"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/03/2018

Jurisprudência (809)


Providência cautelar; periculum in mora;
dispensa da apreciação prévia


1. O sumário de RP 14/11/2017 (3077/17.6T8VNG.P1) é o seguinte:

I - Os procedimentos cautelares conservatórios ou antecipatórios visam obstar ao prejuízo grave decorrente do retardamento na satisfação de um direito ameaçado.
 
II - O contrato de emissão de crédito documentário é um contrato atípico, assente numa relação triangular, que envolve o credor e o devedor, como titulares do contrato-base, e o banco ao qual o devedor solicita, na fase de negociação do contrato-base, o pagamento ao credor, mediante a mera apresentação de documentos por parte deste.
 
III - Nos casos típicos de compra e venda internacional a estipulação de um crédito documentário irrevogável, sujeito a um regime legal de autonomia face ao negócio-base, justifica-se plenamente, tendo em conta que que o mesmo assumirá uma dupla função de meio de pagamento e de garantia de tal pagamento. 
 
IV – Esta autonomia do crédito documentário face ao negócio-base obsta a que o comprador possa, com base em alegação de cumprimento defeituoso, invocar a
exceptio non adimpleti contractus e, com este fundamento, obter a suspensão do pagamento do crédito documentário, mediante notificação dirigida ao Banco emissor.
 
2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
“B..., LDA.”, sociedade com sede na Rua ..., n.º ..., ..., Vila Nova de Gaia, instaurou o presente procedimento cautelar comum contra “C..., LTD”, sociedade com sede em ..., ..., ..., e “BANCO D..., S.A.”, sociedade com sede na Rua ..., n.º ..., Porto, pedindo que se ordenasse à 2º Requerida o não pagamento do crédito documentário contratado por si até ao montante de USD 52.455,00 (CDI ........ de 29/08/2016) com o valor de USD 51.362,08, correspondendo a € 48.157,22, de que é beneficiária a 1ª Requerida, mediante notificação da respetiva decisão a proferir no âmbito desta providência. [...]
 
Dispensou-se a citação prévia das Requeridas e procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas.

Proferiu-se decisão, com a seguinte parte final decisória: “Face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, ordena-se ao Banco D...,SA, com sede na Rua ..., ..., ....-..., Porto, a suspensão do pagamento do crédito documentário contratado pela requerente até ao montante de USD 52.455,00 (CDI ........ de 28/08/2016) com o valor de USD 51.362,08, de que é beneficiária “C..., Ltd”, até ao trânsito em julgado de decisão final a instaurar contra a requerida para fixação dos direitos da requerente relativamente ao fornecimento dos materiais aqui em causa.” [...]

Como se viu, estamos em presença de um procedimento cautelar comum.
 
Os procedimentos cautelares conservatórios ou antecipatórios visam obstar ao prejuízo grave decorrente do retardamento na satisfação de um direito ameaçado.
 
Estabelecem-se no art.º 362.º do Código de Processo Civil [...] os seus requisitos gerais: aparência da titularidade do direito invocado e fundado e iminente receio de lesão de tal direito. 
 
Assim, competia à Requerente - antes de mais e em primeira linha – alegar e provar factos de onde resultasse, ainda que indiciariamente, a existência de direito tutelado.
 
A este respeito, a 1ª Requerida sustenta, no presente recurso, que na carta de crédito documentário nasce uma obrigação autónoma e independente, com as características de abstração e literalidade, que o banco deve cumprir, independentemente do incumprimento defeituoso do contrato base.
 
Defende que apenas se pode requerer e o Tribunal deferir uma providência cautelar deste teor, se se alegar e provar manifesto fraude ou abuso evidente. Bem como que o cumprimento defeituoso dum contrato de compra e venda não configura o conceito de fraude ou abuso evidente, pelo que não se verificam os pressupostos legais da providência requerida nestes autos. 
 
Sustenta, por outro lado, que a douta sentença de que se recorre não deu como provado qualquer facto que demonstre o fundado receio da Recorrida de que a demora na resolução do pleito lhe traga prejuízo irreparável.
 
Vejamos:
 
Menezes Cordeiro define crédito documentário como [In Direito Bancário, 6ª Edição, 2016, Almedina, pág. 712] “a situação jurídica pela qual um banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro mediante a entrega, por este, de determinados documentos.”
 
O correspondente contrato de emissão de crédito documentário trata-se de um contrato atípico, tendo como figuras típica mais próximas o contrato de prestação de serviços e o contrato de mandato comercial sem representação [Veja-se Menezes Cordeiro (ob. cit. pág. 728 e 729) que define este contrato como uma prestação de serviço bancário e Gonçalo Andrade e Castro (in O Crédito Documentário Irrevogável, 1999, Universidade Católica Portuguesa, pág. 130) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/09/09, tendo como Relator Hélder Roque (proferido no Processo n.º 406/09.0 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão) definem o mesmo como um contrato de mandato].

Assenta numa
relação triangular, que envolve o credor e o devedor, como titulares do contrato-base, o um banco ao qual o devedor faz uma solicitação para pagar ao credor.

Estruturalmente contempla duas modalidades: crédito revogável, hipótese em que o banqueiro emitente pode, a todo o tempo, modificar ou revogar o crédito, e crédito irrevogável.
 
Rege-se pelas regras do Código Comercial e, supletivamente, pelas regras do contrato de prestação de serviços e do contrato de mandato civil, constantes dos art.º 1155.º e ss. do Código Civil. Cumulativamente, é comum as partes remeterem para o regime das Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários [...]. 
 
No caso em apreciação, considerou-se indiciariamente provado que, em 2016 a requerente e a requerida “C..., Limited”, estabeleceram entre si que a segunda venderia à primeira tecidos. [...]
 
Ou seja, o crédito documentário é, pela sua própria natureza, uma operação autónoma e distinta da venda. O Banco apenas pode recusar o pagamento em casos limite de fraude ou abuso evidente, relacionados com vícios formais dos documentos ou de casos-limite de completa ausência de entrega dos bens, se forem do conhecimento da instituição bancária. 
 
Assim sendo, em casos como o presente restará ao comprador, apesar e após o pagamento pelo Banco, instaurar uma ação de indemnização tendo por causa de pedir os invocados vícios e defeitos e os danos daí decorrentes. 
 
Aliás, esta tese da irrevogabilidade do crédito vem sendo defendida pela jurisprudência de forma reiterada e constante, designadamente em casos idênticos ao destes autos. [...]
 
A conclusão é, portanto, a de que no caso dos autos não existem factos provados de onde resulte, ainda que indiciariamente, a existência do direito tutelado. 
 
Esta conclusão prejudica a apreciação do outro fundamento de recurso, referente à alegada falta de prova do periculum in mora.
 
3. [Comentário] O acórdão é interessante por este aspecto: a RP conheceu do mérito do procedimento cautelar, considerando-o (com razão) improcedente, deixando em aberto a análise de um dos pressupostos das providências cautelares, que é o designado periculum in mora (cf. art. 368.º, n.º 1, CPC). Isto significa que, no fundo, a RP aplicou por analogia, ao caso em análise, a dispensa da apreciação prévia dos pressupostos processuais estabelecida no art. 278.º, n.º 3 2.ª parte, CPC. 
 
Andou bem a RP, mas não teria ficado mal se tivesse justificado o seu iter decisório.
 
MTS