"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/03/2018

Jurisprudência (803)

 
Excepção de litispendência; excepção de caso julgado;
requisitos

 
1. O sumário de RE 23/11/2017 (333/16.4 T8LAG.E1) é o seguinte:

Mais importante que a qualificação jurídica que à pretensão seja dada pelo autor, deve atender-se antes ao efeito prático que com a demanda pretende alcançar, que é afinal o que releva para determinar o conteúdo da decisão final e aferir das excepções de litispendência e de caso julgado.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"Relevando para a decisão os factos relatados em I., cumpre indagar da verificação dos requisitos do caso julgado, tal como os enuncia o art.º 581.º do CPC (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
 
Nos termos do preceito legal ora convocado “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”. O n.º 3 do mesmo artigo dispõe que “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”, estabelecendo o n.º 4 estabelece que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”. 
 
A excepção de caso julgado pressupõe portanto uma tríplice identidade: de partes, de causa de pedir e do pedido. 
 
Não estando em causa que os AA e a Ré desta acção são os mesmos que na acção precedente, detenhamo-nos nas causas de pedir e pedido formulados num e noutro processo.
 
Dispondo para os requisitos da petição inicial, o art.º 552.º impõe ao autor que “exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção” e “formule o pedido” (vide als. d) e e) do n.º 1 do preceito).
 
Na definição legal, pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a acção (vide n.º 3 do art.º 581.º). 

O pedido surge assim como pretensão material, “enquanto afirmação de um direito subjectivo ou de um interesse juridicamente relevante” e como pretensão processual “traduz-se na identificação do meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor” [Abrantes Geraldes, in “Temas da reforma do processo civil”, I vol, 2.ª ed. revista e ampliada, pág. 119 e, em sentido idêntico, aludindo a uma determinação material e uma determinação processual da pretensão, Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais”, 2.ª ed., pág. 56].

Numa outra formulação “o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção, com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no art.º. 664.º, 1.ª parte, do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório”. [ Do aresto da Rel. de Lisboa de 6/1/2010, proferido no âmbito do processo n.º 405/07.6 TVLSB.L1-7, sendo Relator o então Exmº Sr. Des. Tomé Gomes, hoje Exmº juiz C.º, disponível em www.dgsi.pt.]

Determinando portanto a formulação do pedido o desenrolar da instância e circunscrevendo o âmbito da decisão final [Na formulação do Prof. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, págs. 201 e seguintes, o pedido aparece “como o círculo dentro do qual o Tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir”] – em linha com a exigência, decorrente do princípio do dispositivo, de fazer recair sobre os interessados que recorrem a juízo o ónus de delimitação do objecto da lide – mais importante que a qualificação jurídica que à pretensão seja dada pelo autor, deve atender-se antes ao efeito prático que com a demanda pretende alcançar, que é afinal o que releva para determinar o conteúdo da decisão final e aferir das excepções de litispendência e caso julgado. 

Mas o autor que se dirija ao Tribunal para obter determinada providência há-de ainda expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida” (vide n.º 4 do art.º 581.º).

A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram (nomeadamente se abrange todos os necessárias à procedência da acção ou apenas, conforme defende o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal, justificando a distinção legal entre factos essenciais e factos complementares, os quais, podendo ser necessários à procedência da acção, não integram, ao contrário dos primeiros, a causa de pedir – vide Blog IPPC, entrada de 21 de Julho de 2014), cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo.

A lei – já citado n.º 4 do art.º 581.º – parece todavia apontar para as normas de direito material que estatuem o efeito pretendido, impondo à parte a alegação dos factos contidos na respectiva previsão. Conforme se explicita no muito recente aresto do STJ de 17/1/2017, proferido no processo 3844/15.5T8PRT.S1, recorrendo à lição do referido Professor “(…) Muito embora se entenda que a causa de pedir é representada por factos concretos, não se trata de factos “brutos”, independentes de qualquer previsão normativa. Na esclarecedora lição de Miguel Teixeira de Sousa, “os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica” acrescentando o mesmo Autor que “o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais”. Por outro lado, o conceito de causa de pedir não deve ser entendido de forma extensa já que uma visão mais restrita – “deflacionada” – é a que melhor se adequa tanto ao princípio dispositivo, que apesar de temperado ou mitigado continua a imperar no nosso sistema processual civil, como à opção do legislador pelo sistema da substanciação da causa de pedir. Os factos concretos que constituem a causa de pedir – e que nem sequer serão, porventura, para Miguel Teixeira de Sousa, todos os necessários para assegurar a procedência da acção – são pois “iluminados” e selecionados por uma certa previsão legal”. [...]

Isto dito, e voltando ao caso que nos ocupa, afigura-se clara a razão dos apelantes, uma vez que a presente acção não comunga com a anterior, nem da causa de pedir, nem dos pedidos, entendidos uma e outros nos termos acabados de expor. Com efeito, a primeira acção, conforme os apelantes bem fazem notar, é uma típica acção de restituição de posse, ao passo que a presente encontra o seu fundamento na violação de normativos que regulam as relações entre proprietários de prédios vizinhos (cf. os art.ºs 1360.º, n.º 1 e 1373.º, n.º 1), sendo distintos os efeitos jurídicos pretendidos numa e noutra. Aliás, nem sequer o pedido indemnizatório assenta nos factos anteriormente alegados, encontrando fundamento em diferentes actos ilícitos, projectando-se em distintos prejuízos. Deste modo, a genérica condenação da aqui ré, proferida na primeira acção, numa prestação de non facere – “abster-se da prática de actos que perturbem o uso e fruição do imóvel por banda dos AA” – terá que ser interpretado de acordo com a causa de pedir naquela acção, que individualizou a pretensão formulada, não se dirigindo tal comando à proibição de abrir janelas ou à ocupação de parede meeira, aspectos que ali nunca foram discutidos e aqui se encontram controvertidos."

[MTS]