindo, assim, título executivo válido contra os ora executados.” Por isso, invocando o disposto no art. 726º, nº 2, al a) do CPC, indeferiu liminarmente o requerimento executivo.

*
Como anteriormente se referiu, a questão a decidir traduz-se em aferir se a escritura de constituição de hipoteca junta pelas exequentes, associada ao reconhecimento dos créditos exequendos no processo de insolvência da "F..., LDA”, bem como aos documentos complementarmente juntos [...] pode asssumir eficácia executiva e fundar, nesta causa, a cobrança coerciva dos valores referidos, sendo certo que tais créditos são precisamente do género daqueles que tal hipoteca se destinava a garantir.

Desta análise não pode dissociar-se o teor da cláusula constante da escritura e referida supra, no ponto 5º, nos termos da qual as partes acordaram que “os documentos que representam os créditos da B..., S.A., da L..., S.A., e da M..., S.A. e, bem assim, toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca, constituirão títulos ou documentos respeitantes a esta escritura, dela fazendo parte integrante para efeitos de execução, sendo caso disso.”

O que acaba de referir-se comporta duas conclusões que, pela sua simplicidade, desde já se enunciam.

Em primeiro lugar, a escritura em questão, de per si, não pode assumir-se como título executivo. Nela não está descrita qualquer obrigação a favor das exequentes, que, mesmo através de um ulterior processo de liquidação, pudesse ser concretizada e feita cumprir coercivamente. [...]

Em segundo lugar, ao caso é indiferente a circunstância de o volume de créditos aqui invocados pelas exequentes lhes ter sido reconhecido no processo de insolvência da "F..., LDA”. Os efeitos desse reconhecimento circunscrevem-se a esse processo, ao qual as aqui executadas foram alheias. O reconhecimento de tais créditos destina-se a, ali, através da execução universal do património da insolvente, se satisfazerem, na medida do possível, os créditos reconhecidos. Mas o efeito declarativo referente, designadamente, ao valor do crédito ali reconhecido não pode impor-se a terceiros a esse processo, designadamente a quem tenha sido garante da insolvente e seja alheio ao processo de insolvência. A isso obsta o regime resultante dos arts. 619º, 580º e 581º do CPC. [...]

Consequentemente, deverá ser em função de uma análise conjugada entre o teor da referida escritura e o dos documentos oferecidos pelas exequentes que haverá de se apurar da suficiência desse complexo documental para servir de título executivo.

Regendo sobre essa matéria, dispunha o art. 50º do CPC então vigente “Os documentos exarados ou autenticados, por notário (…), em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.” Esta norma foi replicada no novo CPC, sob o art. 707º. [...]

No caso em apreço, podemos verificar, por um lado, que parte dos créditos cuja satisfação é pretendida por via desta execução, eram anteriores à data da constituição da hipoteca; e, por outro lado, que, estando em causa, quanto aos créditos ulteriores à data dessa escritura, aparentes negócios de fornecimento de automóveis, os documentos complementares hão-de demonstrar a realização de prestações, pelas exequentes, em cumprimento do negócio declarado pelas partes.

Em relação ao valor dos créditos anteriores, a escritura de constituição de hipoteca não pode servir de título executivo, mesmo complementada com os correspondentes documentos de suporte.

Com efeito, em relação a créditos anteriores à data da sua celebração, a escritura de constituição de hipoteca só poderia constituir título executivo desde que, simultaneamente, constituísse um documento recognitivo das dívidas. [...]

No caso sub judice, a escritura dada à execução não compreende o reconhecimento de qualquer obrigação, que do seu próprio teor, se possa extrair. [...]

Ao que acresce que os correspondentes documentos de suporte não constituem, nem títulos de crédito, nem documentos de confissão de dívida que pudessem constituir títulos executivos para cobrança dos valores a que se referem.

Consequentemente, a escritura em questão, mesmo complementada por tais documentos, não pode constituir título executivo para pagamento desses créditos anteriores à data da sua elaboração."


[MTS]

Bibliografia (654)



-- Oliveira Magalhães, G., A tutela (jurisdicional) do direito a alimentos dos filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional, JULGAR Online Março 2018

 

Bibliografia (653)

 
-- Kropholler / von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht / EuGVO, Lugano-Übereinkommen, EuVTVO, EuMVVO, EuGFVO, 10.ª ed. (R&W: Frankfurt am Main 2018)
 
-- Paulus, C. G., EuInsVO - Europäische Insolvenzverordnung / Kommentar, 5.ª ed. (R&W: Frankfurt am Main 2017)
 
-- Schmitt-Kästner, A., Bürgerlich-rechtliche Generalklauseln als Schranken der Rechtsausübung in der Zwangsvollstreckung (Duncker & Humblot: Berlin 2018)
 
-- Uhlenbruck, Insolvenzordnung: InsO / Kommentar, 15.ª ed. (Vahlen: München 2018)
 

29/03/2018

Jurisprudência (822)


Embargos de terceiro; embargos preventivos;
momento da dedução


1. O sumário de RL 6/12/2017 (23387-10.2T2SNT-A.L1-6) é o seguinte:

– O prazo definido na 1.ª parte do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Civil não é aplicável aos embargos de terceiro com função preventiva.
 
– É assim porquanto para tal conclusão apontam com nitidez a própria natureza da intervenção processual e o conteúdo da circunstância despoletadora da reacção.
 
– Nos embargos de terceiro de vocação preventiva não há prazo, mas limites processuais, a saber: a) dedução após ordem judicial de realização da diligência, b) apresentação antes de efectuada a mesma.
 
– É aplicável aos embargos preventivos a limitação emergente da parte final do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Civil que proscreve a dedução dos embargos de terceiro de finalidade repressiva depois de os bens visados terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.
 
 2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A grande questão que se põe, neste processo, a este nível, é a de saber se é aplicável aos embargos preventivos a limitação emergente da parte final do n.º 2 do art. 344.º do Código de Processo Civil que proscreve a dedução dos embargos de terceiro de finalidade repressiva depois de os bens visados terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.

Quanto à jurisprudência firmada sobre a matéria, é segura a resposta afirmativa. [...]

Pareceria tentadora a tese sufragada no recurso, em situações marcadas por penhoras e vendas por demais formais, em que, ao menos de jure condendo, se poderia desejar que se pudesse lançar mão da reacção em apreço quando houvesse confronto de cidadãos não necessariamente letrados e instruídos com os primeiros actos materiais de desapossamento. Porém, sempre terá que se afirmar que, no que tange à penhora e venda de imóveis, realidade a que se reportam os presentes autos, são relevantes e dotados de suficiente materialidade os actos de contacto com o espaço físico visado – cf. n.º 3 do art. 755.º, al. b) do n.º 1 do art. 817.º, n.º 1 do art. 800.º, n.º 2 do art. 836.º, n.º 2 do art. 837.º, todos do Código de Processo Civil. Tais actos possuem suficientes condições de serem apreendidos pelos respectivos ocupantes, o que afasta a sensação de menor justiça ou, ao menos, insuficiência da solução normativa lida como vedando os embargos após venda ou adjudicação. Neste quadro protector, o cidadão prejudicado pelo acto judicial sempre poderá invocar nulidade se for preterido qualquer desses gestos processuais decisivos.

Na presente situação, não se vislumbra a arguição de qualquer invalidade pela Embargante, apesar de ter invocado que tudo correu à sua revelia. Para essa arguição, aliás, a via devida não era a da dedução de embargos, como a Recorrente deverá saber por se encontrar patrocinada por profissional do foro que sempre poderia corporizar a devida tutela dos seus direitos a esse nível. 
 
À míngua de particularidades dos embargos preventivos que justifiquem uma derrogação da constrição normativa, impõe-se concluir que também estes embargos de terceiro não podem ser deduzidos após os bens em apreço terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.

In casu, quando o requerimento inicial do processo de embargos de terceiro foi apresentado à Primeira Instância, o bem referido nesse requerimento já tinha sido vendido. Por tal razão, o Tribunal «a quo» não errou ao indeferir liminarmente os embargos."
 
[MTS]
 


28/03/2018

Bibliografia (Índices de revistas) (83)


Julgar

-- Julgar 34 (2018)

Jurisprudência (821)


Matéria de facto; factos conclusivos;
cláusula contratual geral; nulidade


1. O sumário de STJ 19/10/2017 (1077/14.7TVLSB.L1.S1) é o seguinte: 

I. A natureza factual ou meramente jurídica (conclusiva ou valorativa) de determinado enunciado linguístico não deve ser aferida numa simples base dogmática ou categorial, mas em função das estratégias comunicacionais reveladas pelo contexto alegatório ou probatório em que esse enunciado é produzido, discutidos e ajuizado.

II. Perante a alegação do autor, impugnada pelo réu, de que a expressão “conta do Cliente” inserida numa cláusula contratual geral não especifica a conta bancária do aderente onde terá lugar o débito - permitindo assim que o predisponente debite e proceda a compensação em contas coletivas de que aquele aderente seja contitular -, tendo as instâncias dado como provada tal alegação, este juízo probatório reveste natureza factual, devendo ser acatado pelo tribunal de revista nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC.

III. São nulas as cláusulas contratuais gerais que autorizem o predisponente a compensar o seu crédito sobre o saldo de conta coletiva solidária de que o aderente seja ou venha a ser contitular, por violação do princípio da boa-fé objetiva, em relação aos demais contitulares não aderentes, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º da LCCG, conforme a jurisprudência uniformizada pelo AUJ do STJ n.º 2/2016, de 13/11/2015, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 07/ 01/2016,

IV. Uma vez adotada aquela jurisprudência, com a função uniformizadora que lhe é atribuída, em termos de acatamento pelos tribunais judiciais, deve ela ser seguida “enquanto se mantiverem as circunstâncias em que se baseou”.

V. Considerando que o caso em apreço se inscreve no âmbito da factualidade e do quadro normativo tido em conta no indicado AUJ, não se mostra oportuno nem curial, sem mais, questionar novamente o ali fixado.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 

"A cláusula 5.ª, n.º 7, das “Condições Especiais da Super Conta Ordenado” tem o seguinte teor:

O produto das mobilizações de aplicações de capital, que hajam sido ordenadas pelo Cliente, destinar-se-ão prioritariamente à liquidação dos montantes que excederem o novo limite de crédito, nos termos do número anterior ficando o Banco expressamente autorizado a proceder ao respetivo débito da conta do Cliente pelos montantes que forem necessários para o efeito.

Da cláusula 2.ª, n.º 7, das Condições Aplicáveis à Facilidade de Descoberto da Super Conta Ordenado” (DA) consta o seguinte:

O produto das mobilizações de aplicações de capital, que hajam sido ordenadas pelo Cliente, destinar-se-ão prioritariamente à liquidação dos montantes que excederem o novo limite de crédito, nos termos do número anterior ficando o Banco expressamente autorizado a proceder ao respetivo débito da conta do Cliente pelos montantes que forem necessários para o efeito. 


Ficou também provado que “estas duas cláusulas não especificam a conta bancária onde terá lugar o débito” – ponto 1.19 da factualidade provada.

Perante tal factualidade, à luz do doutrinado no mencionado AUJ do STJ n.º 2/2016, a 1.ª instância concluiu que aquelas cláusulas eram contrárias ao princípio da boa-fé objetiva, inspirada no princípio da confiança, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 15.º da LCCG.

Por sua vez, o Banco R., no recurso de apelação por si interposto, sem deduzir impugnação da decisão de facto, limitou-se a sustentar, no que aqui releva, o entendimento de que a locução “conta do Cliente” ali empregue devia ser interpretada, à luz do respetivo contexto contratual e do espírito que lhe está subjacente, no sentido de se referir à conta do Cliente que é objeto das “CEs” e não as outras contas singulares ou coletivas de que o mesmo seja titular.

Porém, no acórdão recorrido, como observa o Recorrente, o Tribunal da Relação não empreendeu qualquer argumentação específica sobre esse ponto, apenas concluindo pela confirmação do julgado em 1.ª instância nessa parte, face ao que o mesmo Recorrente vem reiterar a sua posição.

Vejamos.

A interpretação a dar à indicada expressão “conta do Cliente”, inserta nas cláusulas gerais em apreço convoca, desde logo, a questão de saber se estamos perante uma questão de facto ou uma questão meramente jurídica, o que nem sempre, no terreno prático, se torna destrinça fácil de fazer.

Importa, no entanto, considerar que a natureza factual ou meramente jurídica (conclusiva ou valorativa) de determinados enunciados linguísticos não deve ser aferida numa base dogmática ou categorial, mas em função das estratégias comunicacionais reveladas pelo contexto alegatório ou probatório em que são produzidos, discutidos e ajuizados.

No caso presente, o A. alegou, sob o artigo 52.º da petição inicial que as duas cláusulas em foco “autorizam a R. a proceder à compensação de quantias não pagas através do débito em qualquer conta do titular do cartão, já que não especificam a conta bancária onde terá lugar o débito[...]. E no artigo 53.º do mesmo articulado alegou que “deste modo, é permitido que a Ré também debite e proceda a essa compensação em contas que o aderente não é o único titular, como contas conjuntas e solidárias uma vez que não especifica qual a conta através da qual vai operar a compensação.”

Por seu turno, o Banco R. impugnou essa matéria sob os artigos 118.º a 128.º da contestação, dizendo, além do mais, que a possibilidade alegada no artigo 52.º da petição inicial é incompreensível, uma vez que “a utilização do crédito concedido ao cliente aderente a este regime, para movimentar “a descoberto” a sua conta bancária que se aplique o regime especial da “Conta Ordenado” não se faz apenas mediante a utilização de cartões, podendo também fazer-se mediante o saque de cheques ou a realização de transferências e ordens de pagamento (artigos 118.º e 119.º da contestação).

Mas da impugnação aduzida naqueles artigos e subsequentes, o Banco R. não assumiu uma posição pelo menos clara sobre o entendimento que agora faz da locução “conta do Cliente”, deixando mesmo perpassar a ideia de que a compensação se podia operar sobre outras contas, nomeadamente coletivas, do cliente.

Seja como for, o certo é que essa matéria foi submetida a instrução, de que resultou dar-se como provado, na alínea S) da sentença, vertida no ponto 1.19 da factualidade acima consignada, que “estas duas cláusulas não especificam a conta bancária onde terá lugar o débito”, não tendo o Recorrente impugnado, em sede de apelação, aquele juízo probatório.

Em tais circunstâncias, é lícito entender que a afirmação do A. de que “as duas cláusulas em apreço não especificam a conta através da qual se vai operar a compensação” se reporta ao sentido material da expressão “conta do Cliente” ali inserta. O mesmo é dizer que, segundo tal alegação, aquela expressão não tem o sentido real da dita Conta Ordenado, podendo compreender quaisquer outras contas mormente coletivas do aderente e de que sejam também contitulares não aderentes.

Neste conspecto, apurar e fixar o sentido real dessa expressão constitui decisão de facto que, como tal, foi ajuizada pelas instância e não impugnada pelo Recorrente e que, a este tribunal de revista, compete acatar nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Nessa linha de entendimento, tal fixação não viola o preceituado nos artigos 10.º e 11.º, n.º 1, da LCCG, como sustenta o Recorrente.

Diversamente seria se fosse dado apenas como provado o teor literal das referidas cláusulas, caso em que, nessa base, se poderia discutir o seu sentido e alcance normativo, à luz do contexto do respetivo clausulado contratual.

Nesta conformidade, tem-se por adquirido que a expressão “conta do Cliente” inserida nas referidas cláusulas 5.ª, n.º 7, das “Condições Especiais da Super Conta Ordenado” (CEs) e 2.ª, n.º 7, das Condições Aplicáveis à Facilidade de Descoberto da Super Conta Ordenado” (DA) não especifica as contas sobre as quais o Banco Recorrente pode operar a compensação, donde se infere que o poderia ser sobre outras contas, mesmo coletivas do aderente.

Assim sendo, à luz da jurisprudência fixada pelo AUJ do STJ n.º 2/2016 não resta senão concluir que tais cláusulas se mostram contrárias ao princípio da boa-fé objetiva nos termos e para os efeitos do artigo 15.º da LCCG, mas só na medida em que permite operar a compensação em contas coletivas do aderente de que sejam contitulares não aderentes.

Termos em que procede parcialmente a revista, nesta parte, confinando-se a declaração da nulidades das sobreditas cláusulas ao segmento em que podem alcançar as contas coletivas do aderente de que sejam também contitulares não aderentes, devendo, por isso, ser objeto de reformulação explícita no sentido de não incluir tal segmento."
 

3. [Comentário] O acórdão debate-se com o problema dos chamados "factos conclusivos" Mesmo que se entenda que a expressão "conta do Cliente" pode ser integrada na categoria dos referidos "factos conclusivos", trata-se, na verdade, de um falso problema, como houve a oportunidade de referir recentemente em Jurisprudência (784). 

Ao que então se referiu pode acrescentar-se um outro aspecto. Como se sabe, as presunções legais podem ser de facto ou de direito: estas últimas são aquelas que permitem estabelecer a existência ou inexistência de um direito, como é o caso, por exemplo, da presunção de que o possuidor é titular de um direito sobre a coisa (art. 1268.º, n.º 1, CC). Ora, nunca se defendeu que as presunções de direito não integram a matéria da prova pela circunstância de das mesmas se inferir um direito, ou seja, um facto juridicamente qualificado e, portanto, um facto conclusivo. Isto significa que a prova não é incompatível com factos juridicamente qualificados.

MTS

27/03/2018

Jurisprudência (820)


Revista excepcional;
admissibilidade


1. O sumário de STJ 17/10/2017 (1204/12.9TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

I - Na medida em que a decisão da Relação sobre o (não) reconhecimento à autora do direito à pretendida indemnização assentou na factualidade resultante da transposição dos factos tidos por provados em duas anteriores acções, não pode ter-se por prejudicado o conhecimento explícito da questão, suscitada pela apelante, da violação dos princípios que regulam a prova, concretizada nessa transposição, porque, sem que tenha havido, em qualquer das instâncias, julgamento sobre a matéria de facto, não poderia uma putativa decisão implícita ser encarada como tendo sido fundamentada na eficácia extraprocessual das provas produzidas nos anteriores processos, ao abrigo do princípio consagrado no art. 421.º, n.º 1, do CPC.
 
II - E também não é concebível uma decisão, também meramente implícita, fundamentada na autoridade do caso julgado, porque a mesma dependeria da, necessariamente explícita, análise crítica sobre cada um de tais fundamentos da decisão, de que emergisse a justificação da transposição dos que fossem reputados de antecedentes lógicos, indispensáveis à emissão da parte dispositiva dos anteriores julgados.
 

2. O acórdão contém o seguinte voto de vencido:

"Os autos foram distribuídos/remetidos ao Colectivo/Formação a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, na sequência do despacho do M.º Desembargador relator na Apelação (fls. 812).

Este Magistrado reafirmou a competência do STJ (… última palavra…” – fls. 816) ao indeferir uma arguição de nulidades.

O Colégio do n.º 3 do artigo 672.º, ao qual compete tão somente, admitir ou não a revista excepcional, se colocado perante uma situação de dupla conformidade – pressuposto da sua competência – se verificar qualquer dos pressupostos elencados no n.º 1 daquele preceito.

Aqui, e em sede do seu julgamento (fls. 836-838) concluiu: “não admitir a revista excepcional; determinar a distribuição dos autos como revista normal”.

Cumprindo tal deliberação os autos foram distribuídos e julgados como revista-regra.

Tendo o respectivo Acórdão (fls. 848-864) julgado a revista esgotaram-se os poderes jurisdicionais deste Colectivo, nos termos, e salvo as excepções, do artigo 613.º do Código de Processo Civil.

Daí que, não tendo sido arguidas nulidades nem pedida a rectificação de erros materiais ou a reforma da deliberação, a revista ficasse definitivamente julgada.

E o aresto final só poderia ser posto em causa naqueles termos, ou pela via dos recursos dos artigos 688.º ss, 696.º ss CPC ou para o Tribunal Constitucional, se verificados os respectivos requisitos.

O que não se pode é fazer voltar o processo ao Colectivo/Formação para determinar a prolação de novo Acórdão, para “redistribuição do recurso como revista excepcional”, nuclearmente porque:

— A intervenção do conclave do n.º 3 do artigo 672.º só é possível no início do processo e a respectiva deliberação equivale a despacho liminar de admissão do recurso, o qual só não seria admissível pelo escolho do n.º 3 do artigo 671.º CPC;

— Se aquele Colectivo já declarou “não admitir a revista excepcional” e determinou “a distribuição dos autos como revista normal”, esgotou o seu poder jurisdicional e fixou-se esse juízo como caso julgado formal, nos termos do n.º 1 do artigo 620.º CPC;

— Mostrando-se julgada a revista-regra não podem vir invocar-se requisitos da revista excepcional, já que esta só releva se aquela não é, desde logo, admissível.

— A assim não ser, estaríamos perante uma “never ending story” com sucessivos Acórdãos voltando os autos à Formação, após a prolação de cada Acórdão a julgar a revista, com o fundamento na não apreciação por aquele órgão de um dos requisitos.

— Ademais, no seu primeiro Acórdão (fls. 836-838) a Formação declinou a sua competência para julgar (“… De qualquer modo, por não se por a questão da revista excepcional, é uma questão que está fora da competência da Formação. Assim, a apreciação da admissibilidade do recurso pertence apenas ao Exm.º Relator.”)

— Ora se entendia não ser competente, como é possível vir depois, nos mesmos autos e com os mesmos elementos assumir o julgamento?!

— Não se olvide – o que parece ter aqui acontecido – a precedência do cumprimento de decisões contraditórias, constante do artigo 625.º CPC.

— Uma vez admitida a revista-regra, não há que referir, ou considerar a revista excepcional, pois o que com esta se pretende é que o STJ julgue o recurso nos termos, e limites, das conclusões da alegação.

Em consequência, fico vencido, devendo subsistir, tal e qual, o Acórdão deste Colectivo."

3. [Comentário] Segundo se depreende do voto de vencido, a formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, CPC -- ou seja, a formação que julga a admissibilidade da revista excepcional -- apreciou duas vezes a admissibilidade desta revista num mesmo recurso interposto para o STJ. Isto porque, como também se depreende do voto de vencido, a referida formação, numa primeira decisão, considerou que a revista era admissível nos termos gerais. Sucedeu, no entanto, que esta revista veio a ser julgada improcedente. Depois disto, foi a referida formação novamente chamada a apreciar se a revista excepcional era admissível por um fundamento que anteriormente não tinha analisado.

O voto de vencido considera que, depois de a formação ter admitido a "revista normal", se esgotou o poder jurisdicional da referida formação para apreciar a admissibilidade da revista excepcional. Há que reconhecer que com total razão.

Como se alude nesse voto, a revista excepcional é admissível quando a "revista normal" seja inadmissível, não quando (nem depois de) a "revista normal" ter sido julgada admissível, mas improcedente. Neste caso, o recorrente já beneficiou de um triplo grau de jurisdição, não se justificando que possa ainda voltar a beneficiar de uma nova apreciação do seu recurso pelo STJ.

Acresce ainda que, se é certo que a revista excepcional tem fundamentos específicos (cf. art. 671.º, n.º 1, CPC), também é verdade que esses fundamentos se restringem à admissibilidade dessa revista e nada têm a ver nem com o objecto do recurso, nem com a análise da fundamentação do mesmo. Seja na "revista normal", seja na revista excepcional, o objecto do recurso é o mesmo, dado que essas revistas são duas vias para a apreciação do mesmo recurso, não dois recursos com objectos distintos. Sendo assim, não se vê como é que o STJ, depois de ter apreciado o objecto do recurso na "revista normal", pode voltar a apreciar esse mesmo objecto na revista excepcional.

Dito isto, pode mesmo ponderar-se a hipótese (também aludida no voto de vencido e a ser confirmada em função do que foi realmente apreciado nos dois acórdãos proferidos pelo STJ no mesmo recurso de revista) de ao presente acórdão se dever aplicar o disposto no art. 625.º CPC quanto a casos julgados contraditórios sobre o mesmo objecto.
 
MTS

26/03/2018

Jurisprudência (819)


Recurso de revisão;
documento superveniente

1. O sumário de STJ 19/10/2017 (181/09.8TBAVV-A.G1.S1) é o seguinte: 

I - Por princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, não se permita nova discussão do litígio; situações existem, contudo, em que a necessidade de segurança ou de certeza e as exigências da justiça conflituam de tal forma que o princípio da intangibilidade do caso julgado tem de ceder.

II - O meio processual adequado para esse efeito é o recurso extraordinário de revisão, o qual se comporta estruturalmente como uma acção destinada a fazer ressurgir a instância que o caso julgado extinguiu (fase rescindente) e a reabrir a instância anterior (fase rescisória).

III - Tendo a sentença proferida em 1.ª instância sido impugnada e tendo a Relação proferido acórdão confirmatório da mesma, apreciando definitivamente a questão de facto e de direito controvertida, é à Relação que cabe conhecer do recurso extraordinário de revisão por ter proferido a decisão a rever (art. 697.º, n.º 1, do CPC).

IV - São taxativas as situações previstas no art. 696.º do CPC que podem fundamentar o recurso de revisão.

V - O documento a que alude a al. c) do art. 696.º do CPC, para fundamentar a revisão, tem que revestir dois requisitos cumulativos: (i) a novidade (que significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde dele socorrer-se); e (ii) a suficiência (que implica que o documento constitua um meio de prova susceptível de, por si só, demonstrar ou infirmar facto ou factos relevantes por forma a conduzir a decisão mais favorável ao recorrente).

VI - Uma “Declaração” emitida por uma Junta de Freguesia, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com selo branco, da qual apenas resulta que a passagem nela referida “não é de trânsito público, mas apenas privado” – não obstante ser um documento autêntico com o alcance probatório que deriva do art. 371.º do CC – não é, por si só, um documento idóneo para que se possa ter como provada a facticidade susceptível de demonstrar a existência do
animus possessório, cuja falta conduziu à improcedência da acção na qual foi proferida a decisão a rever e na qual os recorrentes pediam que fosse declarada que uma parcela de terreno lhes pertencia e fazia parte integrante de um prédio de que são proprietários.

VII - Não cabe no âmbito da decisão proferida na fase rescindente do recurso sindicar a decisão revidenda, nomeadamente o bom ou mau uso de presunção legal, mas apenas averiguar se o documento apresentado, além da novidade, é suficiente para conduzir à alteração da decisão objecto do recurso de revisão em sentido favorável aos recorrentes. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:"

[...] Começaremos por salientar que correu termos uma acção declarativa movida pelos ora recorrentes contra os aqui recorridos, na qual os primeiros pediam que fosse declarado que a parcela de terreno que identificaram lhes pertencia e fazia parte integrante do prédio, também por si identificado, de que são proprietários, condenando-se os segundos a demolirem todas as obras que construíram em tal parcela de terreno.

A sentença proferida pela 1ª instância julgou improcedente essa acção, tendo sido confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, transitado em julgado.

Nessa sequência vieram os ali autores interpor recurso extraordinário de revisão ao abrigo do disposto no artigo 696º alínea c) do Código de Processo Civil, com fundamento em que dispunham de um documento novo susceptível de, por si só, modificar a decisão revidenda em sentido mais favorável.

Para tanto, juntaram uma “Declaração” emitida pela Junta de Freguesia de …, datada de 14 de Abril de 2016, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com o selo branco em uso nessa Junta, da qual constava o seguinte:

“A Junta de Freguesia de …, concelho de ..., declara que na localidade chamada vale do ninho desta freguesia de …, existe uma servidão de passagem de águas de regadio e seus acompanhantes, herdeiros da mesma água. Contudo é de salientar que essa passagem não é de trânsito público, mas apenas privado”. 


Não obstante tratar-se de documento autêntico, com o alcance probatório que deriva do disposto no 371º do Código Civil, acolheu-se o decidido no acórdão recorrido, na consideração de que do documento em causa – declaração – apenas resulta de útil que a passagem nele referida “não é de trânsito público, mas apenas privado”, não sendo, só por si, idóneo para abalar o decidido no acórdão objecto da pretensão de revisão, que, confirmando a sentença da 1ª instância proferida na acção declarativa movida pelos recorrentes contra os recorridos, julgou improcedente o recurso de apelação nela interposto.

Acresce que não cabe no âmbito da decisão proferida na fase rescindente sindicar a decisão revidenda, nomeadamente, o bom ou mau uso de presunção legal, mas apenas averiguar se o documento apresentado, além da novidade, é suficiente para conduzir à alteração da decisão (acórdão) objecto do recurso extraordinário de revisão em sentido favorável aos recorrentes, sendo claro, pelas razões expendidas na decisão de que se reclama, que não é."


3. [Comentário] Apenas uma observação a latere. Apesar de ser comum utilizar-se uma noção ampla de documento autêntico para englobar o que mais correctamente se poderia designar como documento oficial (como é o caso, por exemplo, de uma certidão emitida por um entidade pública), é muito discutível que a "Declaração" de uma Junta de Freguesia que qualifica como sendo de trânsito privado uma servidão de passagem de águas possa ser integrada na noção de documento autêntico.

Recorde-se que, como decorre do disposto nos art. 371.º, n.º 1, e 372.º, n.º 2, CC, um documento autêntico é aquele em que uma autoridade ou oficial público atesta um facto que percepciona. Se já é duvidoso que este requisito esteja verificado quanto a uma vulgar certidão de nascimento ou de óbito, é ainda mais duvidoso que esse requisito se encontre preenchido quando uma Junta de Freguesia procede a uma qualificação jurídica de uma servidão de passagem de águas.

MTS

25/03/2018

Bibliografia (652)


-- Hess / Kramer (Eds.), From Common Rules to Best Practices in European Civil Procedure (Nomos/Hart Publishing 2018) 

-- Marinelli / Bajons / Böhm, Die Aktualität der Prozess- und Sozialreform Franz Kleins (Verlag Österreich: Wien 2015)



23/03/2018

Informação (219)


Estatísticas judiciárias 2017 (TJ)


Para consultar as estatísticas do TJ relativas a 2017 clicar em CI 36/2018, de 23/3.



Paper (347)


-- Avraham, Ronen / Sebok, Anthony J., An Empirical Investigation of Third Party Consumer Litigation Funding (SSRN 03.2018)

 

Bibliografia (Índices de revistas) (82)


RDP


 

Bibliografia (651)

 
-- Christoph Althammer / Herbert Roth (Eds.), Instrumentalisierung von Zivilprozessen (Mohr: Tübingen 2018)
 
 

Jurisprudência (818)


Testemunha; contradita;
prova documental; junção de documentos


1. O sumário de RL 6/12/2017 (3410-12.7TCLRS-A.L1-6) é o seguinte:

– O incidente da contradita visa questionar a credibilidade da própria testemunha, pondo em causa a sua isenção e a fé que possa merecer, ou seja a fonte do seu conhecimento e não directamente a veracidade do seu depoimento.
 
– A pretensão do A. de junção de documentos, finda uma sessão de audiência de julgamento, alegando, como fundamento dessa junção, a “contra prova do invocado” na sequência do depoimento de testemunha que depusera nessa sessão, não se integra no incidente de contradita, ainda que este fosse temporalmente admissível. 
 
– A junção de documentos é admissível nos prazos previstos no artº 423 do C.P.C., que permite a junção em três momentos distintos: a) com o articulado respectivo, sem cominação de qualquer sanção; b) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas com cominação de multa, excepto se a parte alegar e provar que os não pode oferecer antes; c) até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas apenas daqueles documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.
 
– Cabe à parte que pretende a junção de documento alegar e demonstrar que a sua apresentação não foi possível até àquele momento, ou que a sua apresentação só se tornou possível em virtude de ocorrência posterior.
 
– Os meios de prova, qualquer que seja a sua natureza, destinam-se à instrução da causa, a qual “tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.” 
 
– O depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do nº3 do artº 423 do C.P.C.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Invoca o recorrente como primeiro fundamento do recurso que, visando a junção destes documentos a contradita do depoimento de uma testemunha, no âmbito da audiência de discussão e julgamento [...] a tempestividade da sua junção, uma vez que os documentos no incidente de contradita podem ser juntos até à decisão sobre os factos da causa.

Sobre o incidente da contradita dispõe o artº 521 do C.P.C., o qual dispõe que “A parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer”

A propósito deste incidente, em comentário ao então artº 640 do C.P.C., referia Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Pág. 459) que no incidente de contradita, “faz-se um ataque, não ao depoimento propriamente dito, mas à pessoa do depoente; não se alega que o depoimento é falso, que a testemunha mentiu; alega-se que, por tais e tais circunstâncias, exteriores ao depoimento, a testemunha não merece crédito. Só quando a contradita se dirige contra a razão de ciência invocada pela testemunha, é que as declarações desta são postas em causa; mas ainda aqui não se atacam directamente os factos narrados pelo depoente, só se ataca a fonte de conhecimento que ele aponta.”

Ou seja, visa este incidente questionar a credibilidade da própria testemunha, pondo em causa a sua isenção e não directamente a veracidade do seu depoimento (embora indirectamente, pois que procedendo este incidente, esta possa ficar inquinada pela falta de credibilidade ou isenção da testemunha em causa).

Como refere Luis Filipe Pires de Sousa in a “Prova Testemunhal”, a págs. 269, “pode invocar-se como fundamento da contradita qualquer circunstancionalismo que afecte a razão de ciência invocada pela testemunha (…) ou afecte a credibilidade que a testemunha mereça. Entre os factores capazes de afectarem a fé ou a credibilidade da testemunha encontram-se: o estado; a vida e costumes da pessoa; o interesse no pleito; o parentesco ou relacionamento com as partes.”

Sobre o momento temporal para a sua dedução, estipula o artº 522 nº 1, do C.P.C. que este incidente deve ser deduzido quando o depoimento termina.

Ora, tendo deposto a testemunha P... em audiência de julgamento [...], do teor da respectiva acta, resulta que pelo A. não foi deduzida a contradita desta testemunha. Não tendo deduzido a contradita da referida testemunha no momento próprio, não se percebe a pretensão de junção de documentação ao abrigo de um inexistente incidente.

Por outro lado, o A., no seu requerimento de 06/04/2017, requereu a junção destes documentos alegando fazê-lo “na sequência do depoimento de uma testemunha”, mormente a testemunha P..., uma vez que esta teria afirmado que “quem liquidou a totalidade dos valores devidos pela compra e venda, a que se reporta o documento n.º4 em anexo à Réplica, foram os ora RR´s (e nunca o aqui A.). Nesse seguimento, afirmou também que o documento n.º 3 em anexo à Réplica não corresponde a nenhum pagamento efetuado pelo A., e muito menos no âmbito da referida compra e venda.”, mais requerendo a junção destes documentos para “contra prova do invocado e, simultaneamente, para prova dos temas 2º e 8º”

É esta pretensão bem diversa da contradita.

Não pretende o A. com a junção destes documentos, alegar que por razões não mencionadas pela testemunha (parentesco, amizade, inimizade, interesse na causa ou outro), esta não é uma testemunha isenta, nem credível, não devendo o seu depoimento merecer qualquer fé ao tribunal.

Pretendeu antes o A. juntar aos autos documentos que, na sua óptica contrariassem o teor do depoimento desta testemunha, o que não é o mesmo que a contradita da testemunha, não sendo pois de manter o despacho proferido pela Mmª Juiza “a quo” quando refere que “a contraprova de um depoimento testemunhal alcança-se processualmente por um único meio, que é a contradita.” [...]

Assim a pretensão do A. de junção de documentos, alegando, como fundamento dessa junção, “contra prova [sic] do invocado” na sequência do depoimento de testemunha que depusera em anterior sessão de julgamento, não se integra no incidente de contradita, ainda que este fosse temporalmente admissível.

Assim sendo, tais documentos nunca poderiam ser admitidos no âmbito do incidente de contradita, independentemente da sua tempestividade, só podendo ser admitidos, nos termos previstos no artº 423 do C.P.C.

Nestes termos e após considerar intempestivos porque não deduzidos nos termos e prazos da contradita, considerou ainda a Sr. Juiza que “No tocante ao outro segmento vertido no ponto C) daquele requerimento, qual seja o da junção de um conjunto de documentos para prova dos temas 2.º e 8.º da base instrutória, igualmente terão os mesmos que ser indeferidos face ao que prescreve o artigo 423.º CPC, maxime nos seus números 2 e 3.”

Estabelece este preceito legal um regime mais restritivo, no que se reporta ao momento da apresentação da prova por documentos, do que o definido no anterior Código de Processo Civil de 1961, mormente no seu artº 523, no qual se permitia a junção de documentos até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, sujeito a multa, se a parte não demonstrasse que os não tinha podido oferecer em momento anterior.

Como decorre dos Considerandos da Proposta de Lei 113/XII, “Em consonância com o princípio da inadiabilidade da audiência final, visando disciplinar a produção de prova documental, é estabelecido que os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, assim se assegurando o oportuno contraditório e obviando a intuitos exclusivamente dilatórios.”, sabido que a junção de documentos em audiência de julgamento e a necessidade de assegurar o exercício do contraditório, conduz muitas vezes ao seu adiamento e introduz um factor de morosidade e complexidade nos autos, sendo por vezes estes documentos juntos já após a produção de prova testemunhal, com a necessidade da sua eventual reinquirição.

Pretendeu-se assim introduzir, “uma regra de estabilização dos meios de instrução a partir do vigésimo dia que antecede a data em que se realize a audiência final” - vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Os artigos da reforma, Vol. I, Almedina, 2013, pág. 340. (Vide ainda J. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, pág. 250 e Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, Ediforum, Lisboa, 2013, pág. 158, este, salientando que os actuais n.ºs 2 e 3 correspondem, com um grau de exigência bastante superior, ao n.º 2 do art.º 523º, do CPC de 1961.)

Assim, no âmbito do artº 423 do N.C.P.C. introduzido pela lei 41/2013, consignam-se três momentos possíveis para a junção de documentos pela parte, sendo o primeiro a regra e os seguintes excepções:
 
a)- com o articulado respectivo, sem cominação de qualquer sanção;
 
b)- até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas com cominação de multa, excepto se a parte alegar e provar que os não pode oferecer antes;
 
c)- até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas apenas daqueles documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior.

Ou seja, quando a parte não apresenta o documento com o respectivo articulado, se a apresentação for feita dentro do limite temporal traçado no artigo 423.º, n.º 2, primeira parte do Código de Processo Civil e a parte nada disser quanto à razão por que não juntou os documentos com o articulado em que alegou os factos respectivos, nem provar que não os pôde oferecer com tal articulado, sujeita-se ao pagamento da multa ali prevista, mas os documentos são admitidos (salvo caso de impertinência para a instrução da causa).

No nº 3 deste preceito, estes documentos só são admitidos alegadas e demonstradas as circunstâncias excepcionais aí referidas.

Assim sendo, a junção de documentos após a fase prevista no nº1 e 2 do C.P.C., é admissível apenas quando a sua apresentação não tenha sido possível nos dois momentos anteriores, ou se tornem necessários apenas por virtude de ocorrência posterior.

Neste caso, a parte que pretende a junção de documentos fora dos casos previstos nos nºs 1 e 2 do C.P.C. deve alegar e demonstrar a impossibilidade da sua junção ou que a mesma só naquele momento se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. (neste sentido vide Acs. do T.R.C. de 24/03/2015, proc. nº 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1; Ac. R. Porto de 15/02/2016, Proc. nº 96/14.8TTVFR-A.P1 e Ac. do STJ de 23/06/2016, proferido no Proc. nº 359/07.9TBOPR.P1.S1).

Ora, no seu requerimento o A. não cumpriu este ónus que lhe era imposto, uma vez ultrapassados os prazos previstos nos nºs 1 e 2 do referido preceito legal. Alegou apenas que pretendia a junção destes documentos na sequência do depoimento da testemunha Paulo ... ... ..., para “contra prova [sic] do invocado e, simultaneamente, para prova dos temas 2º e 8º”. Não invocou, nem a contradita que agora apenas em sede de recurso invoca e que é inadmissível, nem que a oportunidade de junção destes documentos surgira apenas por via de ocorrência posterior, ou sequer que considerava como ocorrência posterior o depoimento da referida testemunha."
 
[MTS]
 
 

22/03/2018

Questões sobre custas processuais e taxa de justiça




[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Bibliografia (Índices de revistas) (81)


CDT


CP Rev.


-- CP Rev. 2017-2

-- CP Rev. 2017-3

KTS

 

 

Jurisprudência (817)

Contestação;
modo de apresentação


1. O sumário de RP 4/12/2017 (1618/16.5T8PVZ-A.P1) é o seguinte:

I - A apresentação em juízo da contestação através de correio electrónico pessoal do mandatário consubstancia a prática de um acto processual contrário à lei, pelo que é nulo.

II - A nulidade assim praticada é intrínseca e atípica, diferente da nulidade processual.

III - Inexiste denegação de justiça na recusa de uma peça processual apresentada através de forma diferente da legalmente prevista, sem invocação de justo impedimento, sem assinatura de mandatário e remetida de um e-mail não constante da base de dados da OA.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. A interpretação que o T[ribunal] a quo fez dos artºs 132º nº 1 e 144º nº 1 ambos do CPC e Portaria 280/2013 de 26/08, está ferida de inconstitucionalidade?
 
Sustenta o recorrente que, em face do regime decorrente dos art.ºs 132º nº 1 e 144.º nº 1, ambos do C.P.C. e Portaria n.º 280/2013 de 26 de Agosto, a apresentação da contestação através de correio eletrónico, apesar de não corresponder a uma forma de apresentação a juízo de um ato processual válido, constitui uma mera irregularidade”, sendo essa a solução que melhor se adequa às exigências constitucionais respeitantes à garantia do direito de acesso aos tribunais, plasmado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
 
Ora bem, de acordo com o artº 132º nº 1 do CPC, a tramitação dos processos é efectuada electronicamente de acordo com os termos definidos na Portaria nº 280/2013 de 26/08.
 
O artº 144º nº 1 do mesmo diploma legal, como já supra referimos, preceitua que a apresentação a juízo dos actos processuais por parte dos mandatários é feita, obrigatoriamente através do sistema Citius, por transmissão electrónica de dados definidos nos termos da citada Portaria. [...]
 
Ora, era sobre o réu que recaía o ónus de provar que as dificuldades que alega verificadas no sistema Citius não lhe eram imputáveis.
 
Porém, tal prova não foi sequer invocada e muito menos feita.
 
Havendo a obrigatoriedade por parte dos mandatários do envio de qualquer peça processual através do sistema Citius e não tendo a mesma sido feita, não tendo sido invocado o justo impedimento ou sequer sido tal peça assinada pelo mandatário ou sequer remetida de um e-mail que constasse da base de dados da O.A. como sendo de mandatário, não se percebe onde existe a denegação de justiça por o T. a quo ter considerado ser a contestação extemporânea.
 
Aliás, a denegação de justiça de que fala o artº 20º da CRP refere-se apenas à circunstância de o acesso ao direito não poder ser vedado em razão da insuficiência de meios económicos.
 
O que seguramente não é o caso, visto o réu estar patrocinado.
 
O que se verificou é que não foi invocado o justo impedimento e, portanto, a prática do acto – apresentação de contestação – via e-mail pessoal do mandatário não pode, em nosso entender, ser legalmente válida e não pode ser admitida, sob pena de se fazer “tábua rasa” de tudo aquilo que vem preceituado nas normas processuais que disciplinam o envio electrónico e os prazos para apresentação daquela.
 
De resto, o ilustre mandatário do réu bem sabia da obrigatoriedade do envio de tal peça processual pelo sistema Citius, tanto assim que no dia 10.02.2017 a enviou pelo sistema citius, mas já fora de prazo e não invocando e provando qualquer justo impedimento, este sim que a verificar-se, seria a garantia do invocado acesso à justiça - (neste sentido, veja-se o Ac. do TRC de 15/09/2015, Pº nº 270/12.1TBFIG-A.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
 
Não o tendo feito, só ao ilustre mandatário pode ser imputada a culpa.
 
Conclui-se, assim, que face ao princípio da confiança que impõe que haja uma conformação das decisões judiciais com os normativos processuais aplicáveis ao caso, não se vislumbra ter o réu sofrido qualquer limitação do seu direito de acesso à justiça como prevê o citado preceito constitucional."

[MTS]