"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/03/2018

Jurisprudência (807)


Providência cautelar; documento superveniente;
recurso extraordinário de revisão


1. O sumário de RE (decisão singular) 7/12/2017 (342/16.3T8ALM-B.E1) é o seguinte: 

Só o documento que, por si só, possa inequivocamente fazer a prova de facto inconciliável com a sentença a rever, pode servir de fundamento ao recurso de revisão, enquanto recurso extraordinário, dado que só em casos extremos, por imperativos de justiça, é possível sacrificar a intangibilidade do caso julgado.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerente, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das questões de saber, por um lado, se os documentos juntos aos autos pela aqui recorrente são susceptíveis de, por si só, rever a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar a que este processo se mostra apenso e, por outro lado, se o litígio em causa assenta sobre um acto simulado praticado entre os requeridos (…) e (…), devendo a decisão proferida no âmbito do referido procedimento cautelar ser revista em conformidade. [...] 

Como se constata do teor dos documentos juntos aos presentes autos trata-se de certidão relativa a uma conferência de interessados realizada, na qual a requerente e o seu ex-marido acordaram em pôr termo a processo de inventário, no qual para além do mais, consideraram que três imóveis constantes da relação de bens, aí devidamente identificados, eram adjudicadas à recorrente, bem como de certidões de registo a favor da recorrente da aquisição dos referidos três imóveis.

Ora, a decisão proferida nos autos de procedimento cautelar a que estes se mostram apensos reconheceu Silvestre Catroga como dono e legítimo proprietário dos três imóveis em questão, por via do instituto da usucapião, sendo certo que a tal não obstou o facto de estarem juntas a esses autos certidões de registo (não actualizadas), relativas à propriedade de tais imóveis (nas quais já constavam como proprietários a requerente e o ex-marido desta).

Isto porque, como é sabido, tais certidões de registo apenas fazem presumir que a recorrente é proprietária dos imóveis aqui em discussão (art. 7º do C.R.P.), sendo certo que tal presunção é ilidível, como, efectivamente, veio a ocorrer na decisão proferida na dita providência cautelar.

Assim sendo, os documentos juntos pela requerente neste recuso de revisão apenas fazem presumir que a mesma é proprietária dos três imóveis identificados nos autos, presunção essa que, face à restante prova carreada para a providência cautelar em questão, foi de todo afastada e, como tal, veio a julgar o aqui requerido, (…), como dono e legítimo possuidor dos três imóveis em causa, por os ter adquirido por usucapião.

Por isso, estamos com o Julgador “a quo” quando este, na sentença recorrida, afirmou, a dado passo, o seguinte:

- (…) A Mma. Juiz que proferiu a decisão revidenda deu como provados factos suficientes que preenchem os requisitos necessários à verificação de uma situação de aquisição originária da propriedade: a usucapião. A simples junção aos autos da certidão da acta de conferência de interessados realizada no âmbito do processo de inventário em que eram interessados a aqui Recorrente e o Requerido (…) e, bem assim, das certidões do registo predial de onde resulta que tais imóveis se encontram registados única e exclusivamente a favor da Recorrente (certidões estas que já tinham sido tidas em consideração anteriormente, pese embora desactualizadas, e tidas por irrelevantes) não são, só por si, susceptíveis de alterar a conclusão extraída pela Mma. Juiz, em face da factualidade que a mesma deu como provada. 

Com efeito, o documento que se junte, para alicerçar a revisão, deve ser apto, por si só, a modificar a decisão transitada em julgado; o mesmo é dizer que dele deve emergir uma força probatória qualificada, auto-suficiente e impassível de destruição, defendendo alguns inclusive que se está aqui no domínio da prova legal e vinculada – da prova plena – à qual é, em absoluto, alheio qualquer tipo de julgamento de facto produzido pelo julgador, à luz da sua liberdade de apreciação (…), ainda que o julgamento – quanto ao pertinente documento – se bem que com reflexo no facto, seja de direito (neste sentido: LUÍS FILIPE BRITES LAMEIRAS, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Outubro de 2009, p. 294 e 295). Excluem-se, com esta limitação, da supra transcrita previsão normativa os casos em que o documento apenas quando conjugado com outros meios de prova, produzidos ou a produzir, seja susceptível de modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, bem como aqueles em que o documento pode, eventualmente, alterar um dos fundamentos em que se baseou a decisão, mas mantém intacto um outro que também lhe serviu de fundamento. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/01/2017, com o n.º de processo 39/16.4YFLSB, disponível in www.dgsi.pt. 

Atendendo a que se trata de documentos já existentes à data da instauração do procedimento cautelar, os documentos não se mostram dotados de força probatória qualificada que, por si só, tenham a virtualidade de alterar a decisão revidenda em sentido mais favorável à ora Recorrente.

Em suma, entende-se que os documentos juntos pela Recorrente não são suficientes, só por si, para modificar a decisão proferida no âmbito dos autos de procedimento cautelar a que estes se mostram apensos.

Ora, a única questão que aqui se pretende apreciar e decidir é se os documentos ora juntos pela Recorrente são, por si só, suficientes para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, não sendo esta a sede própria para apreciação e discussão sobre a titularidade da propriedade dos imóveis supra referidos. 

Analisado o requerimento apresentado pela Recorrente, ressalta que a mesma pretende, na verdade, ver reconhecido o seu alegado direito de propriedade sobre os imóveis em questão.

Contudo, conforme já referido, este não é o meio adequado para o efeito, como bem sabe a Recorrente, que inclusivamente já instaurou a competente acção judicial para o efeito (processo n.º 98/17.2T8ALR, que moveu contra o Requerente do procedimento cautelar a que estes autos se mostram apensos). 

Deste modo, resulta claro que os documentos juntos neste recurso extraordinário de revisão não fazem prova de qualquer facto inconciliável com a decisão a rever, isto é, que só por eles se verifique ter esta assentado numa errada averiguação de facto relevante para o julgamento de direito.

Assim sendo, não se mostra preenchido, de todo, o fundamento do recurso de revisão previsto no art. 696º, alínea c), do C.P.C., pelo que se conclui pela inexistência de fundamento para a requerida revisão da sentença proferida na providência cautelar a que estes autos estão apensos."

3. [Comentário] O decidido pela RE quanto à improcedência do recurso extraordinário de revisão não levanta problemas, mas o caso concreto justifica algumas perplexidades.

No relatório do acórdão afirma-se o seguinte: "Uma vez que a decisão proferida nos autos de procedimento cautelar a que estes se mostram apensos reconheceu (…) como dono e legítimo proprietário dos referidos imóveis, por via do instituto da usucapião, entende a recorrente que tal decisão deverá [ser] modificada, atento o teor dos documentos ora juntos aos autos, devendo a mesma ser considerada como legítima proprietária dos três imóveis em causa."

Em tese, constituindo uma providência cautelar uma tutela provisória que será confirmada ou infirmada numa acção principal, não é clara a justificação para a admissibilidade do recurso de revisão de uma decisão que tenha decretado uma providência cautelar quando aquele recurso tenha como fundamento um documento superveniente (cf. art. 696.º, al. c), CPC). Isto porque então a acção principal funciona -- se assim se pode dizer -- como meio de revisão da providência cautelar.

No entanto, se o acima transcrito foi o conteúdo da providência cautelar decretada no procedimento cautelar, talvez se possa compreender a admissibilidade do recurso de revisão com base num documento (alegadamente) superveniente. Mas o que é discutível é que aquela decisão, sem qualquer indicação de que se tenha verificado a inversão do contencioso, possa constituir objecto de uma tutela provisória e que possa ser pedida a revisão dessa decisão com o objectivo de a recorrente "ser considerada como legítima proprietária dos três imóveis em causa". Tudo isto parece muito mais próprio de uma tutela definitiva do que de uma tutela cautelar e provisória.


MTS